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Em causa bilionária, desembargadores brigam em CAPS LOCK no TJ-SP

Em troca de despachos, desembargadores disputam controle de causa bilionária - iStock
Em troca de despachos, desembargadores disputam controle de causa bilionária Imagem: iStock

Pedro Canário

Do UOL, em São Paulo

18/05/2023 04h00

Uma das maiores brigas do capitalismo brasileiro - a que opõe o Grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, à gigante indonésia Paper Excellence pelo controle da Eldorado Celulose - ganhou uma versão dentro do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), com desembargadores disputando a relatoria e o controle dos recursos apresentados pelas empresas à segunda instância. O litígio envolve R$ 15 bilhões.

A disputa pelo controle da causa no TJ-SP tem momentos insólitos, como dois magistrados se enfrentando em uma guerra de despachos - alguns deles com farto uso de "caps lock", o recurso que deixa as letras de um texto em caixa-alta.

Arbitragem concluída em maio de 2019 já decidiu que a Paper Excellence tem razão no caso, e as ações da Eldorado devem ser transferidas para a empresa indonésia. A companhia dos irmãos Batista, no entanto, tenta derrubar essa decisão na Justiça e submeter o caso a uma nova arbitragem - até agora, não conseguiram, e já há até ordem para que a empresa entregue as ações da Eldorado à Paper.

Arbitragem é um sistema de solução de conflitos entre empresas, no qual as partes envolvidas em uma disputa concordam em submeter a questão a um ou mais árbitros imparciais e independentes. É uma forma alternativa de resolução de disputas, fora do Poder Judiciário.

Hoje, o caso está no Grupo Especial de Câmaras Empresariais do TJ-SP. Para andar, depende de o desembargador José Carlos Costa Netto liberar para julgamento a homologação da desistência de um recurso pela Paper Excellence, para que o caso siga com o desembargador José Benedito Franco de Godoi, relator já escolhido para o caso pelo colegiado do TJ-SP.

A contratação do ministro Ricardo Lewandowski pela J&F tem a ver com a escolha de Godoi. O ministro e o desembargador são amigos desde os anos 1990, quando Godoi foi juiz em São Bernardo do Campo, cidade-natal do ministro e onde ele trabalhava como advogado. Depois, ambos foram colegas no TJ-SP, onde atuaram como desembargadores.

Briga em CAPS LOCK

A disputa entre Godoi e Costa Netto vem movimentando os bastidores do TJ de São Paulo e é pauta constante de conversas privadas entre desembargadores. Há incômodo na corte com as medidas adotadas por Costa Netto.

Essas medidas colocaram Costa Netto em conflito com Franco de Godoi. Em despacho de 24 de março deste ano, Godoi enviou os autos do processo ao presidente do TJ-SP e ao Ministério Público para tomar as "providências cabíveis no caso".

Isso porque Costa Netto adotou medidas que paralisaram o andamento do caso, entrando no mérito da discussão sobre a arbitragem. E, como relator de um conflito de competências, teoricamente não poderia fazer isso. Conflitos de competência servem para que o tribunal decida qual deve ser o juiz responsável por um processo.

Em despacho de 24 de março, Godoi escreveu em caixa-alta: "NUNCA, 'DATISSIMA VENIA', poderia o relator [Costa Netto] integrante do Grupo Especial em questão, que tem como escopo dirimir conflitos de competência, arvorar-se em órgão revisor, como fê-lo".

"Data venia" é uma expressão em latim que quer dizer "com a devida licença". Só que em caixa-alta.

Como a disputa começou

Godoi foi escolhido relator do caso em agosto de 2022. O motivo foi que, em 2018, Godoi havia julgado uma disputa societária entre os irmãos Batista e Mário Celso Lopes, ex-sócio deles na Eldorado, e se tornou o primeiro desembargador a tomar conhecimento do caso, segundo o TJ-SP.

A cronologia da encrenca é a seguinte:

Em 30 de agosto, a Paper recorreu dessa decisão. Um mês depois, em 29 de setembro, Godoi acatou um pedido da J&F e suspendeu os efeitos de uma sentença de primeira instância que havia mantido a decisão da arbitragem.

