Núcleo 'familiar astrológico' do governo Bolsonaro pode prejudicar economia, diz Eduardo Gianetti
"Pensar que o liberalismo econômico funcionará isoladamente das políticas para o meio ambiente é um erro grave e uma visão tacanha do liberalismo, coloca em risco a própria economia e até o futuro da agenda liberal defendida pela equipe econômica do governo Bolsonaro. Medidas como a anunciada na semana passada, em que foi derrubado um decreto que proibia o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal, podem prejudicar não só o meio ambiente, mas também o futuro do agronegócio e a própria agenda liberal defendida pela equipe capitaneada pelo ministro Paulo Guedes, pelo menos na visão do economista e cientista social Eduardo Gianetti.
"A área econômica não devia se omitir em relação a isso", afirmou Gianetti, PhD em Economia pela Universidade de Cambridge, ex-professor da USP e do Insper, em entrevista à BBC News Brasil.
Gianetti, responsável pelo programa econômico da candidata derrotada à Presidência Marina Silva (Rede), classifica como "tenebroso" o núcleo do governo protagonizado pelos filhos do presidente e por ministros simpatizantes às ideias do escritor Olavo de Carvalho, em especial nos setores do meio ambiente, educação e relações exteriores, que não podem ser desconectados da visão econômica.
"Achar que o liberalismo econômico pode existir independentemente do que acontece nessas áreas é um equívoco grave. A questão do meio ambiente, por exemplo, se for muito mal encaminhada, como vem sendo, vai isolar o Brasil da economia mundial. Vamos passar a sofrer boicotes", diz o economista. "Achar que vai tratar educação, relações internacionais e meio ambiente como brinquedo do núcleo familiar astrológico é um equívoco gravíssimo".
O economista falou à BBC News Brasil em um intervalo de seu isolamento em uma pousada na cidade histórica de Tiradentes, em Minas Gerais, onde se dedica a escrever seu próximo livro e tem passado a maior parte de 2019. Fugindo radicalmente do barulho e das distrações da cidade grande, já é o sexto livro que ele escreve por lá. "É uma concentração total. Eu pego meu celular, ponho dentro da minha maleta, ponho a minha maleta dentro do armário, fecho o armário a chave e guardo a chave dentro da gaveta. Meu computador não liga internet. É para trabalhar. Eu recomendo".
Gianetti diz que nenhum presidente brasileiro desde a redemocratização — FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro — tratou como prioridade o que teria sido fundamental para garantir ao país um futuro menos que medíocre: dar educação e infraestrutura básicas para a população, como saneamento e transporte público, para formar trabalhadores mais produtivos e cidadãos plenos. "O desafio civilizatório secular do Brasil é a formação de capital humano".
Em sua próxima obra, o autor de Trópicos Utópicos (2016) e O Elogio do Vira-lata e outros ensaios (2018), tratará da ética no livro O Anel De Giges, referência a uma fábula que aparece no livro dois da República de Platão. Na história, um pastor descobre um anel que tem o poder de torná-lo invisível e, por isso, inimputável. "É um livro sobre ética, e a pergunta é o que leva alguém a ser honesto mesmo quando não há nenhum tipo de punição por ser desonesto. O Brasil é um país em que os políticos acham que ganham o anel de Giges quando chegam ao poder".
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil — O sr. já falou que o principal problema do Brasil é a desigualdade de oportunidades. Por que?
Eduardo Gianetti — A condição de vida em que a pessoa nasce é determinante na sua trajetória. Isso é desigualdade de oportunidades. O filósofo político americano John Rawls, de Harvard, propõe um teste da boa sociedade, que é o principio da escolha sob o véu da ignorância. Nessa proposta, a sociedade ideal é a seguinte: você não nasceu ainda, você não sabe qual vai ser a sua condição ao nascer, o nível de renda da sua família, sua família, seu gênero, a cor da sua pele, sua orientação sexual e você precisa eleger uma sociedade na qual você gostaria de nascer, considerando que tudo pode acontecer com você.
