'Estude pra ser pobre': crianças desdenham da escola e dizem lucrar na web
Para que ir à escola se você pode ter faturamento de R$ 100 mil por mês trabalhando com o celular, sem muito esforço?
Essa é a ilusão vendida a crianças e adolescentes por influenciadores mirins. Nas redes sociais, esses influenciadores aparecem ostentando cédulas de dinheiro, desdenhando da educação e ensinando a, supostamente, faturar com o celular.
"Nasci para ser empreendedora e na faculdade te ensinam a ser funcionária", diz uma menina, em uma das publicações. "Para ser pobre, estude, faça uma boa faculdade e encontre um bom emprego. Agora, para ser rico, faça totalmente ao contrário", completa.
Crianças e adolescentes fazem propaganda para plataformas de marketing de afiliados, como Kiwify, Cakto e Kirvano. Essas são plataformas em que infoprodutores (criadores de conteúdos digitais, como cursos e e-books) permitem a terceiros divulgar seus produtos e ganhar uma porcentagem sobre as vendas.
O UOL localizou, no Instagram e TikTok, dezenas de perfis de crianças e adolescentes que divulgam esse tipo de conteúdo e alegam faturar milhares de reais por mês.
As publicações de crianças que anunciam os cursos seguem um padrão: trazem narrativa de superação, zombam da escola e têm escritos com erros de português que parecem propositais —aparentemente, para dar a ideia de que foram produzidos por crianças. Algumas crianças aparecem acompanhadas das mães.
Curso dá treino
O UOL interagiu com uma das publicações e recebeu uma mensagem que tenta contornar a desconfiança: "Quero deixar bem claro que não tem nada aver [sic] com golpes, pirâmide, e jogos de azar ta?".
Depois, por meio de outra mensagem automática, a criança afirma que vai "revelar" o treinamento que usou para supostamente obter resultados de R$ 100 mil em 30 dias e envia o link para a compra de um curso.
A reportagem teve acesso, por R$ 19,90, a um curso que, supostamente, ensina a obter alto faturamento e "mudar de vida".
No curso, um conjunto de vídeos em 16 módulos, a criança passa uma breve mensagem de boas-vindas. Na sequência, quem passa a ministrar as aulas é um jovem, aparentemente com mais de 18 anos.
Driblando a idade
Tanto a Kiwify quanto a Cakto são proibidas para menores de 18 anos, mas, no próprio curso, o jovem ensina a driblar a regra. Segundo ele, se o usuário for menor, deve conversar com os pais e pedir para usar documentos deles.
Já a Kirvano permite que pessoas com 13 anos ou mais se cadastrem na plataforma. Nos termos de uso, a companhia diz cancelar o cadastro do usuário de 13 a 18 anos "quando houver pedido dos pais".
Ilegalidades
Para a advogada Alessandra Borelli, especializada em direito digital e professora na Escola Paulista de Direito, a atuação de crianças e adolescentes nessas plataformas pode configurar trabalho infantil. No Brasil, o trabalho só é permitido a partir dos 16 anos, exceto no caso de atividades artísticas devidamente autorizadas.
O advogado João Francisco Coelho, do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, explica que adolescentes de 14 anos ou mais podem trabalhar como aprendizes, mas o tipo de trabalho nessas plataformas não tem amparo na legislação. A modalidade de trabalho é restrita na legislação para situações em que auxilia no desenvolvimento profissional do adolescente.
Coelho diz que, ainda que essas plataformas não contratem crianças para trabalho remunerado, as empresas são responsáveis pela proteção delas na plataforma.
As plataformas podem ser responsabilizadas civil e administrativamente —ficando sujeitas a multa ou perdendo o direito de explorar a atividade econômica, na opinião do advogado Spencer Sydow, professor doutor em direito penal pela USP.
No caso dos pais das crianças que trabalham irregularmente, pode haver responsabilização criminal.
