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FHC: Taxar seguro-desemprego é 'ridículo'; agenda 'ultraliberal' de Bolsonaro pode gerar revolta como ocorreu no Chile

Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que taxar seguro-desemprego é medida "ridícula" de políticos que vivem numa "bolha". - BBC News Brasil
Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que taxar seguro-desemprego é medida 'ridícula' de políticos que vivem numa 'bolha'. Imagem: BBC News Brasil

Nathalia Passarinho

Da BBC News Brasil, em Londres

26/11/2019 13h21

Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não é apenas a polarização que pode levar o Brasil a crises e protestos. Na avaliação dele, a agenda econômica "ultraliberal" do governo Jair Bolsonaro é um fio 'desencapado' capaz de gerar revoltas populares, como as que ocorrem no Chile.

Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, em Londres, FHC elogiou a reforma da Previdência, mas não poupou palavras para criticar outras propostas de ajuste fiscal lançadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como a taxação do seguro-desemprego.

"Na situação do mundo hoje, um fio desencapado pode levar a um curto-circuito. Eu quero isso? Não, mas pode acontecer. Eu acho que essa política ultraliberal dificilmente se implanta na sociedade brasileira", disse.

O ex-presidente classificou "de ridícula" a criação pelo governo de uma alíquota de 7,5% sobre o benefício concedido aos desempregados. Para ele, a medida é fruto da mente de políticos que vivem 'numa bolha' e desconhecem a 'realidade brasileira'.

"Eu sou mais liberal que estatizante, mas não sou ultraliberal. Acho que tem que ter equilíbrio e noção das necessidades concretas das populações. Não adianta ter uma fórmula bem-feita, porque ela não se aplica a todas as sociedades. Taxar seguro-desemprego chega a ser quase ridículo."

Na conversa com a BBC News Brasil, Fernando Henrique Cardoso também criticou os novos "rumos do PSDB", disse que, se estivesse no lugar do deputado Aécio Neves (PSDB-MG) deixaria o partido voluntariamente e sugeriu um novo nome para disputar a Presidência pela sigla em 2022: Eduardo Leite, atual governador do Rio Grande do Sul, que tem 33 anos.

Cardoso também falou da soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele avalia que o discurso adotado por Lula desde que deixou a cadeia instiga a "radicalização" e "beneficia" o presidente Jair Bolsonaro.

"Para o presidente Bolsonaro, talvez seja uma oportunidade para voltar a polarizar. Pelo discurso que eu ouvi do presidente Lula, o presidente Bolsonaro pode dizer: 'Tá vendo, olha o perigo'. Então aumenta a radicalização."

Sobre Bolsonaro, FHC disse que o presidente instituiu um "governo de família", que "tropeça sozinho" e que vê "inimigos onde não tem". Ele também criticou referências recentes da família Bolsonaro ao AI-5, instrumento da ditadura militar editado em 1968 que fechou o Congresso e cassou as liberdades individuais

"Acho lamentável que as pessoas falem sobre o AI-5 como se fosse uma coisa banal. Não foi, foi grave, fez mal à democracia. Conseguimos repor a democracia no Brasil e temos que lutar para preservá-la", disse FHC.

No início do mês, o deputado Eduardo Bolsonaro disse que "se a esquerda se radicalizar" um novo AI-5 poderia ocorrer. Na segunda (26/11), foi a vez de Paulo Guedes dizer: "Não se assustem então se alguém pedir o AI-5". O ministro da Economia fez o comentário ao comentar sobre falas recentes do ex-presidente Lula.

Fernando Henrique Cardoso está na Inglaterra a convite do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, para falar sobre os 50 anos de seu livro mais consagrado como sociólogo: Dependência e Desenvolvimento na América Latina.

A palestra ocorre num momento em que a América Latina parece distante da 'eterna' promessa de desenvolvimento. Crises na Colômbia, Bolívia e Chile, e a polarização no Brasil são exemplos do momento de convulsão política e social na região.

Leia os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - O senhor dará uma palestra em Oxford em comemoração aos 50 anos de um de seus livros mais consagrados como sociólogo, Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Isso acontece num momento em que grande parte dos países da América do Sul vive crises seríssimas, principalmente Chile, Bolívia e agora Colômbia. O que essas convulsões revelam sobre o momento político da região e essa eterna luta da América Latina pelo desenvolvimento?

