Milagre veio do céu: como helicópteros salvaram vidas no Andraus e Joelma?
Há 50 anos, o edifício Joelma pegava fogo no centro de São Paulo. A cidade ainda estava abalada por outro grande incêndio ocorrido apenas dois anos antes, no Andraus, a cerca de um quilômetro de distância.
Os dois somam centenas de mortes, e mudaram as regras de segurança em edifícios até os dias de hoje.
Grande parte das vidas salvas se deu graças a uma operação espontânea de pilotos de helicópteros. Com sua maioria formada por civis, eles coordenavam como fariam para retirar o maior número de pessoas dos edifícios em chamas.
Andraus: a salvação veio do céu
O primeiro helicóptero a chegar ao local era pilotado por Arnaldo Negreiros, que contou ao UOL como foi o resgate. À época, voava pela Táxi Aéreo Costa do Sol, de propriedade do Bradesco.
Ele realizava um dos voos diários regulares entre a sede do banco em Osasco (SP) e a agência central, no edifício Copan (na capital paulista). Ao decolar do prédio, que é próximo ao Andraus, viu a fumaça e, logo depois, confirmou que ocorria um incêndio no local.
"Permaneci sobrevoando o heliponto [do Andraus] e entrei em contato com a Torre de Controle do Campo de Marte, relatando a ocorrência do incêndio, de grandes proporções. Solicitei, então, ao controlador que desviasse o tráfego de algum avião de pequeno porte daquele local e chamasse os helicópteros para o serviço de resgate", lembra o comandante Arnaldo.
O heliponto do prédio havia sido interditado dias antes devido à grande presença de obstáculos, como antenas. No momento do fogo, as pessoas no topo do prédio arrancaram esses objetos, liberando espaço para o resgate.
Os helicópteros se revezavam em pousar no edifício e levar o maior número possível de pessoas para longe dali em segurança. Foram dezenas de pousos e centenas de pessoas resgatadas.
O mais impressionante desta operação é que ela aconteceu espontaneamente e sem qualquer preparação. Felizmente, não tivemos nenhum incidente. Uma das cenas mais incríveis eram os vários helicópteros na final para pouso no heliponto do edifício Andraus, formando uma verdadeira 'escada'
Arnaldo Negreiros, piloto de helicóptero
A cidade de São Paulo tinha pouco mais de 20 helicópteros à época, e 12 auxiliaram na operação de resgate. Todos eram modelos civis, que funcionavam como táxi aéreo ou transporte executivo, incluindo para órgãos governamentais.
Um dia atribulado na vida de um piloto
Aos 83 anos, Sergio Behring lembra em detalhes como foi aquele dia. Ele trabalhava para uma loja de departamentos e foi convocado pelo seu patrão para comparecer à sede da empresa, recebendo a missão de ajudar no resgate. "Vá para o Campo de Marte e veja o que você pode fazer para ajudar", relata o que disse o seu patrão à época, Gabriel Gonçalves, dono das lojas de departamento Casa Gonçalves.
Os 12 helicópteros prestando apoio voavam em volta do edifício. Quando passavam pela fumaça, se não tinha ninguém na frente, pousavam para retirar as pessoas de cima do prédio.
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Quero receberFoi um dia atribulado na vida de um piloto. Ninguém estava esperando isso, e ninguém tinha treinamento para o que aconteceu. Mas, a grande verdade, é que deu tudo certo
Sergio Behring, piloto de helicóptero
Um helicóptero com maior capacidade, um Bell 204B, tinha preferência de pouso. "A aeronave era pilotada por Olendino Francisco de Souza, que voava pelo governo do Estado de São Paulo. Como ela era maior, a gente dava preferência para que ele pudesse retirar o maior número de pessoas possível do local", diz o piloto, que comandava um Enstrom F-28 e realizou um pouso, retirando duas pessoas do prédio.
Mesmo após o fim do incêndio, algumas pessoas permanecerem na cobertura do prédio. Segundo o Behring, elas não queriam sair pelas escadas.
Joelma: resgate quase impossível
Diferentemente do Andraus, o Joelma não tinha um heliponto. Os pilotos tinham de pairar o mais baixo possível próximo à cobertura.
Essa missão se tornava muito complexa, já que o calor das chamas dificultava que os helicópteros se sustentassem no ar. Somado a isso, as fortes rajadas de vento pioravam as condições de voo.
Um helicóptero se destacou nessa operação devido à sua força e capacidade: Um Bell 205 UH-1D da FAB (Força Aérea Brasileira).
Modelo é conhecido popularmente como Sapão. Ele foi principal helicóptero usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
A Aeronáutica determinou que uma de suas aeronaves do tipo que estava em Santos voasse para São Paulo para ajudar no resgate. A bordo estavam um sargento, que era o mecânico da aeronave, e dois pilotos.
Um deles era o tenente aviador Vanderlei Taketani. Foram mais de 242 pessoas transportadas pelo oficial da FAB e sua equipe nas cerca de três horas de voo.
O militar diz que, nas mais de 20 viagens feitas, eram levadas de 12 a 15 pessoas por vez. Os resgatados eram deixados no heliponto da Câmara Municipal de Vereadores e, dali, outros helicópteros eram responsáveis por levar essas pessoas para hospitais ou outros locais para serem atendidas. Isso otimizava o tempo, permitindo que a aeronave da FAB fizesse mais voos e retirasse mais pessoas do incêndio.
Helicóptero não conseguia pousar. Para o resgate, feito sobre as telhas do Joelma, os pilotos encostavam o esqui (espécie de trem de pouso) do helicóptero na borda do prédio e os oficiais da polícia paulista ajudavam no embarque.