Quais seriam as características da sociedade em que você escolheria nascer? É um experimento mental, os filósofos gostam muito desse tipo de exercício. São duas: a sociedade em que a condição do menos favorecido é menos ruim, porque você quer se proteger da pior possibilidade, e a que existe maior permeabilidade para que você possa ascender e melhorar a sua condição com seu próprio esforço. O Brasil está muito longe de aprender isso. Eu não sou a favor da igualdade de resultados, que é improdutiva e injusta ao mesmo tempo.
BBC News Brasil — Em que todos tivessem o mesmo padrão de vida?
Eduardo Gianetti — Em que todo mundo chega igual independente do que se empenhou, do quanto fez, do talento, de quanto valoriza. Felizmente nem todos valorizam o sucesso financeiro da mesma maneira. É bom que o mundo seja assim. Tem pessoas que preferem criar, tem pessoas que preferem ter relações afetivas, uma vida mais rica socialmente. E tem alguns que preferem ser muito focados em sucesso econômico, e também é bom que alguns sejam assim, desde que não seja todo mundo. [...] É natural que haja desigualdade nessa situação, são valores diferentes. O que não dá para aceitar é uma situação em que o ponto de partida já defina de antemão, antes de qualquer escolha que se faça, os vitoriosos e os perdedores no campo econômico. É nisso que o Brasil está.
Tem uma fábula que é uma graça. Duas crianças estão caminhando pela rua e uma delas percebe que tem duas maçãs, uma pequena e uma grande no chão, e entrega a menor pra amiga. A criança que ganha a maçã pequena começa a reclamar: você me deu a maçã pequena, você é tão injusta, você ficou com a maçã grande e me deu a pequena, achei que você fosse minha amiga. Mas a criança que deu a menor disse: peraí, se você tivesse pego as duas maçãs, o que teria feito? Eu teria dado a maior para você. Então por que você está reclamando?
E, no entanto, a que está reclamando tem absoluta razão. Porque uma coisa é essa resultante acontecer de maneira voluntária, porque uma delas abriu mão. A outra é essa desigualdade ser imposta de uma sobre a outra. O que está em jogo não é o resultado, mas o caminho até ele. O caminho tem que ser respeitado. O que o Brasil não tem, definitivamente, é essa legitimidade no caminho.
BBC News Brasil — Por que?
Eduardo Gianetti — O problema vem da nossa formação, do modelo de colonização que prevaleceu na história do Brasil, de monocultura, escravocrata. Um país que retardou absurdamente a abolição da escravatura e que fez a abolição com muita leviandade, muita inconsequência. Para muitos, até piorou a situação. Teve escravo que se ofereceu de volta, porque a vida ficou ainda pior. As distorções do período longo de escravidão não desaparecem da noite para o dia, elas se perpetuam. O caso do Brasil talvez seja um dos países em que as consequências da escravidão têm mais permanência, porque de certa maneira até hoje as consequências da escravidão estão conosco na desigualdade, na desigualdade de oportunidades, principalmente.
BBC News Brasil — Muitos economistas defendem que o crescimento econômico reduziria a desigualdade. O senhor concorda?
Eduardo Gianetti ? Não. Isso é discutido há muito tempo e não só no Brasil. A tese é: primeiro é preciso fazer o bolo crescer, para depois distribuir. Tem uma lógica: com a má distribuição de renda você tem mais poupança, porque a propensão de quem ganha mais é fazer mais poupança. A lógica desse raciocínio furado é que você precisava primeiro fazer a poupança, para daí fazer o investimento, para fazer o bolo crescer, e aí distribuir. O que está errado: isso não leva em conta a formação de capital humano.
Se a distribuição de renda e de oportunidades for muito desigual, como é no Brasil, você vai estar sacrificando o principal insumo de um país, que é o capital humano. Gente inteligente, qualificada, bem preparada, formada para agregar inteligência àquilo que faz. Se você não formar capital humano está condenado a ter um país pobre.
O bolo não vai crescer se não tiver capital humano. O bolo não cresce, o país fica medíocre, se você tem uma oferta abundante de mão-de-obra não qualificada. O desafio civilizatório secular do Brasil é a formação de capital humano.
BBC News Brasil — Passada a recessão, muitas pessoas entraram na pobreza, em um momento em que o país está envelhecendo. Que consequência isso traz pro futuro?
