Comitê do Carrefour após morte em loja cria divergência no movimento negro
Em resposta às manifestações em repúdio ao assassinato de João Alberto de Silveira Freitas em uma de suas lojas em Porto Alegre, o Carrefour criou um "Comitê Externo sobre Diversidade e Inclusão", recheado de notáveis como o jurista Silvio de Almeida. Alguns dos membros aproveitaram o embalo e lançaram a Frente Nacional Antirracista, para levar a discussão a outras empresas e esferas da sociedade.
As duas ações expuseram uma dissonância dentro do movimento negro. A aproximação com empresas que ainda protagonizam episódios de racismo, dizem os críticos, é desaprovada. Por este motivo, a reportagem apurou que alguns ícones do movimento negro foram consultados e recusaram a proposta do Carrefour. Além disso, acrescentam, o contato com grandes empresas enfraquece organizações populares que não têm foco econômico, mas lutam pela reparação dos efeitos do racismo.
Reunião com Fiesp foi criticada
Na dia 11, a Frente Nacional Antirracista se reuniu com Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Central dos Sindicatos Brasileiros e Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil. Mas foi o encontro de representantes da organização com Paulo Skaf que gerou a maior reação nas redes sociais.
O empresário é apoiador do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que se omite da discussão racial, até então, nos seus dois anos de mandato.
"A tese deles é combater o racismo, não o inimigo que é racista. Só que isso é um apagamento da memória da guerra racial. Fingir que [o racista] não existe", disse um internauta. "A Fiesp amanhã vai ser contra todas as reformas e retiradas de direitos que ela apoiou e que prejudicaram a população negra?", questionou outro.
Críticas ao comitê
Antes mesmo do surgimento da frente, o comitê do Carrefour foi alvo de críticas. Financiada pela rede de supermercados e formado por uma maioria negra, a entidade foi criada para auxiliar a empresa a "adotar uma política de tolerância zero ao racismo e à discriminação por razões de raça e etnia, origem, condição social, identidade de gênero, orientação sexual, idade, deficiência e religião".
A criação nos dias seguintes à morte de Beto Freitas e a escalação de figuras como o fundador da Cufa (Central Única das Favelas), Celso Athayde, acendeu a luz amarela.
A Coalizão Negra por Direitos, um movimento unificado com cerca de 150 organizações, criticou a criação do comitê. Em nota, a organização afirma que "não há saídas que não sejam construídas juntos com as organizações do movimento social negro e o irrestrito respeito à família da vítima e sua comunidade, bem como de outras famílias atingidas pelas práticas reiteradas de racismo na empresa".
Empresa não tem relação com movimento
O ponto central da crítica reside na ausência de diálogo da rede de supermercados com os movimentos sociais de luta popular. Para esse comitê, o Carrefour convidou figuras públicas com trabalhos conhecidos no campo racial, mas que não representam o movimento como um todo.
Em posts publicados no Twitter, Almeida rebateu esse ponto. "Sendo eu reconhecido como estudioso do tema, pensei que seria meu dever contribuir nesse momento tão confuso e tão difícil", escreveu.
"Não trabalho para o Carrefour, não fui chamado pela empresa nem irei funcionar como 'assessor'. O intuito do Comitê é propor formas de reparação e meios de responsabilização que possam contemplar a família de João Alberto, mas também ao conjunto da sociedade."
No mesmo texto, Almeida afirmou não acreditar na existência de um "capitalismo humanista". Poucos dias após, Athayde criou a Frente Nacional Antirracista, para levar a outras empresas ações e iniciativas propostas ao Carrefour.
Procurado pelo UOL, Celso Athayde informou que não daria entrevistas sobre o assunto. Em 4 de dezembro, o Carrefour anunciou o fim da terceirização da segurança de suas lojas, uma das propostas do comitê. Athayde comentou a notícia em suas redes sociais: "Protestar é fundamental. Mudar o comportamento das empresas para salvar a vida de outros pretos é a nossa luta. Impactar a vida real".
Cassar álvara do supermercado
Mas a mudança anunciada pela rede de supermercados não mudou o posicionamento da Coalizão Negra por Direitos. Em nota, a organização exige a cassação do alvará de funcionamento do Carrefour em Porto Alegre. A reivindicação é ancorada no artigo 150 da Lei Orgânica Municipal, que define que os estabelecimentos que pratiquem atos de discriminação racial, entre outras, poderão ser multados ou sofrerem a cassação do alvará.
A Frente de Evangélicos Pelo Estado Democrático de Direito é uma das organizações que assinam o documento. Em entrevista ao UOL, seu coordenador, o pastor Ariovaldo Campos, reiterou o apoio ao conteúdo da nota em conversa antes da recente polêmica do encontro da Frente Nacional Antirracista com a Fiesp. Na ocasião, ele destacou que não há como combater o racismo estrutural junto à própria estrutura racista.
"Esse embate nasce de um posicionamento onde o ato racista levado a efeito ou sustentado, ainda que indiretamente por corporações, precisa ter como resposta ações que abalem a permanência da corporação no mercado. Essa é a linguagem primeira com a qual as corporações conversam: econômica e financeira, não necessariamente psicossociais. Então é preciso responder com a mesma linguagem", afirmou.
Sem críticas pessoais
Campos destaca que a crítica não é aos indivíduos ou às organizações que se aproximaram do Carrefour, e que o trabalho de ninguém pode ser invalidado.
"É apenas uma questão conceitual, de definição, inclusive de organização da luta. Acredito que essa ação é perigosa, por isso a Frente de Evangélicos fechou com a Coalizão, por entender que é uma situação que requer justiça, equidade e isonomia. Se [o Carrefour] vai falar, deveria falar com todos. Se há a tentativa de dividir o movimento, resta ao movimento a lei."
Na semana passada, a Polícia Civil indiciou seis envolvidos pela morte de Beto. Em paralelo a isso, o Carrefour é alvo de dois inquéritos civis instaurados pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. Um deles busca a reparação pelo dano moral coletivo e outro quer averiguar a política de direitos humanos no grupo Carrefour.
Já a Defensoria Pública do estado abriu uma ação civil pública que pede à rede de supermercados e à empresa de segurança Vector indenização de R$ 200 milhões, quantia a ser destinada a fundos de combate à discriminação e defesa do consumidor.
O que diz o Carrefour
Em resposta aos questionamentos enviados pelo UOL, a rede de supermercados não falou especificamente sobre a formação do comitê e as críticas direcionadas à iniciativa. O texto, uma compilação de oito páginas de todas as notas enviadas anteriormente à imprensa, afirma que o comitê "não tem qualquer vínculo de subordinação ao Carrefour Brasil".
Nele, a empresa destaca que iniciou o processo de internalização da segurança de suas lojas no Rio Grande do Sul, tem expectativa de contratar 20 mil pessoas negras por ano e investir "em ações de impacto na sociedade".
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