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O cruzeiro em que economistas ocidentais ajudaram a criar 'socialismo de mercado' na China

Mais de 60 economistas e funcionários do governo participaram da conferência que durou seis dias - Banco Mundial
Mais de 60 economistas e funcionários do governo participaram da conferência que durou seis dias Imagem: Banco Mundial

Cristina J. Orgaz - BBC News Mundo

BBC News Mundo

29/07/2019 12h24

Há 34 anos, no dia 2 de setembro de 1985, um navio de luxo cruzou as águas do rio Yangtzé, que corta a China de Leste a Oeste.

A bordo da embarcação, estavam alguns dos mais brilhantes economistas ocidentais da época, incluindo um prêmio Nobel, e funcionários do Banco Mundial convidados pelas autoridades chinesas, responsáveis por promover a viagem.

As reuniões e conferências realizadas durante o cruzeiro S.S. Bashan, que durou seis dias, mudaram o curso da história.

Por trás daquele encontro internacional de alto nível estava a política do líder chinês Deng Xiaoping.

Foi esse mandatário, conhecido pelo pragmatismo, que conduziu a transformação da República Popular da China - de pobre e isolado em 1978, o país se tornou uma pujante potência que compete hoje com os Estados Unidos pela liderança mundial.

A primeira medida adotada por ele foi romper "drasticamente" com a ideologia maoísta e sua vertente de socialismo, modelo que prevaleceu na China até sua chegada ao poder em 1978, explica Barry Naughton, professor da Universidade da Califórnia.

Para Xiaoping, não importava se o sistema econômico chinês era comunista ou capitalista, mas sim se funcionava.

"Não importa se o gato é preto ou branco desde que cace ratos", afirmou o chinês em um discurso na conferência da Liga da Juventude Comunista da China.

Incentivada por Xiaoping, a China abriu mão, no fim da década de 1990, da chamada economia planificada para avançar em direção à economia de mercado.

Sob o lema da "reforma e abertura", o mandatário rompeu com o que estava estabelecido e promoveu uma série de reformas econômicas, focadas na agricultura, na liberalização do setor privado, na modernização da indústria e na abertura da China ao comércio exterior.

Se na economia planificada o Estado determina o tipo, a quantidade e o preço das mercadorias que serão produzidas, na economia de mercado são as forças da oferta e da demanda que estabelecem o que é comprado e vendido.

As reformas que Xiaoping propôs seriam consolidadas mais tarde por seus sucessores. Mas, segundo analistas e historiadores, foi ele quem estabeleceu as bases deste modelo, não sem antes uma batalha ideológica dentro do Partido Comunista Chinês.

Em sua cruzada para modernizar e fazer crescer a economia, o líder chinês incentivou sua equipe a aprender com as potências ocidentais.

"Devemos estudar as experiências bem-sucedidas dos países capitalistas e trazê-las para a China", disse ele à sua equipe de colaboradores.

Esforço de abertura

Em sua estratégia, as autoridades chinesas convidaram ao país delegações da Hungria, dos Estados Unidos, do Japão, do Reino Unido, da Alemanha Oriental e da Argentina, entre outros países.

Xiaoping também fez viagens para fora do país. Ele queria montar um modelo próprio que combinasse Estado e mercado, público e privado, a proteção aos produtos nacionais, mas também medidas para atrair investimentos estrangeiros.

Como parte do plano, alguns dos livros mais relevantes de economia e finanças da época foram traduzidos do inglês para o chinês.

Milhares de estudantes chineses também foram enviados para as melhores universidades do Ocidente. Segundo Janos Kornai, professor emérito da Universidade Harvard, nos EUA, uma alta porcentagem desses estudantes retornou ao país ao fim do curso.

"A enorme quantidade e variedade de economistas chineses que contribuíram com ideias trazidas do exterior é um dos aspectos mais extraordinários da transformação econômica da China", explica Julian Gewirtz, pesquisador de Harvard, autor do livro Unlikely Partners: Chinese Reformers, Western Economists and the Making of Global China ("Sócios Improváveis: reformistas chineses, economistas ocidentais e a criação da China global", em tradução livre).

Momento-chave da abertura

Para marcar esta abertura, Zhao Ziyang, primeiro-ministro do país que deu andamento às reformas econômicas propostas por Xiaoping, organizou a reunião de cúpula em uma embarcação para traçar este plano junto ao Banco Mundial, à Comissão Estatal para a Reconstrução do Sistema Econômico e à Academia Chinesa de Ciências Sociais.

O encontro aconteceu a bordo do navio S.S. Bashan, que zarpou em 2 de setembro de 1985 do cais de Chaotianmen, na cidade de Chongqing.

Com 90 metros de comprimento, reformado e decorado com detalhes requintados, o navio avançou entre os desfiladeiros que emolduram a passagem do rio nesta parte do país com um espaçoso convés estranhamente vazio.