Eduardo Gianetti — Um quadro que já é ruim se agrava pela regressão em um país que começava a dar os primeiros passos para reduzir a desigualdade e dar oportunidades. E que depois de uma recessão tão brutal como o país viveu, condena um número crescente de brasileiros a viver abaixo da linha da pobreza extrema. É um retrocesso. Agora, nós cometemos um erro grave, espero que o Brasil tenha aprendido.
Na época da bonança, quando o superciclo das commodities estava nos favorecendo e o Brasil obteve um adicional de riqueza que o mundo lhe transferiu, pela valorização das commodities, em vez de usarmos isso de maneira prudente e inteligente, formando capital humano, nós fizemos uma farra do consumo via crédito, via distribuição direta de renda. Sem dar a devida atenção à infraestrutura humana, ao saneamento, à educação. Nós consumimos de maneira inconsequente uma chance que o mundo nos deu de aprimorar e melhorar de maneira permanente, consistente, nossa capacidade de gerar riqueza e bem-estar.
BBC News Brasil — Devíamos ter investido em quê, naquela época?
Eduardo Gianetti — A falta de prioridade em ensino fundamental no Brasil durante o ciclo tucano-petista é uma das coisas mais incompreensíveis que eu imagino.
BBC News Brasil — Por que esta etapa do ensino, especificamente?
Eduardo Gianetti — Por que se não tiver isso bem resolvido, o resto não vai. E saneamento básico. Estamos em um país em que quase a metade dos domicílios não tem coleta de esgoto. Então o governo transfere bilhões para o Eike Batista, para a JBS, a extravagância foi enorme de usar o dinheiro do BNDES para fazer campeões nacionais, a Oi, entre outros. E não transfere recursos para resolver essas questões muito elementares do século XIX, que são ensino fundamental de qualidade, saneamento básico e transporte público. A coisa do automóvel foi um escândalo também, um monte de incentivo ao setor automotivo para favorecer o transporte de uma elite que tem automóvel no Brasil, enquanto o transporte público foi deixado totalmente de lado e deteriorado. A produtividade continua extremamente baixa, mas nós tivemos a oportunidade de dar um salto e perdemos. O mundo nos deu uma enorme chance e jogamos fora por afã imediatista. Essa recessão pela qual o Brasil passou em 2015 e 2016 foi uma consequência de manter artificialmente as taxas de crescimento em um momento em que não era mais possível fazê-lo.
BBC News Brasil — No governo Dilma?
Eduardo Gianetti — O governo Dilma foi de uma incompetência épica. O primeiro mandato do Lula foi a melhor surpresa de redemocratização, na minha avaliação. Mostrou alternância de poder no Brasil, com serenidade, com racionalidade na política econômica e na política pública. O Brasil parecia que tinha ganhado uma maturidade adquirida. O governo Dilma tentou forçar a mão e gerou uma mega recessão. O enredo do governo Dilma é muito parecido com o governo Geisel. No sentido de que o Geisel pegou a economia pós um boom em um momento em que a economia global não estava mais favorável e quis manter o milagre econômico artificialmente usando poupança externa; gerou a crise da dívida externa. A Dilma pegou uma economia embalada por um ciclo de commodities e tentou manter o embalo do crescimento, mas, em vez do gasto externo, usou o fiscal, perdeu o controle da despesa pública. Gerou a crise fiscal com a qual nós estamos enrolados até hoje. A diferença entre Dilma e Geisel é que um foi dívida externa e o outro foi dívida bruta interna.
BBC News Brasil — O sr. diz que não acertamos nas prioridades nem no governo FHC, nem Lula nem Dilma. E depois da Dilma?
Eduardo Gianetti — Depois da Dilma nós estamos em guerra de guerrilha estamos para fazer o ajuste fiscal. No Temer criou-se a regra de ouro, o teto do gasto, começou a controlar o gasto, parou de crescer o déficit primário. E agora assistimos a continuação desse filme com esse conjunto muito amplo de medidas anunciadas pelo Paulo Guedes. Se não fizesse isso ia se gerar uma crise financeira, estávamos nesse caminho. Se o Brasil não criar o mínimo de ancoragem fiscal, ou seja, um horizonte em que a dívida pública ao longo do tempo se estabiliza, uma estabilidade da relação dívida/PIB daí virava argentina. Temer e Bolsonaro estão desesperadamente procurando ancoragem fiscal na área econômica.