Cabe também apuração de crimes como estelionato e falsidade ideológica no caso de crianças que usam o documento dos pais para se registrarem nas plataformas, diz a advogada Denise Auad, da comissão dos direitos da criança e do adolescente da OAB-SP.
"As crianças alegam trabalhar 30 minutos por dia e faturar R$ 50 mil, R$ 100 mil por mês. Para isso, teriam de vender uma quantidade de cursos muito alta. Tudo leva a crer que estão exagerando", diz Auad.
[A narrativa de superação] pega no âmago de muitas famílias. Quando a mãe participa do vídeo com a criança, provavelmente sabendo que esse dito faturamento não é real, está participando de um teatro. É estelionato, crime no âmbito penal. Teria de haver força jurídica para identificar quem está aliciando as crianças a fazer parte dessa rede. Denise Auad
Para Coelho, é possível falar, ainda, em corrupção de menores, o crime de levar uma pessoa com menos de 18 anos à prática criminosa, como estelionato. Ele acredita que essas crianças podem estar sendo instrumentalizadas para conseguir vender a outras crianças e adolescentes, que geralmente têm maior tendência a tomar decisões por impulso.
Auad acrescenta que a desvalorização do estudo contraria também o Estatuto da Criança e do Adolescente. "Acho muito grave a ideia vendida de que a escola é descartável. É um discurso que gira em torno de vaidade e ostentação."
O debate sobre a atuação de crianças nessas plataformas chegou até aos consultórios. A pediatra Evelyn Eisenstein, coordenadora do grupo de trabalho Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria, alerta que as consequências da atuação de crianças nessas plataformas vão desde a adultização precoce até problemas psiquiátricos.
"A exposição à qual essas crianças são submetidas cria nelas a ideia de que são celebridades, quando não são. Estão sendo exploradas."
O que dizem as empresas e as redes
A Kiwify disse ter "política clara e rigorosa quanto à idade mínima" e que "apenas pessoas maiores de 18 anos ou emancipadas" podem usar a plataforma. A empresa disse exigir que "todas as transações comerciais sejam realizadas por pessoas maiores de idade".
As crianças não criaram contas diretamente na plataforma. As contas utilizadas por elas estavam registradas e verificadas no nome de adultos, geralmente pais ou responsáveis legais, que concluíram nosso processo de validação. Infelizmente, essas contas foram usadas por menores de forma indevida, o que contraria as regras da Kiwify.
Kiwify, em nota
A Kiwify diz ter adotado monitoramento para "identificar" e "coibir" práticas contrárias às suas políticas.
A Cakto afirmou que "adota medidas rigorosas para assegurar o cumprimento de seus termos de uso [...], especialmente no que tange à proibição de menores de idade na plataforma".
Segundo a empresa, o processo de cadastro exige a apresentação de um documento oficial com foto, que é submetido a uma "análise rigorosa". Uma conta é "prontamente suspensa" caso a equipe identifique que está sendo usada por um menor de idade.
A Kirvano afirmou que "não recruta pessoas para atuarem como afiliadas". E disse atuar "como plataforma de pagamentos, similar ao Mercado Pago". Segundo a Kirvano, "na condição de 'banco digital'", a empresa segue "normativas do Bacen que permitem a abertura de contas para menores de idade, desde que representados e autorizados por seus pais ou responsáveis".
A plataforma afirmou, ainda, que "o possível vínculo de 'trabalho infantil' somente ocorreria se a Kirvano contratasse um menor para exercer algum trabalho remunerado, o que não acontece".
O TikTok disse que a idade mínima para usar a plataforma é 13 anos e afirma ter "time robusto" de segurança e que contas administradas por menores de 13 são banidas. A Meta disse não permitir menores de 13 anos na plataforma. "Contas no Facebook e no Instagram que representem alguém menor de 13 anos precisam ser gerenciadas pelo pai, mãe ou responsável."
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