Fernando Henrique Cardoso - É verdade, mas o que acontece nesse momento não é só na América Latina. Há uma agitação política no mundo todo. Agora a questão é mais de comunicação. O mundo contemporâneo, a internet, a conversa instantânea mudou muito as coisas, o que levou a uma grande transformação também na ação política. As pessoas se juntam de repente. Um fio desencapado pega fogo. Os partidos - mas não só os partidos- também as outras instituições, têm menos vigência, menos valor para conduzir o comportamento. As pessoas se relacionam diretamente. Essa transformação está hoje colocando em crise a democracia representativa.

Na entrevista à BBC News Brasil, FHC sugeriu nome de governador do RS para candidato do PSDB à Presidência e disse que Dória ainda tem que demonstrar qualidades para ser presidente - BBC News Brasil - BBC News Brasil
Na entrevista à BBC News Brasil, FHC sugeriu nome de governador do RS para candidato do PSDB à Presidência e disse que Dória ainda tem que demonstrar qualidades para ser presidente
Imagem: BBC News Brasil

BBC News Brasil - O que explica essa onda de nacionalismo de direita, que a gente vê não só na Europa, mas também nos EUA e há quem inclua Jair Bolsonaro nessa lista também?

FHC - Acho que o que explica isso é o medo do futuro. Houve um avanço grande da democratização. Essas pessoas ficaram assustadas. Segundo, o que é essa globalização? Vai dar emprego? Há uma certa insegurança e isso leva a impulsos defensivos. 'Ah, deixa eu fechar o mercado'.

Nos Estados Unidos, 'tem muito mexicano aqui. Manda embora. Estão levando nossas empresas para a China, vamos ficar aqui dentro.' É uma onda de protecionismo, de nacionalismo e de exclusão. Uma onda negativa. Eu não participo desse ponto de vista.

BBC News Brasil - Então as pessoas e os Estados acabam se fechando como forma de defesa diante do medo do desconhecido...

FHC - Acho que é isso. É um medo do futuro. E diga-se de passagem, é um futuro complicado. Ao mesmo tempo em que você tem as novas técnicas de produção... A internet e a inteligência artifical roubaram tudo isso. Mas você poupa mão-de-obra e concentra renda. As pessoas têm medo.

BBC News Brasil - Vamos agora falar sobre o governo Jair Bolsonaro. Já estamos no final de novembro. Em pouco mais de um mês o governo completa um ano. Como o senhor avalia a gestão do presidente? Quais seriam os maiores erros e acertos desse governo?

FHC - Veja, eu não votei no Bolsonaro. Vamos primeiro esclarecer as coisas para que não haja confusões. Primeiro, eu acho que o governo não é homogêneo. Tem o setor econômico, que tem uma visão e tenta botar na prática essa visão, que é uma visão liberal-ortodoxa. Tem o setor da produção que cuida da agricultura e da infraestrutura. E tem o setor que é ideológico, que acha que está defendendo a cristandade contra o comunismo, que é algo que não tem mais, onde que está?

Eu não sei. Mas eles pensam que tem. E há muito tempo que não se vê um governo tão de uma família. A família tem peso. Então, não pode-se dizer que o governo está caminhando numa certa direção. Ele fala as coisas. Faz menos do que fala e o que fala assusta. Meio-ambiente, por exemplo.

A retórica é de que não é um tema importante, e é. Na prática (em termos de medidas concretas) não mudou muita coisa, mas mudou. Porque quando o governo fala, o presidente fala, o ministro fala, as coisas começam a acontecer. A queimada aumentou, o desmatamento aumentou. Eu sei que é cíclico e há momentos com mais queimadas. Mas além de ser cíclico, você tem um ingrediente que é a desatenção aparente do governo para essas questões.

BBC News Brasil - Enxerga pontos positivos?

FHC - A reforma da Previdência. Eu tentei fazer, perdemos alguma coisa como a questão da idade mínima. Tivemos que inventar o fator previdenciário. Agora foi aprovada a idade mínima. Acho que isso é um mérito importante do governo. Eu procuro fazer uma oposição equilibrada. Você não pode dizer que está tudo errado. E pegaria mal um ex-presidente jogar toda a culpa no atual.