BBC News Brasil — E a parte social? Essa multidão de novos pobres era inevitável por causa da recessão?
Eduardo Gianetti — Não. Não era inevitável. É compreensível que aumente, mas se se nós tivéssemos políticas públicas bem desenhadas poderíamos atenuar e até reverter muito esse quadro desastroso de piora da desigualdade de piora da pobreza extrema.
BBC News Brasil — Então esse foi um erro dos últimos governos?
Eduardo Gianetti — É um problema que não é simples, porque hoje 93% do orçamento do governo Federal é gasto obrigatório. A margem de manobra para usar o dinheiro de maneira melhor é muito pequena e, para ajustar o fiscal, vai se comprimindo os gastos discricionários, inclusive o investimento. É complexo. Agora o que não dá para entender é que o Brasil tem uma carga tributária de 33% do PIB; de cada três reais de valor que o Brasil cria com o trabalho, um vai para o governo. Temos um déficit nominal, a diferença entre o que o Brasil arrecada e gasta, de 6% do PIB. Então estamos em um país em que 39% de todo o valor criado pela sociedade é intermediado pelo Estado brasileiro. E o ensino fundamental é deplorável, a saúde pública é vergonhosa, metade dos domicílios não têm saneamento básico, a segurança pública é péssima, como a educação. Tem muita coisa errada no setor público brasileiro.
BBC News Brasil — Com tantos vulneráveis, o Estado não tem que ser grande?
Eduardo Gianetti — O que não dá para tolerar é que com essa carga tributária e esse déficit nominal os recursos não apareçam para a sociedade, esse é o problema. Mas porque isso não acontece? Por que gasta com a Previdência dos ricos, o Estado gasta com ele mesmo.
BBC News Brasil — Para manter privilégios?
Eduardo Gianetti — Na Previdência é privilégio. A conta de juros, que está caindo agora, também é muito alta. Você tem 5.570 municípios no Brasil, eu falo isso há 10, 15 anos. Cidades que não têm sequer um posto de saúde decente têm câmara de vereador. Aí você pega educação, o Estado brasileiro gasta uma fatia alta das verbas que destina a educação para financiar a educação dos ricos no ensino superior. Eu não me conformo com isso, é regressivo. Tem que ter uma regra de ouro em que ninguém deixa de fazer universidade porque não pode pagar. Para mim é uma regra de ouro. Mas quem pagou o ensino médio e fundamental porque para de pagar quando chega na parte mais cara da educação? Não dá para justificar. Isso é privilégio também.
BBC News Brasil — Falando do governo Bolsonaro. O senhor diz que um desafio importante, junto com a desigualdade e educação, é o meio ambiente. Como tem visto a atuação nessa área?
Eduardo Gianetti — O governo Bolsonaro tem três vetores, três núcleos razoavelmente bem definidos. O núcleo econômico, liderado pelo Paulo Guedes, tem o núcleo militar, que cuida das áreas de segurança, de geopolítica, e tem o núcleo que eu chamo familiar astrológico. O menos ruim dos três, na minha opinião, é o núcleo econômico. Está longe do que eu imaginaria ser o melhor para o Brasil, mas tem boas intenções e está caminhando na direção correta. O núcleo familiar astrológico é tenebroso, e ele domina áreas muito importantes, que não podem ser desconectadas do resto.
BBC News Brasil — Que áreas?
Eduardo Gianetti — Meio ambiente, educação, direitos humanos. Achar que o liberalismo econômico pode existir independentemente do que acontece nessas áreas é um equívoco grave. A questão do meio ambiente, por exemplo, se for muito mal encaminhada, como vem sendo, vai isolar o Brasil da economia mundial. Vamos passar a sofrer boicotes.
BBC News Brasil — Pode atrapalhar o acordo com a União Europeia?
Eduardo Gianetti — Vai atrapalhar, o agronegócio brasileiro vai ser prejudicado. Vai ser prejudicado por boicotes internacionais e, no longo prazo, vai ser prejudicado por desequilíbrio ecológico interno. Não tem agronegócio sustentável sem a floresta Amazônica de pé.
