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BNDES: o que está em jogo nos dois pontos polêmicos que levaram à saída de Levy do banco

Mariana Schreiber

Da BBC News Brasil em Brasília

18/06/2019 16h03

O presidente Jair Bolsonaro surpreendeu ao revelar no sábado estar "por aqui" com Joaquim Levy, até então presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O economista pediu demissão em seguida.

As raízes do descontentamento estariam no fato de Levy não ter entregado uma promessa de campanha de Bolsonaro: abrir a suposta "caixa-preta" do BNDES, investigando supostas irregularidades ou ilegalidades em operações do banco durante as gestões petistas, como financiamento a empreendimentos no exterior ou empréstimos a grandes empresas brasileiras, a exemplo dos concedidos à JBS.

A isso, teria se somado a irritação do ministro da Economia, Paulo Guedes, com o fato de Levy não estar liberando um repasse maior de recursos do BNDES para a União, dinheiro que ajudaria a fechar as contas públicas.

Para o lugar de Levy foi escolhido o engenheiro e economista Gustavo Henrique Moreira Montezano. Atual secretário especial adjunto de Desestatização e Desinvestimento do Ministério da Economia, ele estaria mais alinhado com os objetivos do governo Bolsonaro.

Mas, afinal, há uma "caixa-preta" a ser investigada no BNDES? E o banco deve ou não reduzir suas operações e devolver um volume maior de recursos à União? Entenda abaixo melhor essas duas questões.

'Caixa-preta' a ser investigada?

"A caixa-preta vai ser aberta na primeira semana (de governo)! Não tenha dúvida disso. Se não abrir a caixa-preta, ele está fora, pô", disse Bolsonaro em novembro de 2018, ao comentar a escolha de Levy como presidente do BNDES para o site Antagonista.

"Alguns falam que não tem caixa-preta. Eu quero a suspensão de todos os sigilos do BNDES, sem exceção", afirmou ainda, na ocasião.

No alvo de Bolsonaro, estão operações controversas realizadas pelo banco de fomento durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010) e Dilma Rousseff (2011 a abril de 2016), período em que o BNDES ganhou musculatura e atingiu patamares recordes de operação. Desde 2015, porém, o banco já abriu detalhes dessas operações, antes sob sigilo.

"Essa questão está atrasada em pelo menos três anos. Não existe qualquer caixa-preta. Dizer isso é chamar de idiotas os quatro presidentes (que já comandaram o banco após o impeachment de Dilma Rousseff)", afirma o economista Paulo Rabello de Castro, um dos três que presidiram o BNDES durante o governo de Michel Temer.

Operações recordes e controversas

Lula e Dilma viam o banco como um instrumento importante para alavancar o crescimento econômico do país. Sob gestão petista, o governo federal repassou recursos volumosos ao BNDES para que ele pudesse ampliar seus empréstimos - isso era feito por meio da emissão de títulos públicos, o que implica em aumento da dívida.

Entre 2008 e 2014, por exemplo, foram injetados no banco R$ 416,1 bilhões com essa finalidade, além de mais R$ 24,7 bilhões com destinação específica para compra de ações da Petrobras com o objetivo de capitalizar a estatal.

O resultado foi que o BNDES atingiu recordes de desembolsos (crédito concedido), chegando ao recorde de R$ 190 bilhões em 2013. A partir de 2016, esses valores caíram bruscamente, ficando em R$ 69,3 bilhões em 2018.

O crescimento das operações veio acompanhado de alta nos resultados. Em valores atualizados pela inflação, o lucro anual do banco passou de uma média de R$ 2,7 bilhões entre 2001 e 2004 para R$ 11,7 bilhões entre 2005 e 2014. Desde 2015, tem ficado abaixo de R$ 7 bilhões, refletindo o enxugamento.

Muitas das operações realizadas durante esse boom dos governos do PT, porém, viraram alvo de questionamentos.

Algumas delas foram os empréstimos para obras realizadas por empreiteiras brasileiras no exterior, em países como Venezuela, Cuba e Moçambique. As dívidas não têm sido pagas - o débito dos três países por causa dos atrasos já soma mais de R$ 2 bilhões.

Em Moçambique, por exemplo, reportagem da BBC News Brasil de 2017 mostrou que o aeroporto construído pela Odebrecht com um empréstimo de US$ 125 milhões (R$ 486 milhões na cotação atual) do BNDES e inaugurado em 2014 estava às moscas - projetado para atender 500 mil passageiros por ano, recebia menos de 20 mil.