Em um momento crítico, uma das pás do rotor principal do helicóptero bateu na caixa d'água do prédio. Mesmo assim, Taketani e o outro piloto conseguiram administrar a situação para que não houvesse um risco maior.
Particularmente, voar sobre um incêndio é muito arriscado. Quanto mais quente o ar, menos o helicóptero consegue sustentar o voo. Somado a isso, as rajadas de vento tornavam a operação instável, mas os esforços dos pilotos garantiram o sucesso da missão.
Missão era salvar
Taketani se recorda da conversa que teve com um oficial da polícia de São Paulo antes de leva-lo ao topo do prédio. "Tenho certeza que eu te deixo lá [no topo do prédio]. Tirar eu já não sei", disse o militar.
Ninguém ficou para trás. Felizmente, todos que estavam vivos no topo do prédio foram resgatados pelo helicóptero da FAB, diz Taketani.
Todos os pilotos ouvidos pela reportagem negam serem heróis. Dizem, em resumo, que fizeram o que era possível, com as ferramentas que possuíam, e dentro das margens de segurança. Graças a eles, centenas de vidas foram salvas.
Infraestrutura foi decisiva
A principal diferença entre as duas operações seria a infraestrutura para o resgate. Segundo o piloto de helicóptero Saulo Alves Utempergher, enquanto o Andraus possuía um heliponto, o Joelma não contava com a mesma alternativa.
O heliponto do Andraus havia sido interditado um tempo antes da tragédia devido à presença de obstáculos, como antenas, mas acabou sendo usado para o resgate. O Joelma não tinha um local para os helicópteros pousarem, mas uma cobertura com telhas. Um dos primeiros bombeiros a chegarem no local, inclusive, se machucou ao saltar sobre as telhas e cair delas após quebrarem
Saulo Alves Utempergher
Utempergher ainda diz acreditar que o número de mortes no Joelma foi maior devido à lembrança do resgate feito pelo telhado anos antes no Andraus. "As pessoas acreditavam que conseguiriam ser resgatadas de helicóptero e acabaram subindo para o topo do prédio, como ocorreu em 1972. Mas eram situações completamente diferentes, e nem todos puderam ser salvos", diz o piloto.
Homenagens
Nos anos seguintes aos incêndios, os pilotos foram homenageados em diversos locais. Sergio Behring, por exemplo, recebeu o prêmio de piloto do ano de 1972 da Associação Americana de Helicóptero. Também foram agraciados com medalhas de honra de órgãos do poder público.
Igor Sikorsky, considerado um dos pioneiros da aviação, citou o resgate do Andraus em sua última carta antes de morrer. Em agradecimento ao presidente da Fundação para Segurança do Voo, organização internacional sem fins lucrativos, que havia lhe reportado a missão de resgate em São Paulo, ele escreveu:
"Eu sempre acreditei que o helicóptero seria um veículo incrível para uma ampla variedade de missões de salvamento de vidas e, agora, próximo ao fim da minha vida, fico feliz em saber que isso se provou verdade", escreveu Sikorsky. Ele morreu na manhã do dia seguinte, em outubro de 1972, aos 83 anos.
Helipontos ajudam não só em incêndios
Grandes cidades costumam enfrentar problemas sérios de locomoção. A disponibilização de helipontos pode ajudar em diversos tipos de resgate, não só no caso de incêndios, afirma Eduardo Alexandre Beni, diretor técnico da ABOA (Associação Brasileira de Operações Aeromédicas)
"Em uma cidade repleta de prédios e com muito trânsito como São Paulo, o helicóptero é um grande aliado para encurtar distâncias, ganhar tempo e sobretudo para salvar vidas, seja para transportar um órgão, seja para resgatar feridos. Mas para isso acontecer o heliponto é a peça-chave nessa equação", diz Beni.
Atualmente, uma série de normas acaba afastando os interessados em construir helipontos. De acordo com o diretor da ABOA, o principal problema está relacionado a restrições ambientais ligadas ao barulho emitido pelas aeronaves.
Depois dos incêndios do Andraus e principalmente do Joelma, os helipontos passaram a fazer parte da arquitetura da cidade. Entretanto, o tempo passou e hoje, os helipontos, inclusive dos hospitais, padecem por entraves burocráticos e discussões sobre o ruído. O heliponto pode ajudar a salvar vidas, e lembrar desses incêndios reforça sua importância, especialmente em um cenário onde se tem poucos espaços
Eduardo Alexandre Beni
Os incêndios
Em 1º de fevereiro de 1974, o Joelma (atualmente, edifício Praça da Bandeira) pegava fogo na região central de São Paulo. Ao todo, 187 pessoas morreram e cerca de 300 ficaram feridas.
As chamas começaram após um curto-circuito em um sistema de ar-condicionado no 12º andar. Ali funcionava o Banco Crefisul de Investimentos S.A., e cerca de 600 pessoas trabalhavam no local. O incêndio, que foi controlado após seis horas, destruiu 14 dos 25 andares do edifício.
O Andraus pegou fogo na tarde do dia 24 de fevereiro de 1972. Ele teve início com um curto-circuito nos cartazes de propaganda das Lojas Pirani.
Cerca de 330 pessoas ficaram feridas e 16 morreram. O prédio abrigava um conjunto de escritórios, e as chamas tomaram 24 dos 27 andares do Andraus.
Atualmente, o Dia do Piloto de Helicóptero é celebrado no dia 24 de fevereiro. A data foi escolhida devido ao marco do resgate no Andraus, que provou como essas aeronaves podem ser usadas para salvar vidas.
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