Partido Verde e agricultores alemães querem bloquear acordo UE-Mercosul
Nos moldes atuais, o princípio de acordo de livre comércio entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, anunciado na última semana, tem grandes chances de ser rejeitado no continente europeu. Deputados do Partido Verde na Alemanha, no Reino Unido e no Parlamento da UE, além da Associação Alemã de Agricultores, já se mobilizam nos bastidores para impedir a ratificação do documento.
Parlamentares verdes afirmaram à BBC News Brasil não confiar que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) vá cumprir os compromissos de proteção ao meio ambiente previstos no acordo --como implementar o Acordo Climático de Paris--, uma vez que trato com o Mercosul não prevê mecanismos legais para, de fato, punir o Brasil por desmatamento excessivo ou por violações de direitos humanos.
Agricultores alemães, por outro lado, falam em "injustiça" por terem que competir com produtos de "qualidade e custos de produção inferiores" vindos do Mercosul.
Para entrar em vigor, o acordo precisa passar por uma revisão legal de ambas as partes e pelo crivo dos parlamentos europeu e dos 28 países do bloco.
Descrito como um "momento histórico" pelo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, o acordo reúne um mercado de 780 milhões de pessoas e deve levar a UE a economizar 4 bilhões de euros por ano em tarifas comerciais.
Entre outros pontos, o documento elimina a maioria das tarifas para exportações industriais da UE ao Mercosul, incluindo automóveis (que pagam atualmente 35%), autopeças (entre 14% e 18%), maquinário (14% a 20%), produtos químicos (até 18%) e produtos farmacêuticos (até 14%). Empresas europeias também poderão participar de contratos de vendas para governos do bloco sul-americano.
Segundo o "acordo em princípio", o Mercosul liberalizará 91% de suas importações da UE em até dez anos, enquanto o bloco europeu fará o mesmo para 92% de compras do Mercosul. Os países sul-americanos se comprometem a eliminar gradualmente 93% das tarifas sobre exportações agro-alimentares da UE.
O bloco europeu liberalizará 82% das importações agrícolas, mas estabelecerá quotas tarifárias para produtos específicos, como carne bovina (até o limite de 99 mil toneladas), aves (até o limite de 180 mil toneladas) e açúcar (até 180 mil toneladas).
Em alta na Europa, verdes fazem pressão
Depois do seu melhor resultado nas eleições europeias deste ano, que aumentou a sua bancada de 52 para 74 deputados, o Partido Verde alemão criticou o acordo. Na Alemanha, onde a legenda já aparece em primeiro lugar em pesquisas de intenção de voto, parlamentares verdes acreditam que o documento irá contribuir para o desmatamento na Amazônia.
"Esse acordo é uma péssima decisão para o meio ambiente e para o combate às mudanças climáticas. No final das contas, é para trocar carros europeus por carne bovina da América do Sul", disse à BBC News Brasil a deputada do parlamento alemão Katharina Dröge, porta-voz dos Verdes para políticas comerciais.
No entanto, ela diz acreditar que milhares de toneladas adicionais de carne bovina da América do Sul na UE "demandam mais áreas de pastagem e acelerarão o desmatamento da Amazônia" e a "apropriação de terras da população nativa".
Para o especialista em cooperação internacional e deputado do parlamento alemão Uwe Kekeritz, o acordo vai aumentar os problemas ambientais do Brasil, embora "o governo Bolsonaro seja a razão pela qual a situação está piorando".
"Como há grandes interesses econômicos, preocupações com danos ambientais e direitos humanos ficarão em segundo plano", completa Anna Cavazzini, deputada alemã no Parlamento Europeu.
As críticas, contudo, não partem apenas dos Verdes da Alemanha. Molly Scott Cato, deputada europeia britânica integrante da delegação da UE para o Mercosul, classifica o acordo como uma "catástrofe".
"Faremos todo o possível para convencer o Parlamento Europeu a não apoiá-lo até que haja proteções legalmente aplicáveis para a Amazônia e sua população nativa, até que tenhamos sanções legalmente executáveis."
Medidas pró-meio ambiente são legalmente compulsórias?
No capítulo sobre desenvolvimento sustentável, as partes concordam em não "baixar os padrões trabalhistas ou ambientais para atrair comércio e investimento". Também fica acordado o compromisso "com uma linguagem forte para implementar efetivamente o Acordo de Paris" e combater o desmatamento.
O capítulo menciona ainda um "procedimento específico de solução de controvérsias", no qual "uma queixa sobre não conformidade é considerada primeiramente em consultas formais do governo". Caso não haja uma resolução, um painel independente de especialistas "pode ser solicitado para examinar o assunto e fazer recomendações".
Os deputados verdes, contudo, garantem que não existem mecanismos para forçar os países do Mercosul a, de fato, cumprir esses compromissos. Eles apontaram como exemplo preocupante o fato de o desmatamento na Amazônia ter aumentado quase 60% em junho de 2019 na comparação com o mesmo período de 2018, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
"Na forma atual, o acordo não inclui nenhum instrumento para forçar efetivamente Bolsonaro a proteger o meio ambiente e os direitos humanos ou a cumprir o Acordo de Paris. Não existem mecanismos de sanção eficazes. Bolsonaro agora promete que vai cumprir o Acordo de Paris, mas tudo o que ele fez desde que chegou ao poder aponta em outra direção", argumenta Dröge.
'Pura retórica'
Kekeritz também é cético sobre a inclusão desses mecanismos de sanções. "Temos que ser honestos: este acordo ajuda nossa indústria, em especial as indústrias automobilísticas, farmacêuticas e químicas alemãs. Como um governo na Alemanha, ou na UE, pressionaria a América do Sul apenas por causa de questões ambientais? Eles vão ignorar", afirma.
