Graciliano Rocha

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Reportagem

Bancos credores estão céticos com alcance de delação das Americanas

O alcance da delação premiada de dois ex-diretores das Americanas ainda é visto com ceticismo por credores da companhia, que omitiu do balanço ao menos R$ 20 bilhões - a maior fraude corporativa já registrada no país.

No dia 15, a Justiça Federal do Rio homologou a delação de Flavia Carneiro e Marcelo Nunes, ex-dirigentes da empresa, que negociaram benefícios processuais em troca de revelar como a empresa escondeu dívidas, principalmente com bancos, para produzir artificialmente "lucros", que permitiram o pagamento de bônus a executivos e dividendos a acionistas.

Fontes ligadas a dois bancos, que falaram com o UOL sob a condição de não terem os nomes divulgados por não terem autorização de tratar o assunto publicamente, afirmaram que a dúvida é se o conteúdo da delação ficará circunscrito ao ex-presidente da varejista Miguel Gutierrez e aos outros membros da diretoria ou se alcançará os três acionistas de referência do grupo, o trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira.

Em reiteradas ocasiões, o trio de acionistas tem repetido que não tinha conhecimento das fraudes contábeis. Uma pessoa próxima dos três, que pediu para não ter o nome citado, disse ao UOL que, até agora, tudo o que as investigações descobriram apontaram no sentido de que houve um esforço deliberado da antiga diretoria para ocultar informações do Conselho de Administração.

Como o rombo revelado equivalia ao dobro do valor da empresa à época, os acionistas de referência - que estão entre os homens mais ricos do Brasil - têm sido pressionados a injetar dinheiro novo. Desde janeiro, a empresa está em regime de recuperação judicial e hoje o market cap das Americanas, um indicador de valor de mercado, é de menos de um bilhão de reais.

A especulação sobre uma delação restrita aos ex-dirigentes ganhou corpo entre os credores na quarta (16), quando o colunista Lauro Jardim, de O Globo, citou que seriam implicados pelos delatores o ex-presidente Gutierrez e os ex-diretores Anna Saicali, Timótheo Barros, Márcio Cruz e Fábio Abrate.

Se a informação se confirmar, a delação coincidiria com as primeiras conclusões do comitê independente montado pelas Americanas para apurar o rombo, que, em junho, acusou a diretoria anterior de "ocultar do Conselho de Administração e do mercado em geral a fraude".

O Conselho de Administração é a instância que representa os acionistas a que o presidente e os diretores devem prestar contas.

Do lado do Ministério Público Federal do Rio, o acordo com os ex-diretores foi fechado pelo procurador da República José Maria Panoeiro.

Desde janeiro, quando o então presidente Sergio Rial revelou as "inconsistências contábeis" de R$ 20 bilhões e pediu demissão, depois de apenas nove dias no cargo, Lemann, Telles e Sicupira têm reiteradamente negado que tivessem qualquer conhecimento da fraude.

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A companhia só admitiu publicamente a fraude em 13 de junho, quando o atual presidente, Leonardo Coelho Pereira, nomeado para fazer a reestruturação do grupo, depôs na CPI, instalada em maio pela Câmara dos Deputados.

No mesmo dia, a companhia divulgou um fato relevante com as primeiras conclusões do comitê independente.

A ira do Safra

A teoria de que os diretores praticaram a fraude sem o conhecimento do Conselho de Administração e dos acionistas de referência não convenceu parte dos credores.

Em um tom duro característico da linha adotada no caso, advogados do Banco Safra enviaram uma carta ao presidente do comitê independente, Otávio Yazbek, chamando de "exageradamente inverossímil" que a fraude contábil tenha sido operada exclusivamente pela administração anterior.

Uma das pontas soltas apareceu no dia 1º deste mês, segundo o Safra, quando a sócia da KPMG Carla Ballangero depôs à CPI das Americanas, em Brasília.

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À CPI, Ballangero contou que enviou, em 8 de agosto de 2019, e-mails aos diretores financeiros da Americanas e da B2W (braço de comércio eletrônico do grupo) com "as principais melhorias que precisavam ser implementadas para a conclusão da auditoria de 2019".

Entre as melhorias sugeridas, estava o controle sobre as Verbas Propaganda Cooperada (VPC) - justamente um dos focos da fraude contábil revelada neste ano.

Os e-mails nunca foram respondidos. E em 26 de agosto daquele ano a KPMG enviou uma "carta de controles internos interina" para "chamar atenção da administração" sobre os problemas encontrados nas revisões feitas pela auditoria.

Seis dias depois, o contrato com a KPMG foi rescindido pelas empresas, conforme o relato de Carla Bellangero.

Na carta do Safra, os advogados do banco questionam o comitê independente "se os membros do conselho de administração da Americanas e os acionistas de referência também foram investigados, em especial o sr. Carlos Alberto Sicupira, que, como é de conhecimento comum, exercia rígido controle sobre a varejista".

O banco também pergunta se o comitê apreendeu e analisou emails, correspondências, computadores e telefones celulares dos membros do conselho de administração.

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[...] Fica mais do que evidente, portanto, que a Americanas optou por omitir deliberadamente tais 'falhas', deixando de averiguá-las em razão do interesse de sua alta administração e dos controladores, que não são dissociados

Carta do advogado Felipe Emmanuel Figueiredo, em nome do Banco Safra, ao comitê independente das Americanas

A informação de que o caso Americanas ganhou dois delatores aumentou a temperatura política em Brasília. O deputado João Carlos Bacelar (PL-BA), integrante da CPI que apura a fraude, disse que se trata de um fato novo que justifica a prorrogação da comissão, prevista para ser encerrada em setembro.

"Se a CPI for encerrada prematuramente, vai morrer na praia e acabar em pizza. É uma fraude tão elaborada que conseguiram ludibriar até os bancos. Foi um assalto planejado e executado durante vários anos", disse o parlamentar ao UOL.

A fraude bilionária ocorreu através de dois instrumentos:

VERBA DE PROPAGANDA COOPERADA

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É uma operação comum entre varejistas e fabricantes. São transações nas quais a indústria remunera o varejo pelos seus esforços de vendas, seja por propaganda, seja por promoções de diversas formas. Segundo a investigação, as Americanas lançavam registros de VPC de ações de marketing não realizadas, reduzindo artificialmente no balanço dívidas com fornecedores.

RISCO SACADO

Trata-se de uma operação financeira envolvendo um banco, a varejista e um fornecedor. Ao receber a mercadoria, a varejista tem um prazo para pagar o fornecedor. Este último consegue antecipar o recebimento da varejista com um banco, mediante desconto. A varejista, que tem um melhor score de crédito, então, é que passa a ser devedora do banco. O problema é que as Americanas não lançaram grande parte destas operações como dívida com bancos nos balanços.

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