Mas independentemente disso o governo hesita muito e depende da área. Na área da educação, meu Deus, me preocupa porque você não vê rumo. E agora você vê um diálogo do ministro da Educação que é inaceitável. Mexe com a mãe não sei de quem. Coisas que não têm cabimento. Então, tem áreas bem retrógradas e outras são construtivas. Por incrível que pareça os militares são os mais moderados. E precisamos buscar algum tipo de moderação no Brasil.

É contra nossa cultura, o nosso espírito não é de ruptura. E o governo é muito de rupturas. Fala palavras pesadas, acha inimigo onde não tem, tropeça sozinho. E não tem uma maioria estável na Câmara. Nesse último ponto, eu não responsabilizo o governo, porque os partidos estão num processo de desintegração. Governar não é fácil.

BBC News Brasil - O senhor foi bastante criticado na época do segundo turno por não ter se posicionado, não ter declarado apoio a um candidato especificamente. Inclusive acadêmicos do mundo inteiro, de Harvard, Oxford, assinaram uma carta aberta pedindo que o senhor se manifestasse. O senhor se arrepende daquele silêncio?

FHC - Não. Ficou uma situação de tal natureza que eu não concordava com nenhum dos dois polos. Por que? Porque o governo do PT, principalmente na fase da presidente Dilma Rousseff, com quem eu nunca tive pessoalmente nenhum problema, foi muito desorganizado.

Levou o Brasil a uma recessão muito grande. Também tem uma certa tendência hegemonista do PT. Eu não concordo com isso. Tampouco concordava com Bolsonaro. Quando você não concorda, tem que dizer que não concorda. Ninguém é obrigado a optar entre o menos ruim e o pior.

O candidato do PT, o Haddad, eu tenho relações pessoais com o Haddad. Fui almoçar com ele, fui ao teatro com ele, quando ele era prefeito. Mas a posição que ele representava no segundo turno... E em vários estados, o PSDB disputava com o PT. Como que eu iria me manifestar pelo PT?

A posição de quem tem certa projeção política não pode ser um impulso pessoal, tem que ser pensado. É verdade que minha ligação com o PSDB é simbólica. Sou presidente de honra. Não tenho nenhuma ligação orgânica com o PSDB nem estou de acordo com muita coisa que é feita pelo PSDB, nem sou responsável por isso. Ainda assim, tenho uma certa simbologia e não posso a toda hora desconsiderar o PSDB.

BBC News Brasil - Justamente como ex-presidente da República e liderança política importante não seria uma responsabilidade sua se posicionar naquele momento?

FHC - Eu me manifestei. Eu disse que não votaria nem num nem noutro. Que não estava de acordo nem com um nem com outro. Você não é obrigado a estar de acordo com um. Claro, que se você estivesse diante da iminência de um fascismo, uma ditatura, é diferente. Mas no Brasil não tem uma ditadura. A democracia está lá. Você pode dizer o que quiser do governo Bolsonaro, mas temos liberdade. Eu vivi momentos de ditadura e eu sei o que é isso. Aqui não há tal coisa.

BBC News Brasil - Mas havia uma preocupação que o discurso, principalmente em relação a minorias, como população LGBT e indígenas, pudesse levar a uma quebra gradual da democracia. A gente tende a pensar em quebra democrática com tanques na rua, mas o mais comum é uma erosão gradual das instituições. Isso era uma visão exagerada?

FHC - Não, isso é verdadeiro, é preocupante e você tem que lutar contra isso. Vou citar Otávio Mangabeira, a democracia é uma planta tenra que você tem que regar todos os dias. É a mesma coisa nesses aspectos todos. É verdade que houve também - e isso também nos EUA - uma exacerbação da política identitária, que assustou outros setores da sociedade.

Mas a despeito disso, acho que há uma posição reacionária contra mulher, índio, negro. Eu não aceito isso. Sou contra. Temos que lutar contra isso e protestar claramente. Agora, não posso dizer que o governo tenha assumido essa posição. Tem setores que defendem essa posição e aí você tem que ser contra.

BBC News Brasil - Mas há falas do próprio presidente...

FHC - O presidente agora mesmo está criando um partido novo e o símbolo são balas, um revólver 38. Isso não é uma coisa civilizatória. Não tem cabimento. Temos que ser contra. Mas nós podemos dizer que somos contra. Temos liberdade. A imprensa está livre. Eu vivi regime autoritário, vi gente torturada. É diferente. Não vamos misturar alhos com bugalhos.