Além das obras financiadas no exterior, outra fonte de polêmica sobre o BNDES durante os governos do PT foram os empréstimos para grandes empresas crescerem e se internacionalizarem - conhecida como política dos "campeões nacionais".

Entre elas, a processadora de carne JBS, cujos executivos confessaram em acordos de delação terem praticado corrupção, e a operadora de telefonia Oi, que passou por recuperação judicial.

Para completar, não havia transparência sobre essas operações, já que o BNDES alegava que isso violaria o sigilo bancário das empresas. No entanto, após grande pressão de órgãos de controle e da opinião pública, o banco foi obrigado a abrir seus dados a partir de 2015, ainda no governo Dilma.

Naquele ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o BNDES atendesse a uma solicitação do Tribunal de Contas da União (TCU) para detalhar operações financeiras de R$ 7,5 bilhões com o grupo JBS. Com a decisão, o banco passou a atender a todos os pedidos do órgão de controle.

Após a publicação desta reportagem, a JBS enviou nota esclarecendo que os aportes do banco na companhia "foram investimentos e não empréstimos". Em três momentos - 2007, 2008 e 2009 -, totalizando R$ 5,6 bilhões. "O BNDESPar, braço de participações do BNDES, é sócio da JBS S.A. com 21,3% das ações", segundo a nota. A JBS enfatiza, ainda, que o banco teve lucro com as compras de ações.

Ainda em 2015, o BNDES criou em seu site uma área de transparência, em que detalha as operações, e publicou recentemente o Livro Verde, com um balanço de 340 páginas da sua atuação entre 2001 e 2016.

Nesse documento, o BNDES procurou também responder às críticas sobre o financiamento de obras em países alinhados ideologicamente com os governos do PT. O banco afirma que não financia obras, mas "exportações de serviços de engenharia" do Brasil, já que os recursos emprestados para governos estrangeiros só podem ser usados para pagar empresas brasileiras.

EUA como destino

Nesse sentido, o Livro Verde traz um ranking de financiamento de vendas para o exterior em que os Estados Unidos lideram como principal comprador de exportações financiadas pelo BNDES, com US$ 14 bilhões em 15 anos, resultado puxado pelo crédito para compras de aeronaves da Embraer.

Por causa dessas medidas de aumento da transparência, economistas críticos à política do BNDES durante os governos do PT, como Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional, em Washington, não veem mais uma "caixa-preta" a ser aberta.

"O BNDES passou por uma reestruturação profunda de sua governança ainda no governo Dilma. Não tem caixa-preta alguma", afirma de Bolle.

"Do ponto de vista de acesso às informações, não há mais obstáculos", afirmou também à BBC News Brasil Júlio Marcelo de Oliveira, procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União.

Questionado pela reportagem sobre quais informações ainda faltariam ser reveladas pelo banco, o Ministério da Economia respondeu que não se manifestaria.

Segundo o deputado federal Ubiratan Sanderson (PSL-RS), a expressão "caixa-preta" do BNDES se refere aos financiamentos que o banco concedeu durante os anos de 2003 a 2015 - anos nos quais o PT estava no governo federal.

Eleito em 2018, Sanderson é hoje vice-presidente da CPI do BNDES, da Câmara. O colegiado, que investiga a gestão do banco nesse período, convocou Levy para prestar esclarecimentos como testemunha no dia 26 de junho.

"O que se busca é saber se os empréstimos concedidos a empresas como a JBS e a Odebrecht ocorreram mediante propina, ou não", disse Sanderson à BBC News Brasil.

"Quais os empréstimos foram concedidos, isso todos já sabem. A questão é saber se houve prevaricação (um tipo de crime contra a administração pública), ou corrupção passiva da parte das pessoas que tinham o poder de dizer sim ou não a esses empréstimos", diz o deputado, que é policial federal.

Na avaliação de Sanderson, Levy, por ter sido ministro de Dilma, "pode não ter se sentido tão à vontade para prestar essas informações".

Investigações

Supostas ilegalidades e irregularidades no BNDES têm sido alvo de investigação no Ministério Público Federal e no TCU.

Um relatório do TCU, por exemplo, apontou no final do ano passado suposto superfaturamento de US$ 911 milhões em financiamentos do banco a exportações de empreiteiras brasileiras na área de energia, valor que corresponde a 41,7% do total financiado (US$ 2,2 bilhões).

A auditoria foi feita em 17 contratos da instituição com Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Camargo Corrêa para financiar a construção de nove hidrelétricas e duas linhas de transmissão em Angola, República Dominicana, Moçambique, Equador e Costa Rica. O caso ainda não foi julgado.

