Como vivem os negros no clube do 1% mais rico do país
Mônica Valéria Gonçalves, de 47 anos, é servidora pública de um tribunal em Brasília. É casada com um juiz de direito branco.
Júlio César Chagas Santos, de 50 anos, é empresário do ramo de reciclagem no Rio de Janeiro. Enfrentou a pobreza na infância e conquistou seu espaço com muito trabalho e senso de oportunidade.
Sabrina Fidalgo, de 36 anos, é cineasta e já nasceu em família abastada. No balé, era a única negra da turma.
Mais do que a cor da pele, os três têm em comum a classe social: são brasileiros negros que fazem parte do 1% mais rico do país. Frequentam festas, restaurantes, hotéis, cursos, espaços em que são minoria. Geralmente, únicos: na academia onde faz ginástica no Lago Sul, em Brasília, Mônica conta que não há outro sócio negro, como ela.
São exceções também nas estatísticas. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o 1% mais rico é formado por 79% de brancos e 17,4% de negros (classificação usada pelo órgão para os que se autodeclaram pretos e pardos). Os percentuais restantes se referem a amarelos e indígenas.
Métodos
Há diferentes métodos para se chegar ao topo da pirâmide de renda. Um deles considera o 1% mais rico da população brasileiros que ganham mais de R$ 260 mil por ano –o cálculo é do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e da Receita Federal.
Neste grupo, que segundo projeções do IBGE reúne de 1,4 milhão de pessoas adultas, há cada vez mais negros. Em 10 anos, a presença deles aumentou de 12,5%, em 2004, para 17,4% em 2014.
"Mas ainda é pouco. A riqueza no Brasil é majoritariamente branca", diz Marcelo Medeiros, economista e sociólogo do Ipea e uma das maiores autoridades do país sobre o tema renda e desigualdade, referindo-se ao fato de que esses 17,4% ainda estão muito longe de refletir os 53,6% da população brasileira negra, segundo o último censo.
Preconceito econômico e social
Sociólogo e professor da UnB (Universidade de Brasília), Emerson Rocha desenvolveu um estudo com base em dados do IBGE sobre o negro no mundo dos ricos. O que ele descobriu questiona a tese de que o preconceito no Brasil é mais econômico do que racial.
Segundo Rocha, a percepção do racismo aumenta ao longo da distribuição de renda. "Quanto mais alto na escala social o negro subir, maior o peso do racismo, contrariando a ideia de que, no Brasil, o negro que enriquece é socialmente aceito como 'branco'", afirma.
Sua explicação é de que o negro em posições subalternas tende a ser confrontado com menor frequência pelo racismo pelo fato de estar no que poderia ser chamado de "posição natural" - ao sair desse espaço, gera estranhamento, surpresa ou rejeição e está mais suscetível a manifestações de preconceito.
"O que a gente observa é que, à medida que os negros ascendem, novas formas de discriminação vão ganhando espaço. Mesmo com diplomas e carreiras bem-sucedidas, mais do que nunca, ele será um negro. E, para muitos, um corpo estranho e fora do lugar. As estruturas sociais ainda não estão preparadas para isso", avalia Rocha.
A educação é apontada como fundamental para que se diminua a desigualdade na parcela dos mais ricos. "É preciso que mais negros ingressem nas universidades em cursos de elite como Medicina, Engenharia e Direito", exemplifica a socióloga Tatiana Silva.
Em um estudo sobre raça e educação que conduziu no Ipea, a pesquisadora mostra que a desigualdade no ensino superior continua muito alta, apesar de um avanço nas últimas décadas.
Em 2001, 13,3% das pessoas brancas e 3,5% das pessoas negras tinham 12 anos ou mais de estudo. Já em 2012, última pesquisa feita sobre o tema, os números subiram para 22,2% e 9,5%, respectivamente.
"Mesmo evoluindo, os dados indicam que a desproporção continua. Com menos negros nas universidades, há menos deles em posições de prestígio no mercado de trabalho e na sociedade", conclui a pesquisadora.