Estamos numa situação em que há espaço para lutar pelo que acredita. Quando você tem duas bandeiras e nenhuma delas corresponde ao que você pensa e você tem lutas locais, o que você faz quando tem responsabilidade política? Não é tão fácil.

BBC News Brasil - Algumas das crises internas recentes do governo partiram de comentários dos filhos do presidente. Recentemente, Eduardo Bolsonaro disse que se a esquerda se radicalizasse, uma resposta poderia ser um novo AI-5. Esse tipo de discurso carrega um risco real para a democracia? Qual a sua avaliação?

FHC - Esses comentários são completamente inapropriados. Devem ser criticados. Mas não creio que estejamos num momento em que é possível uma ruptura democrática por causa de um comentário. As instituições são, espero, fortes. A imprensa é forte, o Parlamento é forte e as Forças Armadas estão fora desse tipo de jogo.

Eu vivi o clima de 1954, na época de Getúlio, e não estamos num clima semelhante. Temos espaço para ser contra, mas não podemos pensar que esse é um sintoma de que as coisas vão para a direção expressa pelo comentário do deputado. Acho lamentável que as pessoas falem sobre o AI5 como se fosse uma coisa banal. Não foi, foi grave, fez mal à democracia. Conseguimos repor a democracia no Brasil e temos que lutar para preservá-la.

BBC News Brasil - O senhor costuma dizer que Bolsonaro se elegeu por que reforçou na campanha dois temas caros à população, combate à corrupção e à violência. O PSDB não teve nem 5% dos votos com Geraldo Alckmin na última eleição e vive uma espécie de crise de identidade. No mês passado, o partido decidiu arquivar os pedidos de expulsão de Aécio Neves, investigado na Lava Jato por crime de corrupção. O PSDB não perde assim mais uma chance de responder a essa demanda da população por uma postura mais enfática contra a corrupção?

FHC - Sem dúvida eu acho que tem que ter uma posição enfática contra a corrupção. O Bolsonaro e o partido dele naquela época tinham uma agenda negativa: não à corrupção, não à criminalidade e não ao PT. Isso pesou muito, sobretudo em áreas como SP onde o PT ficou muito marcado. E o PSDB cometeu um equívoco, que foi criticar mais o Bolsonaro que o PT. E aí ele se perdeu na retórica da política, na aproximação com a população.

Então, se o PSDB quiser ter vida, vai ter que ser mais assertivo, mais afirmativo. Com relação à posição do PSDB com Aécio Neves, é preciso não esquecer que o Aécio foi candidato à Presidência da República. Não dá para de repente jogá-lo às feras. Deixe que a Justiça atue. Nessa situação, eu tenho tido a mesma posição. Eu respeito a Justiça. O que vale para o PT vale para o PSDB. Deixe a Justiça julgar. Julgou, eu respeito. Agora, por que se antecipar à Justiça?

BBC News Brasil- Mas (a manutenção de Aécio) não é prejudicial à imagem do PSDB? Não gera a imagem de leniência ou tolerância com a corrupção?

FHC - Claro que sim. Talvez pior do que qualquer fato tenha sido o tipo de conversa que o Aécio Neves teve. Aquilo foi negativo, é inegável.

BBC News Brasil- E para uma decisão política, não é necessária uma decisão judicial...

FHC - Eu sei, eu sei. Na matéria de corrupção, o PSDB tem que ser contra, seja lá quem for. Mas não pode prejulgar. E há também exageros na própria Lava Jato. Eu sempre defendi (a Lava Jato), porque é uma coisa inédita no Brasil colocar ricos e poderosos na cadeia. Eu não gosto de ver, porque alguns deles eu conheço, mas acho que é importante que tenha sido feito. Ela às vezes exagera e deve-se condenar o exagero.

Mas isso foi um fato importante para o Brasil e se os partidos não entenderem que a população cansou da corrupção, não tem o que fazer. E hoje no Brasil poucos políticos andam à vontade. No fundo é bom, porque mostra que o Brasil está contra a generalização da corrupção. E quando falam do PT, do presidente Lula, eu entendo porque ele estava preso. A coisa mais grave não foi ele ter feito isso ou aquilo, é o PT ter organizado um sistema de mensalão, organizou o poder através da corrupção.

BBC News Brasil- Voltando rapidamente a Aécio Neves. Se o senhor estivesse no lugar dele, renunciaria ao partido?

FHC - Eu renunciaria sim. Eu renunciaria.

