Bacharel em Direito com paralisia cerebral vende água na praia em busca de sonho
Debaixo de um guarda-sol com listras em tons de azul na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro, Leonardo Mello anuncia em voz alta: "Olha a água gelada!". Dificilmente seu esforço passa despercebido. Leo, como é mais conhecido, tem paralisia cerebral. Ele trabalha como vendedor ambulante há um ano e meio para tentar bancar um sonho: formado em Direito, quer fazer curso preparatório para o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Aos 47 anos, Leo trabalha em um ponto do calçadão a poucos passos do apartamento conjugado em que mora com a mãe e a cadela Pandora, adotada por ele há quatro meses.
O lugar onde vivem faz as vezes de depósito. Dois carrinhos com isopor ocupam o apertado corredor de entrada. Os livros de Direito estão encaixotados, e as estantes foram tomadas por garrafas d'água, latas de refrigerante e cerveja e outras mercadorias que Leo vende na praia.
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"Por causa da falta de recursos, não tenho como estudar. Mas estou ainda em busca, não desisti", diz.
Nascido em Anápolis, Goiás, Leo começou a cursar faculdade no Rio em 2005. A mãe voltou a morar com ele recentemente e o ajuda a tomar conta da barraca na praia.
Ruth Valderez sabia que o filho poderia ter um desenvolvimento comprometido antes mesmo do nascimento. Quando estava grávida de cinco meses, ela tomou um tiro na altura do coração que atravessou o pulmão. O autor do disparo foi o próprio marido, que tinha violentas crises de ciúme após beber.
Na época, Ruth tinha 24 anos. Estava casada há quatro e tinha outros dois filhos.
"Os médicos propuseram um aborto quando verificaram que eu estava grávida. Mas não aceitei, porque entendi que estava preparada para o filho que viesse. Ele tem saúde e tem as suas limitações. A gente foi convivendo e crescendo com isso. Ele foi superando as limitações e hoje é uma pessoa capaz de viver sozinha e se sustentar."
O pai, que ficou preso por cerca de um ano, nunca procurou conhecer Leonardo. Ruth criou os três filhos sozinha, com a ajuda da família.
Rebeldia na infância e adolescência
Diagnosticado com paralisia cerebral leve, Leo teve sequelas na coordenação motora que provocam movimentos involuntários e dificuldade para andar e falar. Também teve perda auditiva severa em ambos os ouvidos.
Ele estudou em uma escola para crianças com necessidades especiais até os médicos atestarem que sua capacidade mental não havia sido afetada. Leo se alfabetizou aos dez anos em Goiânia, para onde a família havia se mudado em busca de um melhor tratamento para o caçula.
"A paralisia cerebral me trouxe, no começo, uma rebeldia, uma revolta. Quando eu via as crianças brincando de pique-esconde, eu sempre era o 'carta branca'. Ou seja, eu não podia brincar. Eu era excluído", relembra.
"Quando cresci, comecei a perceber os olhares... Eu sofri muito bullying na escola. Sofri muita discriminação, muito preconceito. Na adolescência, eu queria namorar, mas não conseguia."
Leo terminou os ensinos fundamental e médio com muita dificuldade, pela falta de agilidade em copiar a matéria e dificuldade de ouvir o que era dito em sala de aula. "Às vezes o professor não tinha muita paciência. Mas eu sempre chegava em casa e revia as matérias", diz.
"Eu era muito dedicado e queria aprender. Eu queria ser uma pessoa independente, livre. Então a minha vontade ajudou muito a minha caminhada."
Com orgulho, conta que fugiu de casa em 1991 para ir ao Rock in Rio. Foi a muitos outros shows com o irmão, que organiza festivais de música no Centro-Oeste.
Apaixonado por andar a cavalo, Leo decidiu prestar vestibular para Veterinária. Não passou e acabou optando por sua segunda opção na época: Turismo.
"Com o decorrer do curso, eu fui percebendo que era uma área que discriminava muito os deficientes, porque o Turismo trabalha muito com a aparência", explica.
Eu me senti frustrado, me senti pra baixo. Mas aí eu reagi e mudei de curso. Eu me mudei para São Paulo e comecei a fazer Direito.
Leonardo Mello
Carreira jurídica: frustração e sonho
Com a mãe recém-aposentada, os gastos com a faculdade particular se tornaram insustentáveis. Depois de um ano estudando em São Paulo, Leo conseguiu uma bolsa de 70% na UniverCidade (faculdade que deixou de existir em 2014), no Rio.
