IPCA
0,83 Abr.2024
Topo

"É angustiante não conseguir atender todos", diz médica sobre pandemia em Manaus

Enterro coletivo de pessoas que morreram devido à doença de coronavírus, no cemitério Parque Taruma, em Manaus - BRUNO KELLY/REUTERS
Enterro coletivo de pessoas que morreram devido à doença de coronavírus, no cemitério Parque Taruma, em Manaus Imagem: BRUNO KELLY/REUTERS

Da Reuters, em Manaus

15/05/2020 16h55

Revolta e angústia são os sentimentos que afloram na médica Alessandra Said diante de uma pandemia que avança rapidamente e faz cada vez mais vítimas, que ela vem tentando salvar na cidade de Manaus, uma das mais afetadas pela covid-19 no país.

Com mais de 10 anos como médica do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), Said afirma que o serviço de urgência sempre a fez sentir-se útil, mas que atualmente tem a sensação de querer fazer mais, sem poder.

"Eu costumo dizer que eu trabalho no Samu, porque eu gosto da resolutividade. A gente vê a melhora do paciente", conta. "Na pandemia, com a covid, a gente não tem essa expectativa... a gente entrega o paciente (ao hospital) sem ter uma resolutividade maior. Ele vai passar muito tempo internado e muitos deles vêm a óbito. Isso é o que mais machuca."

A médica enfrenta o turbilhão da pandemia na cidade que se tornou um dos epicentros da doença no Brasil, com 9.410 casos confirmados e 809 óbitos — além de uma notória subnotificação devido à escassez de testes.

A capital do Amazonas foi a primeira cidade do Brasil a decretar o colapso de seu sistema de saúde devido ao esgotamento da capacidade de atendimento nas unidades de terapia intensiva (UTIs), e segue enfrentando dificuldades para lidar com a demanda crescente de infecções.

"O sentimento é de revolta, de a gente não conseguir fazer mais, e às vezes até de angústia, porque você não consegue atender todo mundo, você não consegue dar a qualidade que deveria ser dada para todo mundo", disse Said, em um breve intervalo durante plantão de 12 horas acompanhado pela Reuters.

"É angustiante a gente ver que muitos idosos vão falecer por falta de respirador, você dando um suporte de oxigênio que não é suficiente e você não tem estrutura para fazer tudo que você poderia fazer... Não é porque ele é idoso que ele está condenado", acrescentou.

Manaus tem protagonizado algumas das cenas mais impactantes da pandemia no Brasil, com valas comuns sendo abertas em cemitérios para enterrar vítimas da covid-19.

A capital amazonense montou um hospital de campanha na periferia, inaugurado no dia 12 de abril, com 101 leitos —29 de UTI— para atender pacientes com coronavírus, com a perspectiva de chegar a 279 leitos.

A ocupação é constante. Assim que um leito vaga, é imediatamente ocupado, e a cidade tem registrado média diária de 120 mortes, o que mantém o serviço funerário pressionado.

Segundo Said, a pandemia só agravou uma situação que já era de crise na saúde pública local.

"Precisou de uma pandemia para vir à tona toda uma situação de caos que a gente já vive antes dela", afirmou.

"A gente trabalha aqui com hospitais lotados, com profissionais com cargas horárias elevadas, dando muitos plantões... Eu queria que tivesse um olhar voltado com mais carinho, mais dedicação como um todo..

Além da carga exaustiva de trabalho, a médica foi atingida pela Covid-19 dentro da própria família. O pai e a mãe foram infectados pela doença. Para evitar os riscos de contaminar a própria filha, de 13 anos, Said decidiu se afastar da menina, que foi morar com o pai, e está há quase dois meses sem vê-la pessoalmente.

"O meu tempo é muito para o trabalho e o pouco tempo que eu tenho para mim não é para mim, é para tentar cuidar da minha família. E a minha filha... está me fazendo sofrer muito ficar longe dela", afirmou.

Com o Brasil superando os 200 mil casos confirmados de covid-19 e quase 14 mil mortes, além de atravessar uma crise política que resultou em duas trocas de ministro da saúde durante a pandemia, a médica lamenta que o Brasil tenha se tornado um símbolo de problemas no enfrentamento ao coronavírus, apesar de todos os esforços dos profissionais de saúde.

"O mundo está olhando para nós por causa das nossas deficiências e isso é muito ruim. Eu queria que o mundo olhasse para nós pelas coisas boas que estamos fazendo. A gente está trabalhando com tudo que a gente pode, da melhor maneira que a gente pode, se dedicando muito aos nossos paciente", disse.