BBC News Brasil - Uma das lideranças mais fortes no PSDB hoje é o governador João Dória, agora o partido incorporou Alexandre Frota, houve sondagens a Joice Hasselman e discussões sobre fusão com o DEM. Como o senhor enxerga esse novo rumo do PSDB?

FHC - Essas coisas se modificam muito. O PSDB quando nasceu, e eu fui um dos fundadores, a ideia era outra. A ideia era um partido com mais coesão, que fosse mais orientado pelo social do que pelo jogo do poder pelo poder. Então, eu não posso concordar com muita coisa que está acontecendo (no PSDB). Mas é a transformação. Os partidos estão perdendo vigência para conduzir o povo no voto. Eu não concordo.

Mas eu estou muito afastado do dia a dia. O governador Doria teve um pai que foi exilado, e ele foi exilado junto. Ele sempre teve uma trajetória democrática e trabalha. Isso é suficiente para ganhar eleição? Não sei. Acho que estamos num momento em que as forças de renovação estão aparecendo fora dos partidos.

BBC News Brasil - No PSDB, qual seria, na sua opinião, o melhor nome para disputar a Presidência em 2022?

FHC - Não quero fazer escolhas. Mas, de qualquer maneira, tanto o governador de São Paulo quanto o governador do Rio Grande do Sul, que é um rapaz jovem, expressam esse momento, de renovação. Há pessoas de fora, como o Luciano Huck.

BBC News Brasil - Com Doria, o PSDB não consolidaria uma guinada à direita?

FHC - Não sei o que se chama hoje de direita. É difícil qualificar essa direita. Precisa ver se ele é direito.

BBC News Brasil - Uma direita não qualificada assim só pelo pensamento econômico, mas pelo conservadorismo em questões de costumes.

FHC - Não creio. Não sei. Não é o estilo dele.

BBC News Brasil - Ele apoiou fortemente o presidente Jair Bolsonaro na eleição...

FHC - Apoiou e eu achei um exagero. E disse isso a ele. Mas cada um vai construir sua liderança. Pessoalmente, eu nunca vou apoiar candidaturas ou partidos que estejam com a marca reacionária na cultura, na economia, no que quer que seja. Tem que andar para frente.

BBC News Brasil - Doria não tem essa marca reacionária?

FHC - Ele tem que fazer (a marca) a dele. Por enquanto, a marca que ele tem é a de fazedor. A história dele veio, a meio ver, do lado correto, democrático. Agora, precisa construir isso em termos de futuro. Qual é o projeto? Nós estamos num momento complicado no mundo.

E no Brasil também. Temos que crescer a economia e essa economia precisa de um salto qualitativo em matéria tecnológica, temos que integrar a população, porque tem muita pobreza no Brasil ainda. Temos que deixar a imprensa com muita liberdade, deixar ciência e tecnologia avançar. Essas são as questões reais.

BBC News Brasil- E o governador Doria reúne as qualidades necessárias para alcançar esses objetivos?

FHC - Ele tem que demonstrar isso. Tem tempo para demonstrar isso.

BBC News Brasil - Vamos falar um pouco do ex-presidente Lula. O que representa para o governo Bolsonaro a soltura de Lula?

FHC - A soltura do Lula se dá por uma decisão da Justiça e tem que ser aceita. Ele vai permanecer solto? Eu não sei. A Justiça que vai decidir. Segundo, acho que o Brasil vive um momento de polarização. Para o presidente Bolsonaro, talvez seja uma oportunidade para voltar a polarizar.

Para o Brasil é negativo voltar a polarizar. É preciso ter uma força moderada. Mas pelo discurso que eu ouvi do presidente Lula, o presidente Bolsonaro pode dizer: 'Tá vendo, olha o perigo'. Então aumenta a radicalização. Não é que ele não deveria estar livre. A Justiça decidiu. Mas a palavra dele tem sido uma palavra que ajuda o outro lado.

BBC News Brasil - Sobre as condenações do ex-presidente Lula, os defensores dele argumentam que ele teria sido perseguido e apontam abusos que teriam sido cometidos na Lava Jato. O senhor vê abusos por parte da equipe da Lava Jato?

