A história e as estratégias da Natura, empresa brasileira que comprou a Avon
Quase 80 anos separam o início da história de duas gigantes do setor de perfumaria e cosméticos, a brasileira Natura e a americana Avon - que agora se juntam para formar uma espécie de Ambev do setor, operação originada em 1999 com a fusão das cervejarias Antarctica e Brahma e que hoje reina no segmento de bebidas.
Imaginar que uma pequena loja inaugurada em 1969 na rua Oscar Freire, em São Paulo, adquirisse musculatura suficiente para comprar a gigante Avon, com 133 anos de história, era impensável naquela época. A história que levou a Natura a esse feito, criando uma companhia avaliada em R$ 40 bilhões, focada em venda direta de produtos e em posicionamento socioambiental.
A holding Natura & Co passará a ser líder global em vendas diretas, com cerca de 6,3 milhões de consultores.
Fundada por Luiz Seabra e Jean-Pierre Berjeaut, inicialmente como Indústria e Comércio de Cosméticos Berjeaut, a empresa meses depois adotou o nome de Natura.
O negócio só deslanchou em meados dos anos de 1970 com o fechamento da loja na badalada Oscar Freire, a adoção do sistema de vendas diretas e, em 1979, a chegada de Guilherme Leal à sociedade. Quatro anos depois, o empresário Pedro Passos completou o grupo que levou à construção de uma marca hoje global.
Leal, por sua vez, já era consagrado no meio empresarial, quando, na corrida presidencial de 2010, aceitou ser vice-presidente na chapa de Marina Silva (na época, pelo PV). O executivo chegou a investir milhões em recursos do próprio bolso na chapa, sem resultado efetivo. Em delação premiada, o ex-presidente da construtora OAS acusou Leal de ter participado de um esquema de financiamento ilegal de campanha, com caixa dois. A acusação, no entanto, não resultou em denúncia.
Em 2017, em entrevista à BBC News Brasil, negou as acusações e disse não se arrepender da candidatura, mas agregou que nunca mais participaria diretamente da política.
Abertura de capital
Por coincidência, o feito da Natura ao adquirir a centenária Avon ocorre às vésperas de completar 15 anos de outro movimento ousado da empresa brasileira, a oferta de ações na Bolsa (na época Bovespa, hoje B3), em 26 de maio de 2004.
Naquele momento, o mercado acionário não era dos mais convidativos, com poucas empresas e amargando dois anos sem qualquer IPO (abertura de capital). Além disso, a Natura foi direto para o Novo Mercado, destinado a listar empresas com práticas diferenciadas de boa governança corporativa e que, na ocasião, contava com apenas duas companhias.
A construção de uma marca forte passou exatamente por práticas voltadas à biodiversidade, antecipando uma tendência hoje tão em voga, de construção de marcas com base em ações que reforcem seu engajamento com públicos ou causas demandadas pela sociedade.
Em 2000, a Natura lançou uma linha que incorpora ingredientes da biodiversidade brasileira à formulação de seus produtos. Em 2006, baniu os testes de produtos e de ingredientes em animais e, no ano seguinte, criou o Programa Carbono Neutro, com metas de redução das emissões de gases de efeito estufa em toda a cadeia produtiva. Desde 2010, a empresa conta também com o Instituto Natura, de apoio à educação pública. Outra inovação atribuída à Natura é o uso de refil para suas embalagens.
A compra da Avon pela Natura ocorre após a aquisição de outras duas marcas estrangeiras: a britânica The Body Shop e a australiana Aesop, como parte do projeto de internacionalização da companhia, iniciado em 1982 pelo mercado chileno e depois expandido para toda a América Latina, parte da Europa e EUA.
"O movimento consolida o projeto da Natura de ser um player global atuando agora com mais força em mercados como Leste Europeu e mesmo na Ásia, em que a Avon tem presença marcante", comenta Andres Estevez, analista de varejo do Banco Plural.
Hoje, só como exemplo do potencial da aquisição feita pela Natura, 8% da receita da Avon vêm da Rússia e 11%, do México. Juntas, Natura e Avon passam a ser a quarta maior empresa do segmento no mundo pelo critério de receita líquida. Antes, isoladamente, nenhuma delas figurava entre as 10 maiores.