Autossegregação
Contudo, os estudiosos avaliam que, sozinha, a educação não amplia a presença de negros entre os mais ricos –o racismo continua sendo um forte empecilho.
"Por ser socialmente aceito como norma em lugares de poder, um profissional branco consegue 'vender' um título de médico, advogado ou arquiteto no mercado de trabalho a preços mais altos que seu colega negro. E é geralmente por aí que a gente identifica a discriminação racial e a exclusão do negro nas esferas de poder", diz Rocha.
Ou seja: se um negro se forma em medicina, terá, provavelmente, menos perspectivas nos ramos mais bem pagos da profissão.
Para Rocha, apesar de avanços como a ampliação do acesso às universidades e no serviço público por ações afirmativas como cotas, ainda é preciso desnaturalizar a visão de que o lugar do negro é na pobreza.
Pesquisas apontam que essa visão afeta a sociedade como um todo. Por um lado gera discriminação e, por outro, cria o fenômeno da autossegregação.
Um estudo de 2006 do economista e demógrafo Eduardo Rios Neto, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mostra como, apesar da ascensão econômica, muitos negros, diferentemente de brancos, acabam se restringindo a seus espaços originais de moradia.
A pesquisa revela, por meio de mapas de sete grandes capitais brasileiras, que, apesar de terem condições de morar em um distrito de classe média alta, negros tendem a optar por viver em áreas onde o padrão de renda é inferior –se um branco enriquece, tende a se mudar para uma área de maior status.
Essa separação é mais alta nas classes de renda mais elevada. "Pode-se inferir que a segregação racial entre brancos, pretos e pardos não pode ser atribuída apenas ao status socioeconômico. Fatores como autossegregação e racismo também têm que ser levados em consideração", conclui o estudo, citado pelo Programa de Desenvolvimento Humano da ONU.
Excepcionalidade
Mônica, Júlio e Sabrina são exceções também neste aspecto. Vivem em áreas nobres de suas cidades, frequentam espaços considerados de elite e contarão para a BBC Brasil, nesta série de reportagens, como lidam com a situação excepcional na qual vivem.
Os três descreverão episódios de racismo que enfrentaram ao longo da vida, mas também suas soluções para lidar com o problema.
No caso de Sabrina, que já nasceu em família de alta renda, a educação que recebeu dos pais foi fundamental.
"Meus pais me diziam: você é linda, seu cabelo, sua cor, nossa história. Nunca tenha vergonha de sua raça e nem abaixe a cabeça para nada. Se você quiser ser médica, será. Se quiser ser atriz, também pode ser. Bailarina, miss, o que quiser. Eles diziam que eu era inteligente o bastante para isso", lembra.
Para ela, esse conselho lhe deu a certeza de que as dificuldades enfrentadas pelo negro na sociedade devem, sim, ser devidamente narradas, mas também as inúmeras histórias positivas que existem por aí.
"Incomoda muito esses discursos de que só vivências opressivas são legítimas. Soam quase como uma reafirmação do racismo de que, nós negros, só podemos merecer algo mediante à imposição de uma vivência de dor, humilhação, provações e opressões."
Rocha, da UnB, acrescenta ser necessária uma reflexão sobre o significado de histórias individuais de superação diante das barreiras impostas pela discriminação.
Ele explica que, muitas vezes, essas histórias positivas são usadas para se negar a existência de obstáculos provocados, entre outras coisas, pelo preconceito. "Algo como: se ela conseguiu, todos podem conseguir, então não reclame", diz.
"Mas há outro olhar a ser lançado sobre essas histórias. Um olhar mais generoso e necessário. O olhar da inspiração e do aprendizado. Essas histórias mostram a todos que mulheres e homens negros têm plena capacidade para ocupar os mais diversos espaços em sociedade e que, portanto, o preconceito não tem cabimento", analisa.
"Esse é o sentido por trás da intenção de termos cada vez mais pessoas negras em posições de destaque: construir um país onde sejam comuns os exemplos vivos que contrariam o preconceito. Visibilizar essas histórias é muito importante para mostrar a possibilidade de superação, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo."
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