Já a Operação Bullish, desdobramento da Lava Jato que investigou suposto favorecimento à JBS em empréstimos de cerca de R$ 8,1 bilhões, levou o Ministério Público Federal a denunciar autoridades do governo PT e funcionários do banco este ano.

No mês passado, porém, o juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara Criminal do Distrito Federal, acolheu apenas as acusações contra o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e o ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho, que se tornaram réus. Já a denúncia contra cinco funcionários do banco foi rejeitada por falta de provas que sustentassem as acusações do Ministério Público.

Para Monica de Bolle, a decisão do governo de usar o BNDES para financiar grandes empresas não era a melhor política econômica, já que elas teriam condições de buscar outras fontes de recursos. No entanto, ressalta, isso não significa que as operações planejadas pela equipe técnica do banco não fossem corretas.

"A Dilma mandou o BNDES emprestar para grandes empresas brasileiras. Pela decisão estritamente técnica, o BNDES viu sentido em fazer isso porque eram empresas sólidas, que tinham capacidade de pagamento e, portanto, não representavam risco ao banco", ressaltou.

Já o economista Arthur Koblitz, vice-presidente da Associação de Funcionários do BNDES (AFBNDES), afirma que as acusações levantadas pelo TCU são "frágeis" e defende o trabalho técnico do banco.

"Muitas ações do TCU têm viés. Discordam da política pública adotada e tentam criminalizar as operações", crítica.

Devolução de recursos

Outro fator que teria causado o desgaste de Levy seria não ter atendido a demanda de Guedes para acelerar a devolução de títulos públicos usados para capitalizar o banco. Economistas críticos dessas operações adotadas pelo governo do PT dizem que ela gerou prejuízos à União, já que o Tesouro captou recursos no mercado com juros mais altos do que cobra do BNDES.

Desde a gestão Temer, o governo adotou uma política de reduzir o tamanho do BNDES e acelerar a devolução desses recursos. Com a queda de arrecadação por causa do fraco desempenho da economia nos últimos anos, a devolução desses recursos tem evitado rombos ainda maiores nas contas públicas - desde 2014, a União registra déficits bilionários.

De 2015 a 2018, já foram devolvidos R$ 309 bilhões. Um acordo firmado no fim do ano passado previa que a devolução seria reduzida para um patamar de cerca de R$ 25 bilhões ao ano entre 2019 e 2022. Paulo Guedes, porém, quer descartar esse cronograma, para que haja a devolução de R$ 126 bilhões já neste ano.

A economista Monica de Bolle considera correta a decisão de enxugar o tamanho do BNDES. Sua análise é que o crescimento exagerado do banco gerou distorções na economia, como aumento dos juros cobrados pelos bancos privados que assumiram operações mais arriscadas, na medida em que o BNDES financiou grandes empresas.

Nos últimos anos, o banco mudou essa estratégia e tem buscado ampliar o volume de financiamento para os "campeões anônimos" - micro, pequenas e médias empresas. Outra estratégia é priorizar investimentos em infraestrutura e saneamento básico, setores em que o governo vê maior potencial de retorno social e econômico.

De Bolle, porém, defende que a devolução de recursos seja feita com cuidado, dentro do planejamento do banco, para não provocar um desequilíbrio nas suas operações.

"O BNDES recebeu esses recursos e concedeu empréstimos de longo prazo. É preciso esperar essas operações amadurecerem para que os recursos sejam devolvidos", defende a economista.

Rabello de Castro também crítica a descapitalização acelerada do banco. Ele contesta a visão de que os repasses do BNDES foram negativos para o Tesouro, lembrando que a instituição registrou lucros vultosos, o que gerou pagamentos ao governo.

"De 2006 a 2018, foram R$ 200 bilhões pagos ao Tesouro pelo BNDES em dividendos e impostos sobre lucro. Mas sobre isso o governo faz cara de bobo", argumentou.

Após a redução das operações de crédito, os ganhos seguem altos impactados por operações de impacto passageiro - a venda de ações que o banco detém por meio do BNDESpar. No primeiro trimestre deste ano, o lucro foi recorde, de R$ 11,1 bilhões, impulsionado pela venda de papéis da Petrobras, Fíbria e Vale.

A expectativa é que o governo dê continuidade a essas vendas dentro da sua política de privatização e redução do tamanho do Estado, mas economistas alertam que um "saldão" apressado pode derrubar preços das ações, prejudicando as empresas.

*colaborou André Shalders