Para Cavazzini, a linguagem do capítulo de desenvolvimento sustentável é "pura retórica", composta por "chavões" para evitar críticas.
Durante a cúpula do G20 no Japão, no fim de junho, Bolsonaro ficou irritado com declarações da chanceler alemã, Angela Merkel, que havia manifestado preocupação com a proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos no Brasil.
"Nós temos exemplos para dar para a Alemanha sobre meio ambiente, a indústria deles continua sendo fóssil, em grande parte de carvão, e a nossa não. Então, eles têm a aprender muito conosco", disse o presidente.
Para Kekeritz, Bolsonaro está correto em sua afirmação, mas a Alemanha tem evoluído na transição para energias renováveis. "Ainda contamos com combustíveis fósseis, o que é uma situação muito ruim. Contudo, tivemos desenvolvimentos importantes em energia renovável. Mas, de fato, é verdade o que Bolsonaro disse: ainda não somos um bom exemplo para o resto do mundo."
Cerca de 25% da energia gerada na Alemanha em 2018 veio da queima de lignito, ou carvão marrom, que também empregou 20 mil pessoas. "A Alemanha ainda é a maior produtora de carvão [marrom] do mundo. Isso às vezes é esquecido", reconhece Cavazzini.
A deputada enfatiza, entretanto, que o país vem reduzindo o seu uso e que obteve avanços em aspectos como proteção florestal. Atualmente, um terço da Alemanha é coberto por florestas, um aumento de 1 milhão de hectares nos últimos 40 anos.
"Não creio que Bolsonaro esteja certo ao sugerir que só é permitido falar de meio ambiente ou valores se tudo estiver perfeito [em casa]. Esse não é o caso. É sempre importante conectar-se internacionalmente e pensar em como proteger bens comuns como a floresta tropical."
Acordo contraditório?
A Europa vem planejando políticas ambientais ambiciosas nos últimos anos. Em 2018, por exemplo, a Comissão Europeia sugeriu uma estratégia de longo prazo para neutralizar as emissões do continente até 2050. Alemanha, França, Noruega e Reino Unido também anunciaram o fim da venda de automóveis movidos a combustíveis fósseis para entre 2030 a 2050.
Neste contexto, o acordo com o Mercosul pode soar como uma contradição. Além disso, nos termos atuais, o documento não é unanimidade na Europa. A França disse não estar disposta a ratificá-lo. Na Alemanha, a medida enfrenta a resistência da associação de Agricultores. Bélgica e Irlanda são outras potenciais resistências.
"Pelo que vimos do texto até agora, tenho certeza de que podemos construir uma maioria no Parlamento para bloqueá-lo. Mesmo se fracassarmos aqui, há países membros como a França que disseram claramente que o acordo de Paris deve ser protegido. Podemos pensar em outros países, como a Irlanda, que têm uma grande indústria de carne bovina. Estou preocupada com o meio ambiente, mas obviamente os agricultores europeus estão em pé de guerra", diz Cato.
Na Alemanha, onde o setor industrial deve se beneficiar muito do acordo, Kekeritz crê que o texto será ratificado. Mas haverá resistência. "Tentarei influenciar colegas dos social-democratas e outros parlamentares. Talvez [bloqueá-lo] seja possível, se as eleições nas três regiões do leste alemão forem bem-sucedidas para os Verdes."
Prejuízos aos agricultores europeus
O documento despertou temor entre agricultores europeus, cujo custo de produção é mais alto que o do Mercosul devido a regulações que estabelecem padrões de qualidade elevados para uso de pesticidas, organismos geneticamente modificados e bem-estar animal.
A Associação Alemã de Agricultores teme que o acordo implemente um "duplo padrão de produção" na Europa, embora a UE argumente que os parâmetros de qualidade, segurança e "provisões sanitárias" dos alimentos importados respeitarão às regras do bloco.
"Os agricultores europeus não estão muito satisfeitos. É claro que nossos concorrentes no Mercosul são mais competitivos, pois os padrões não são tão altos", afirma Simon W. Schlüter, chefe de assuntos internacionais da associação.
A entidade não é contra o acordo, mas o considera "injusto e desequilibrado". "Os agricultores da Europa têm muito a perder. Quando se trata de açúcar, carne bovina e aves, as cotas tarifárias são muito altas. Isto é demasiado para o momento ou a introdução progressiva deve ser feita num período de tempo mais longo, para que os agricultores da UE tenham a possibilidade de se adaptar", diz Schlüter.
De acordo com o ruralista alemão, também não é justo que as "florestas tropicais no Brasil sejam derrubadas" para facilitar a agricultura, enquanto a Europa "implementa medidas antimudanças climáticas que custam muito dinheiro para todo o setor". Além disso, destaca, "não é possível que no Brasil mais de 150 novas substâncias de produtos fitofarmacêuticos sejam aprovadas e dentro da União Europeia percamos mais substâncias ativas".
Schlüter enfatiza que o acordo ainda será analisado nos países do bloco e alguns podem forçar a Comissão Europeia a revê-lo. "O processo político é sobre representação. Trata-se de ser ouvido e, claro, vamos ser barulhentos ao pedir a governos no Conselho, bem como aos parlamentos, para implementar mudanças."
"Nós, como agricultores alemães, dependemos do comércio. Isso não significa que iremos totalmente contra o acordo do Mercosul. Não é isso que estamos pedindo. Estamos pedindo algo mais justo", afirma Schlüter.
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