Mas em 21 de outubro de 2022, o desembargador voltou atrás e reconsiderou sua decisão. Com isso, manteve os efeitos da sentença de primeira instância e, consequentemente, determinou a transferência das ações da Eldorado para a Paper.

Três dias depois, a Eldorado pediu a Costa Netto que, como relator do conflito de competência definido em agosto, suspendesse a tramitação de todos os processos até que o mérito da questão sobre a arbitragem fosse resolvido.

O pedido foi atendido por Costa Netto em 27 de outubro de 2022. Um mês depois, em 23 de novembro, a Paper desistiu do recurso que questionava a relatoria de Godoi - como foi nesse recurso que Costa Netto suspendeu o andamento do processo, a Paper entendeu que, desistindo dele, faria valer a decisão de Godoi que autorizou a transferência das ações da Eldorado.

Guerra de decisões

Costa Netto chegou a homologar a desistência do recurso pela Paper no final de janeiro deste ano. Mas J&F recorreu para o Grupo de Câmaras. Para a empresa dos irmãos Batista, a escolha do relator envolve uma questão de "ordem pública" e, por isso, não poderia haver desistência.

É esse recurso, um agravo, que agora está pendente de julgamento. Costa Netto chegou a colocar o processo em pauta apenas para tirar de novo pelo menos três vezes. Chegou ao ponto de um ex-presidente do Grupo Especial de Câmaras, Andrade Neto, se negar a dar um prazo de 30 dias pedido por Costa Netto para devolver o caso a julgamento - concedeu dez dias.

Hoje, no entanto, Costa Netto é o presidente do Grupo de Câmaras e é ele quem define a pauta de julgamentos.

Diante desse impasse, Franco de Godoi, em janeiro deste ano, autorizou a Paper a desistir de questionar sua relatoria e, em 3 de fevereiro, autorizou o tribunal arbitral que deu ganho de causa à Paper em 2019 a transferir as ações da Eldorado da J&F para a Paper.

Costa Netto, no entanto, tentou tomar de volta o processo. Em 17 de fevereiro, deu novo despacho para travar o andamento do processo.

Em 20 de março, Godoi disse que a decisão de Costa Netto não tinha "nenhuma repercussão jurídica", já que ele era apenas relator do conflito de competência e sua atribuição sobre o caso "esgotou-se" depois que a Paper desistiu do recurso contra a escolha do relator.

Costa Netto, então, se movimentou novamente: em 24 de março, voltou a tentar suspender o andamento do caso. Disse que deixar o processo andar "pode causar danos irreparáveis às partes". E que o caso só poderia ser concluído depois que todos os incidentes relativos à disputa entre as empresas fossem definidos pelo Grupo Especial - ainda havia um agravo interno, em que a desembargadora Jane Martins pedia que todos os casos da J&F fossem reunidos num processo só, o que já foi negado.

E foi aí que Godoi decidiu envolver a corregedoria e o MP-SP. "O eminente desembargador Costa Netto olvidou [esqueceu] que naquele simples Conflito de Competência a sucessão de atos que extravasaram os limites de sua processual e legal atuação afetaram os alicerces dos fundamentos abraçados pelo Colendo Grupo para dirimir conflitos de competência", escreveu, em decisão também de 24 de maio.

Agora, o caso depende de o TJ-SP decidir se abre ou não um processo administrativo contra Costa Netto. Ele já respondeu a um processo antes, por excesso de decisões pendentes de julgamento. Mas o tribunal entendeu que ele não poderia ser culpado por isso, já que havia herdado grande acervo de processos de seu antecessor no gabinete.

Quanto ao mérito, a Paper espera que a fase judicial se encerre para assumir o controle da Eldorado. Depois disso, o tribunal arbitral que julgou o caso em 2019 vai decidir se a J&F deverá pagar uma indenização pela demora na conclusão do negócio - o contrato previa o fim da venda em um ano, mas o caso já se arrasta por mais de quatro anos.

Já a J&F deve levar o caso ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para discutir se as partes podem desistir de recursos que tratem da competência do relator.