BBC News Brasil — O governo autorizou na semana passada, por exemplo, o plantio de cana na Amazônia e no Pantanal, revogando um decreto de 2009. Que achou?
Eduardo Gianetti — Isso é um retrocesso inaceitável, a área econômica não devia se omitir em relação a isso.
BBC News Brasil — Não dá para a equipe econômica considerar que, se avançar a agenda liberal, tudo vai dar certo?
Eduardo Gianetti — Isso é uma visão míope e tacanha do liberalismo. E o próprio agronegócio precisa perceber que o futuro dele vai se comprometer se não soubermos usar bem o nosso patrimônio ambiental. O regime pluviométrico não só do centro-oeste, mas do Brasil, do qual depende o agronegócio brasileiro, está muito ligado à preservação do patrimônio ambiental da Amazônia. Podemos estar deflagrando mecanismos de feedback que se autoalimentam que vão tornar o Brasil menos produtivo ainda naquele setor que segura nossa balança comercial e nossa produtividade, que é o magnífico agronegócio. Não dá para separar. Educação é um problema totalmente econômico gritante. Não é um problema de aluno e professor, de ideologia. É uma questão de formação de de capital humano, para qualquer modelo econômico.
BBC News Brasil — Vê efeito da segmentação do debate? Meio ambiente virou coisa de esquerda, contas públicas de direita...
Eduardo Gianetti — Essas divisões são grandes artificialismos são convenções. Educação é um assunto fortemente econômico, meio ambiente fortemente econômico, assim como, para essas áreas o bom andamento da economia também é fundamental, senão não tem recursos para investir em educação, para fazer a preservação ambiental, tudo isso está interligado. Achar que vai tratar educação, relações internacionais e meio ambiente como brinquedo núcleo familiar astrológico é um equívoco gravíssimo.
BBC News Brasil — O senhor participou da campanha eleitoral, em momentos diferentes. Acredita que a situação estaria melhor se Marina tivesse sido eleita?
Eduardo Gianetti — Ninguém é bom juiz em causa própria. Mas não precisava ser tão ruim quanto está sendo.
BBC News Brasil — O senhor vê risco para a democracia, mantendo o caminho atual?
Eduardo Gianetti ? Eu vejo risco sim. Eu vejo um risco de polarização raivosa na eventualidade de Lula saindo da cadeia (A reportagem falou com o economista na quinta-feira, 7, antes da saída do ex-presidente, que foi no dia 8). Aliás, nada interessa mais ao grupo bolsonarista do que repolarizar com o Lula de novo ameaçando. Não estou dando opinião, mas que interessa ao grupo radical a repolarização raivosa porque aglutina, eu não tenho dúvida. Esse é um risco.
Outro risco é um conflito entre poderes. A crise institucional tem um enredo conhecido. Nós temos três poderes na República, no momento em que um poder tomar uma decisão soberana que é pertinente e outro poder não respeitar, está estabelecido um impasse. São três poderes, pode acontecer de muitas maneiras.
Dado o perfil do atual Executivo, a possibilidade de um impasse assim acontecer até o fim do mandato não é nula, acho que não é nem desprezível. Então precisa prestar muita atenção e tomar muito cuidado. À toa à toa nós podemos caminhar e já tivemos no passado muito perto disso.
BBC News Brasil — Por exemplo?
Eduardo Gianetti — Por exemplo, quando o Supremo julgou o início do processo em relação ao Aécio Neves, que já tinha sido absolvido no Congresso. Se o Supremo votasse pelo início do processo ele ia perder o mandato e a decisão do Supremo ia afrontar o que o Congresso tinha decidido. Eu me lembro perfeitamente do constrangimento da presidente do STF, que era a Carmen Lúcia, claramente votando contra a consciência dela para não esticar a corda e não correr o risco de um impasse constitucional. Ela votou pela não-abertura do processo contra o Aécio Neves; absolutamente transparente o constrangimento para não correr o risco de criar um impasse constitucional em um momento de fragilidade do país. E nós tivemos muito perto disso.
BBC News Brasil — A saída do Lula e essa repolarização aumentam esse risco?
Eduardo Gianetti — A resposta para a sua pergunta é sim.