Musculatura e dívidas
Além disso, a compra da Avon agrega potencial ao negócio tanto do ponto de vista mercadológico quanto de valores. Ao longo do tempo, e em parte pelo forte investimento em inovação e projetos socioambientais, a Natura foi construindo sua marca junto a um público de melhor poder aquisitivo. Agora, com a compra da americana, ganha musculatura suficiente para reforçar seu posicionamento em nichos do mercado voltados a produtos de preços de mais baixos do que os praticados por suas marcas.
Essa estratégia apareceu no comunicado divulgado na quarta-feira (22/5) pela companhia, ao informar que um dos objetivos é "atender seus diferentes perfis de clientes, em diversos canais de distribuição, expandindo sua atuação para novas regiões".
Do ponto de vista de imagem, enquanto a Natura se fortaleceu com ações voltadas à biodiversidade, a Avon tem como marca o empoderamento das mulheres.
"É possível que a Natura dê uma polida no posicionamento da Avon, mas há uma complementaridade de imagem importante com a aquisição da americana que sempre se posicionou ao lado do público feminino e a favor de seu empoderamento, espaço em que a Natura não é tão forte", comenta Estevez.
A expectativa pelo fechamento da operação, acompanhada desde o ano passado pela imprensa, foi marcada por algumas preocupações do mercado. A principal tinha como foco a estratégia da Natura de se alavancar para fazer aquisições e crescer no exterior.
A aquisição mais recente, da The Body Shop em 2017, que pertencia à L'Oréal, foi avaliada em perto de 1 bilhão de euros. Um ano antes, havia concluído a compra das ações da Aesop, operação iniciada em 2013.
Na época, a Natura divulgou em teleconferência que levaria quatro anos para voltar ao nível de endividamento pré-aquisição. O mercado acionário não perdoou e as ações da empresa caíram na bolsa. Só no dia 08 de junho de 2017, após divulgada a operação, recuaram mais de 7%.
Até agora, a Natura vinha contraindo dívida para adquirir as empresas, em níveis considerados altos por analistas de mercado. O receio era de que a empresa piorasse o nível de endividamento para a compra da Avon.
O modelo adotado pela Natura para adquirir a Avon surpreendeu: ficou acertada a troca de papéis das duas companhias e o desembolso de US$ 530 milhões para parte dos acionistas da empresa americana. Os atuais sócios da Natura terão 76% de participação. Os restantes 24% ficarão nas mãos dos atuais acionistas da Avon. Caberá aos acionistas da Avon 0,30 de cada ação da nova Natura Holding.
Outros dois pontos de alerta são citados nas avaliações da mais recente aquisição. Um deles é a dificuldade de integração de duas companhias tão grandes, como Natura e Avon. A mesma dúvida pairava sobre o negócio com a The Body Shop, mas em uma proporção bem menor.
O outro questionamento do mercado faz referência a uma possível sobreposição das consultoras da Natura com as revendedoras da Avon - as duas empresas construírem seus modelos de negócios com base na venda direta, no começo porta-a-porta e agora reforçado pelo comércio online.
As consultoras permanecem respondendo pela principal força de venda da Natura, mas, com um mercado cada vez mais competitivo, a empresa nos últimos anos vem investindo em pontos físicos. A primeira foi em 2016, para muitos com certo atraso, mas neste ano chegam a 38 em todas as regiões do país.
A nova empresa passa a contar, globalmente, com perto de 6,3 milhões de "consultores de beleza", mas no Brasil, segundo Andres Estevez, a holding tem em comum 482 mil revendedoras. "Isso mostra o potencial ainda maior de colocação dos produtos no mercado."
Os números da empresa são grandes: 3,2 mil lojas, faturamento bruto anual superior a US$ 10 bilhões, mais de 40 mil colaboradores e presença em cem países. Como ocorreu com outros gigantes que surgiram da união de concorrentes, como BRFoods (Sadia e Perdigão), Ambev (Brahma e Antarctica), a operação será avaliada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão do governo que analisa se aquisições e fusões de empresas prejudicam a livre concorrência de mercado.
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