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Comitê do Carrefour após morte em loja cria divergência no movimento negro

Manifestação em frente à loja do Carrefour em Porto Alegre (RS) onde João Alberto Silveira Freitas, 40, foi espancado até a morte - Hygino Vasconcellos/Colaboração para o UOL
Manifestação em frente à loja do Carrefour em Porto Alegre (RS) onde João Alberto Silveira Freitas, 40, foi espancado até a morte Imagem: Hygino Vasconcellos/Colaboração para o UOL

Lola Ferreira

Colaboração para o UOL, do Rio

23/12/2020 04h00

Em resposta às manifestações em repúdio ao assassinato de João Alberto de Silveira Freitas em uma de suas lojas em Porto Alegre, o Carrefour criou um "Comitê Externo sobre Diversidade e Inclusão", recheado de notáveis como o jurista Silvio de Almeida. Alguns dos membros aproveitaram o embalo e lançaram a Frente Nacional Antirracista, para levar a discussão a outras empresas e esferas da sociedade.

As duas ações expuseram uma dissonância dentro do movimento negro. A aproximação com empresas que ainda protagonizam episódios de racismo, dizem os críticos, é desaprovada. Por este motivo, a reportagem apurou que alguns ícones do movimento negro foram consultados e recusaram a proposta do Carrefour. Além disso, acrescentam, o contato com grandes empresas enfraquece organizações populares que não têm foco econômico, mas lutam pela reparação dos efeitos do racismo.

Reunião com Fiesp foi criticada

Na dia 11, a Frente Nacional Antirracista se reuniu com Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Central dos Sindicatos Brasileiros e Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil. Mas foi o encontro de representantes da organização com Paulo Skaf que gerou a maior reação nas redes sociais.

O empresário é apoiador do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que se omite da discussão racial, até então, nos seus dois anos de mandato.

"A tese deles é combater o racismo, não o inimigo que é racista. Só que isso é um apagamento da memória da guerra racial. Fingir que [o racista] não existe", disse um internauta. "A Fiesp amanhã vai ser contra todas as reformas e retiradas de direitos que ela apoiou e que prejudicaram a população negra?", questionou outro.

Críticas ao comitê

Antes mesmo do surgimento da frente, o comitê do Carrefour foi alvo de críticas. Financiada pela rede de supermercados e formado por uma maioria negra, a entidade foi criada para auxiliar a empresa a "adotar uma política de tolerância zero ao racismo e à discriminação por razões de raça e etnia, origem, condição social, identidade de gênero, orientação sexual, idade, deficiência e religião".

A criação nos dias seguintes à morte de Beto Freitas e a escalação de figuras como o fundador da Cufa (Central Única das Favelas), Celso Athayde, acendeu a luz amarela.

A Coalizão Negra por Direitos, um movimento unificado com cerca de 150 organizações, criticou a criação do comitê. Em nota, a organização afirma que "não há saídas que não sejam construídas juntos com as organizações do movimento social negro e o irrestrito respeito à família da vítima e sua comunidade, bem como de outras famílias atingidas pelas práticas reiteradas de racismo na empresa".

Empresa não tem relação com movimento

O ponto central da crítica reside na ausência de diálogo da rede de supermercados com os movimentos sociais de luta popular. Para esse comitê, o Carrefour convidou figuras públicas com trabalhos conhecidos no campo racial, mas que não representam o movimento como um todo.

Em posts publicados no Twitter, Almeida rebateu esse ponto. "Sendo eu reconhecido como estudioso do tema, pensei que seria meu dever contribuir nesse momento tão confuso e tão difícil", escreveu.

"Não trabalho para o Carrefour, não fui chamado pela empresa nem irei funcionar como 'assessor'. O intuito do Comitê é propor formas de reparação e meios de responsabilização que possam contemplar a família de João Alberto, mas também ao conjunto da sociedade."

No mesmo texto, Almeida afirmou não acreditar na existência de um "capitalismo humanista". Poucos dias após, Athayde criou a Frente Nacional Antirracista, para levar a outras empresas ações e iniciativas propostas ao Carrefour.

Procurado pelo UOL, Celso Athayde informou que não daria entrevistas sobre o assunto. Em 4 de dezembro, o Carrefour anunciou o fim da terceirização da segurança de suas lojas, uma das propostas do comitê. Athayde comentou a notícia em suas redes sociais: "Protestar é fundamental. Mudar o comportamento das empresas para salvar a vida de outros pretos é a nossa luta. Impactar a vida real".

Cassar álvara do supermercado

Mas a mudança anunciada pela rede de supermercados não mudou o posicionamento da Coalizão Negra por Direitos. Em nota, a organização exige a cassação do alvará de funcionamento do Carrefour em Porto Alegre. A reivindicação é ancorada no artigo 150 da Lei Orgânica Municipal, que define que os estabelecimentos que pratiquem atos de discriminação racial, entre outras, poderão ser multados ou sofrerem a cassação do alvará.

A Frente de Evangélicos Pelo Estado Democrático de Direito é uma das organizações que assinam o documento. Em entrevista ao UOL, seu coordenador, o pastor Ariovaldo Campos, reiterou o apoio ao conteúdo da nota em conversa antes da recente polêmica do encontro da Frente Nacional Antirracista com a Fiesp. Na ocasião, ele destacou que não há como combater o racismo estrutural junto à própria estrutura racista.

"Esse embate nasce de um posicionamento onde o ato racista levado a efeito ou sustentado, ainda que indiretamente por corporações, precisa ter como resposta ações que abalem a permanência da corporação no mercado. Essa é a linguagem primeira com a qual as corporações conversam: econômica e financeira, não necessariamente psicossociais. Então é preciso responder com a mesma linguagem", afirmou.

Sem críticas pessoais

Campos destaca que a crítica não é aos indivíduos ou às organizações que se aproximaram do Carrefour, e que o trabalho de ninguém pode ser invalidado.

"É apenas uma questão conceitual, de definição, inclusive de organização da luta. Acredito que essa ação é perigosa, por isso a Frente de Evangélicos fechou com a Coalizão, por entender que é uma situação que requer justiça, equidade e isonomia. Se [o Carrefour] vai falar, deveria falar com todos. Se há a tentativa de dividir o movimento, resta ao movimento a lei."

Na semana passada, a Polícia Civil indiciou seis envolvidos pela morte de Beto. Em paralelo a isso, o Carrefour é alvo de dois inquéritos civis instaurados pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. Um deles busca a reparação pelo dano moral coletivo e outro quer averiguar a política de direitos humanos no grupo Carrefour.

Já a Defensoria Pública do estado abriu uma ação civil pública que pede à rede de supermercados e à empresa de segurança Vector indenização de R$ 200 milhões, quantia a ser destinada a fundos de combate à discriminação e defesa do consumidor.

O que diz o Carrefour

Em resposta aos questionamentos enviados pelo UOL, a rede de supermercados não falou especificamente sobre a formação do comitê e as críticas direcionadas à iniciativa. O texto, uma compilação de oito páginas de todas as notas enviadas anteriormente à imprensa, afirma que o comitê "não tem qualquer vínculo de subordinação ao Carrefour Brasil".

Nele, a empresa destaca que iniciou o processo de internalização da segurança de suas lojas no Rio Grande do Sul, tem expectativa de contratar 20 mil pessoas negras por ano e investir "em ações de impacto na sociedade".