FHC - Eu mal conheço os juízes e procuradores da Lava Jato. É possível que eles tenham lado, tenham uma visão. Todo mundo tem. É bobagem pensar que as pessoas são neutras. Mas os juízes não julgam por aí, analisam fatos. Eu já fui chamado a depor três vezes a pedido da defesa de Lula. E você dá uma espiada no processo. Tem muita coisa. Não creio que os juízes tenham condenado simplesmente porque têm um viés político contrário.

Podem ter. A Lava Jato pode ter uma tentação a ser salvadora da pátria, expurgar, resolver tudo. Mas não é por isso que condena. Condena porque tem fato. Também não acho que seja pecado tão grande que o procurador tenha falado com o juiz. Trabalham juntos.

BBC News Brasil - Pelos fatos apresentados até agora, nos julgamentos, em primeira instância, no TRF e no STJ, o senhor se convenceu da culpa de Lula no processo?

FHC - Ou eu digo que a Justiça não vale para nada ou eu tenho que aceitar a Justiça, o julgamento. Pode ter errado num ponto? Mas em três instâncias? É um pouco demais.

BBC News Brasil - Como o senhor responde às críticas e argumentos de que a prática de compra de votos no Congresso e desvio de recursos de contratos públicos começaram antes do governo Lula?

FHC - Não são verdadeiras. A corrupção havia? É possível, inclusive no meu governo. Eu vou saber? Agora eu não compactuei, eu não organizei. Eu não tenho processo nenhum. 'Ah, é porque não foi investigado'. O PT foi muitos anos governo. Mas não tinha como materializar a denúncia porque eu não fiz. Se você olhar na internet, vão dizer que eu tenho apartamento em Paris. Eu não tenho. É mentira. Mas o fato é que sempre pode haver corrupção.

A corrupção em si é grave, mas o que e gravíssimo é a corrupção no poder. Quando você organiza as bases do poder no dinheiro público roubado, passado pelas empresas privadas para os partidos.

BBC News Brasil - Agora, o senhor teve um procurador-geral que foi apelidado de engavetador-geral da República. A classe política não pode ter se beneficiado de um Ministério Público e um Judiciário menos combativos?

FHC - Sabe por que recebeu esse apelido?

BBC News Brasil - Porque ele engavetou a grande maioria das denúncias que recebeu.

FHC - Porque os procuradores estavam recém-exercendo a função e faziam denúncias sem base. Roubou, comprou voto na eleição. Houve compra? houve em vários lados, mas eu, o governo, não. Não tem base. O procurador olha aquilo e manda engavetar. Ele (procurador Geraldo Brindeiro) era um professor respeitado, formado em Yale, e inventaram que era engavetador-geral. Mas é invenção. E por que o próximo procurador, do outro governo, não veio para cima? Porque não tem base.

BBC News Brasil - O Ministério Público diz que o sistema de lista, que foi adotado após o seu governo e agora derrubado (no governo Bolsonaro), trouxe independência ao procurador-geral da República para agir contra o governo, se necessário...

FHC - Sempre houve lista. Mas é faculdade do presidente nomear quem ele queira.

BBC News Brasil- Mas a lista só passou a ser observada depois (do seu governo) e foi abandonada agora no governo Bolsonaro...

FHC - Eu não sou favorável a esse democratismo de listas porque você cria corporativismos. O interesse da corporação pesa mais que o interesse público. Se você puder botar alguém que está na lista, muito bem. Se não, tem que prevalecer o interesse público.

BBC News Brasil- Como garantir total independência ao procurador-geral que é escolhido de fora da lista, conforme a preferência exclusiva do presidente?

FHC - Ele tem independência legal. E eles têm exercido com eficácia essa prerrogativa. No começo, todos os procuradores denunciavam todo mundo.

BBC News Brasil - Sobre economia, o que o senhor acha da agenda do ministro Paulo Guedes, especificamente da ideia de taxar seguro-desemprego?

FHC - Veja o que aconteceu no Chile recentemente, eu morei no Chile. Eu vi o que foi feito no Chile quando vieram os economistas do Pinochet, que tinham uma visão também racional, de mercado. A vida não é assim. Você tem que levar em consideração as diferenças sociais, as dificuldades que existem. Não adianta você ter um propósito bom se não há espaço para isso na sociedade. Ministro Guedes provavelmente tem a maior boa vontade, quer acertar, mas vai tropeçar bastante da realidade.

BBC News Brasil- Especificamente sobre taxar seguro-desemprego, o senhor é favor?