Havia dezena de mentes brilhantes, nacionais e estrangeiras, a bordo da embarcação.

Mais de 60 economistas e funcionários importantes do governo participaram da conferência.

Entre eles, estava o renomado economista britânico Alexander Cairncross e o americano James Tobin, prêmio Nobel de Economia em 1981.

Mas, segundo Gewirtz, a participação que mais impressionou as autoridades chinesas foi a do professor húngaro Janos Kornai, que dava aulas na Universidade Harvard.

Seu livro sobre a escassez nas economias socialistas vendeu mais de 100 mil cópias na época.

Suas ideias foram reproduzidas em trabalhos acadêmicos, reportagens na imprensa e discursos oficiais.

As colocações do economista tcheco Ota Sik e do economista polonês Wlodzimierz Brus também repercutiram.

Todos os três nasceram em sistemas socialistas e conheciam de perto o processo institucional, social e econômico que envolve deixar para trás uma economia planificada.

O que as autoridades chinesas aprenderam?

Os participantes lotavam todas as manhãs o salão principal para ouvir as apresentações.

Diariamente, dois economistas renomados apresentavam um painel sobre a melhor maneira de transformar o sistema econômico do país.

Segundo Gewirtz, pesquisador de Harvard, as palestras eram seguidas de horas de debate e perguntas dos participantes.

Tobin falou sobre que medidas macroeconômicas os países desenvolvidos usavam para gerenciar a demanda agregada.

Kornai explicou os pontos mais difíceis de uma transição do socialismo para o capitalismo e, especialmente, sobre a importância da coordenação com os mercados por meio da macroeconomia.

Eles passaram os dias em várias conferências discutindo as estratégias e as reformas que a China precisava adotar.

Discutiram sobre política monetária, inflação e o papel dos bancos centrais.

Levantaram ainda os problemas enfrentados pelas autoridades quando passaram do sistema comunista para uma economia orientada para o mercado.

"Os especialistas ocidentais ofereceram ideias sobre como introduzir mais elementos de mercado no sistema chinês e modernizar o papel do governo na economia. O encontro de Bashan foi o cenário mais importante de todos os intercâmbios realizados nesse período", explica em seu livro.

As ideias discutidas ali levariam a uma mudança na China rumo à economia de mercado socialista mista que existe hoje e que impulsionou o boom econômico da China.

Aprendizado seletivo

"Esta não é a história de missionários que foram à China para mudá-la. Foram os chineses que cuidaram desse processo de transformação do sistema econômico do país", explica Gewirtz. "A transformação econômica da China ocorreu nos próprios termos deles."

Tanto que Cairncross, a bordo do cruzeiro, escreveu em seu diário que as autoridades chinesas estavam muito curiosas a respeito da economia de outros países. Mas observou: "Não tenho dúvidas de que eles estão estudando cuidadosamente o que fazer e não necessariamente vão aceitar conselhos".

Uma coisa é estarem dispostos a ouvir, e outra é aceitar tudo ao pé da letra.

Mas o fato é que, após o lançamento das reformas econômicas do líder chinês Deng Xiaoping, o Produto Interno Bruto (PIB) da China começou a subir até alcançar uma cifra de dois dígitos.

"Nesta conferência, chegou-se a um consenso sobre muitos aspectos da transição e da reforma macroeconômica da China, dando impulso à reforma do sistema", explicou o Centro de Cooperação Internacional, instituição pública chinesa ligada à Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reformas.

Segundo eles, este encontro forneceu fundamentos teóricos essenciais para o modelo de "mercado regulado pelo Estado, empresas guiadas pelo mercado", introduzido em 1987, e o conceito de "economia de mercado socialista", introduzido em 1992. "Este encontro marcou a globalização da macroeconomia da China."

Em seu livro, Gewirtz concorda com a ideia de que as contribuições dos economistas ocidentais foram fundamentais.

"As ideias se infiltraram na ideologia e nas políticas do Partido Comunista. E quando analisamos as ideias dos legisladores e economistas chineses que guiaram a transformação, descobrimos que o papel dos economistas ocidentais foi crucial", acrescenta.

E foi assim que a conferência realizada em um cruzeiro em 1985 teve um grande impacto no mundo de hoje.

Quatro décadas depois de todo esse processo de abertura, a transformação econômica da China é algo sem precedentes no mundo.

À medida que o gigante asiático amadureceu, o crescimento do seu PIB desacelerou significativamente.

Se em 2007 era de 14,2%, em 2018 esse percentual foi reduzido para 6,6%.

Mas se olharmos mais para trás, desde 1980, o tamanho da economia chinesa foi multiplicado por 42.

Até 2030, os economistas estimam que o crescimento do país será reduzido a aproximadamente um terço do percentual atual.

Mas ainda assim seria suficiente para superar os Estados Unidos como a maior economia do mundo.


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