Com direito a passagem interestadual gratuita por ser deficiente, ele pegava a estrada três vezes por semana para assistir às aulas.
"Eu saía de São Paulo à meia-noite e chegava de manhã no Rio. Ia para a aula, ficava até de noite na faculdade e voltava para São Paulo. Fiz isso durante um ano," explica.
"Eu comecei a ter um rendimento acadêmico baixo, muitas dores de coluna por causa das poltronas dos ônibus. Como não tinha dinheiro para comer, eu trazia lá de São Paulo um pão com queijo que a minha mãe preparava e ficava só com um lanche o dia inteiro. Mas a dificuldade me ensinou muita coisa... Me ensinou que, mesmo as coisas sendo difíceis, a gente consegue. Então isso me motivou mais ainda a viver e a correr atrás."
Leo continuou nesse ritmo até se acidentar um dia ao descer as escadas da faculdade. Ele quebrou a tíbia, passou por uma cirurgia e precisou trancar o curso enquanto se recuperava na casa da avó em Goiás.
Foi neste período que decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Alugou um apartamento conjugado no mesmo prédio em que vive hoje e morou sozinho durante dez anos.
Após a formatura, em 2011, Leo trabalhou por quatro anos em uma empresa de telecomunicações, onde fazia protocolos de pedidos judiciais de quebra de sigilo telefônico. Foi dispensado em uma demissão em massa - está há mais de dois anos sem emprego.
"Existe uma discriminação velada. Existem leis que obrigam empresas a contratarem pessoas com deficiência, só que elas contratam, mas não procuram conhecer a capacidade desse indivíduo. Colocam ele ali e pronto, cumpriram a lei. Ainda se tem que discutir muito essa questão do respeito ao indivíduo que tem limitação, mas que tem capacidade para desenvolver uma série de atividades", diz Ruth.
Vitória contra a depressão
Frustrado por não conseguir continuar os estudos e atuar na área em que se formou, Leo teve depressão. Ao vê-lo isolado e triste, sua irmã sugeriu que reagisse e fosse vender balas nas ruas para ter alguma renda.
"Fiquei pensando: 'Ai, mas que vergonha... Um bacharel em Direito sair por aí vendendo balinha? Que decadência'. E comecei a sofrer mais ainda com isso. Porque quando você se forma, você quer status. Você quer melhorar. E quando você vê que toda aquela batalha que você fez... Nadou, nadou para não chegar a lugar nenhum. Isso me deixava triste," explica ele.
Até que um dia decidiu ir para as ruas. Usou os R$ 40 que a mãe havia dado como presente de Natal para comprar uma caixa de isopor onde cabiam dez garrafas d'água. Começou a vender em um cruzamento enquanto o sinal estava fechado, mas passou a sentir muitas dores nos pés por ter que andar rápido entre os carros.
Precisou, então, juntar dinheiro para comprar uma barraca para trabalhar no calçadão. Com a ajuda da sobrinha, que na época tinha 13 anos, estampou em camisetas, chapéus e caixas térmicas: "Água do Leo - GELAAADA".
Ele procura ser mais que um vendedor de água. Ele não é só um ambulante, é um microempresário. Ele pensa no cliente, escolhe o melhor produto, pensa na higiene, personaliza esse atendimento e procura servir o cliente da melhor forma possível.
Ruth Valderez, mãe de Leo
Leo rapidamente ganhou a simpatia de outros trabalhadores da orla, como o gari e rapper João José Luiz Júnior, conhecido como Jota Jr, que o filmou para um vídeo que se tornou viral.
Ele conta com a parceria de guardas municipais para manter seu ponto de venda na orla, enquanto tenta se regularizar. Mas não desiste do sonho de ter uma carreira jurídica.
Além de juntar dinheiro para se preparar para o exame da OAB, Leo ajuda a mãe a pagar dívidas e espera poder comprar um novo par de óculos.
Muito arranhados, os que usa atualmente causam fortes dores de cabeça. O aparelho auditivo que tem - e que conseguiu apenas para um dos ouvidos - também está defasado.
"No início, eu me sentia humilhado. Hoje não, hoje eu tenho orgulho. Por mais humilde que seja a minha barraquinha, pelo menos estou conseguindo atingir meu ideal, que era trabalhar e ocupar o meu tempo. Eu me sinto realizado, mas não completamente, porque a gente nunca se satisfaz. A gente sempre quer mais e mais."
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