BBC News Brasil — E a Lava-jato? Qual o saldo dela?
Eduardo Gianetti — Altamente positivo, apesar da decepção de todos nós que torcemos pela Lava-Jato de saber que, no afã de fazer justiça, houve um atropelo do devido processo legal. No afã de fazer justiça. Agora eu acho a Lava-Jato absolutamente um ponto de inflexão em um quadro de impunidade crônica dentro do qual o Brasil sempre viveu.
BBC News Brasil — Continua positivo?
Eduardo Gianetti — Altamente positivo. Não obstante o desapontamento com esse afã justiceiro que atropela em alguns momentos o devido decoro da legalidade.
BBC News Brasil —Como o senhor vê o futuro?
Eduardo Gianetti — Pelo menos uma vantagem existe em se ter uma certa idade. Eu já vi muita coisa. Já vi o país completamente desesperançado.
BBC News Brasil — Quando?
Eduardo Gianetti — Houve momentos do governo Sarney, para não falar na ditadura. Vamos pegar da redemocratização para cá. O confisco que o Collor fez foi uma coisa de uma violência. Eu não sou uma pessoa de certezas muito pronunciadas, mas tenho uma tranquilidade. O que o Brasil está vivendo é um capítulo sombrio, mas que vai terminar.
Nós entramos nisso por conta dessa polarização raivosa que se instaurou e que nos levou para uma interdição da possibilidade de diálogo construtivo. Olhando em retrospecto o que chama muita atenção para mim politicamente é o seguinte: PT e PSDB são dois agrupamentos surgidos da oposição à ditadura militar e com programas que não são tão diferentes assim. Têm muitas áreas de vizinhança e de proximidade. PT e PSDB disputaram seis eleições seguidas entre si. Jamais foram capazes de coordenar e cooperar em nome dos seus objetivos comuns.
Preferiram governar com o que há de mais sinistro da política brasileira do que conversar, ao invés de trabalharem juntos. Isso nos trouxe para o colo desse retrocesso. O ponto de virada foi o desastre econômico da Dilma. Eu espero que tenha ficado o aprendizado de que se nós do campo democrático não soubermos trabalhar juntos, nós vamos favorecer os radicais da pior espécie.
BBC News Brasil — Mas vê alguém trabalhando nesse sentido?
Eduardo Gianetti — Eu espero que sim e acho que é o que precisa acontecer. Se nós nos fragmentarmos e nos dividirmos e ficarmos incapazes de mostrar que somos a maioria da sociedade, porque somos, vamos abrir o caminho para o flanco. Eu estudei muito na última eleição o que aconteceu na república de Weimar, na Alemanha, que abriu o caminho pré-Hitler. Hitler foi eleito. Por que? Porque os sociais-democratas e os comunistas passaram a ver um no outro o seu pior inimigo. Os comunistas chamavam os sociais-democratas de social facistas, e os social-democratas achavam que o comunismo ia levar para o bolchevismo. Quem aproveitou isso e quem cresceu com essa briga? O nazismo.
BBC News Brasil — E isso pode se reverter já nas próximas eleições?
Eduardo Gianetti — Eu não tenho bola de cristal para ver isso, mas eu acho que lideranças novas podem reencontrar o espaço do diálogo de quem tem uma visão compartilhada sobre democracia, sobre direitos humanos, sobre redução da desigualdade.
BBC News Brasil — O senhor tem conversado com alguém? Luciano Huck?
BBC News Brasil — Não. Mas eu acho que vão começar a surgir lideranças, isso é natural. Mas espero que tenhamos aprendido que se não houver cooperação, entendimento entre os que são contra o radicalismo, especialmente de direita, o radicalismo prevalece. Essa onda que elegeu Bolsonaro por muito pouco não elegeu Marina em 2014.
O desapontamento com o status quo da política brasileira esteve muito perto, mas muito perto, de eleger a Marina em 2014, que era uma saída democrática e construtiva. Pela violência da campanha, a Marina não teve a chance de sequer chegar ao segundo turno. Mas esteve muito perto por um momento depois da morte do Eduardo Campos. Essa mesma onda de raiva, desapontamento e rejeição com a política brasileira elegeu o Bolsonaro. Nós saímos da pior maneira possível.
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