FHC - Sou contra. Não faz sentido. Isso é ideia abstrata de quem não conhece a vida. A maior parte dos políticos não conhece a realidade. Eu sou sociólogo. Comecei a vida estudando negro no sul, depois me dediquei à questão de drogas, agora voltei a estudar as comunidades no Rio de Janeiro. Vai lá para você ver. A coisa é outra. Você tem que entender a falta de recursos, de educação, a violência, o domínio que a droga e a milícia têm das comunidades. Então, tudo isso tem que ser tomado em consideração. Você está no poder, e pensa que está numa bolha? Não pode. Ou você entende que você representa um conjunto, não aquela bolha ou você governa mal.

BBC News Brasil- O Brasil corre o risco de se tornar um Chile no sentido da revolta popular se continuar com a agenda ultraliberal na economia?

FHC - O Chile é diferente do Brasil. Nós somos portugueses e eles são espanhóis. Eles são muito mais agressivos, sempre houve mais dureza na vida política chilena. Não sei se é comparável, mas na situação do mundo um fio desencapado pode levar a um curto-circuito. Eu quero isso? Não, mas pode acontecer. Eu acho que essa política ultraliberal dificilmente se implanta na sociedade brasileira.

O próprio presidente Bolsonaro não é isso. Ele é um oficial de baixa patente e ele reage contra e estoura à moda tradicional, mais estatizante do que liberal. Eu acho que ele tem impulso mais estatizante que liberal. Eu sou mais liberal que estatizante. Não sou ultraliberal, acho que tem que ter equilíbrio e noção das necessidades concretas das populações. Não adianta ter uma fórmula bem-feita, porque ela não se aplica a todas as sociedades. Taxar seguro-desemprego chega a ser quase ridículo.

BBC News Brasil - Sobre a polarização no Brasil. O senhor enxerga em alguém capacidade de se apresentar como um bom candidato de centro? O senhor manifestou entusiasmo com possibilidade de candidatura de Luciano Huck em 2018. Continua achando que ele pode ser esse nome?

FHC - Primeiro, eu acho o seguinte: não se nasce líder, você se faz. Eu fui nomeado ministro da Fazenda pelo presidente Itamar. Eu estava nos EUA. Fizemos o Plano Real. A situação te cria oportunidades que você pode usar e se você entender que a liderança é algo coletivo. Tem que ter gente ao seu lado. Não é assumir o meio-termo. É escolher e mostrar um caminho. A grande jogada do Plano Real foi a decisão de que explicaríamos tudo o que iríamos fazer e dar liberdade para a população escolher. Temos uma situação semelhante.

Alguém tem que chegar e dizer: 'vocês estão brigando há anos um com o outro. E nós precisamos encontrar um caminho que leve à prosperidade'. O povo quer emprego, transporte, saúde, educação. E confiança. Quem é que desperta confiança? Quem despertar confiança entre os que você citou, pode ser essa pessoa. E pode ser que surja um terceiro com essa capacidade de despertar confiança.

BBC News Brasil - O governo Bolsonaro tem promovido uma política de alinhamento com os Estados Unidos. Mais recentemente, o Brasil rompeu com a tradição de neutralidade de 27 anos e se uniu a Estados Unidos e a Israel para votar a favor de sanções a Cuba na ONU. O que o senhor acha dessa estratégia?

FHC - Eu não acho que o Brasil precise optar antes da hora por um dos polos da hegemonia mundial. É óbvio que a China está subindo, é óbvio que os EUA têm um poder enorme. E o Brasil está longe dos dois. Eu me lembro do Getúlio Vargas. Ele dava a impressão de que ia para o Eixo e foi para os Aliados, mas cobrou um preço por isso: Volta Redonda, Siderúrgica Nacional, empréstimos de bancos internacionais. Por que vamos de repente declarar que somos a favor de um lado e contra o outro? Não vejo sentido nisso, do ponto de vista do Brasil. O que é bom para o Brasil?

A grande oportunidade que temos é poder jogar com vários. Para que se alinhar? O acordo entre Mercosul e União Europeia é importante. A política de meio-ambiente do Brasil vai atrapalhar o acordo, porque a União Europeia quer outras coisas. O que é mais importante?

O Mercosul ou a verbalização atrasada antiglobalismo e anti meio ambiente? Claro que é o Mercosul. Agora o presidente Bolsonaro foi à China e amainou um pouco. Por que? Para quem exportamos? Para os EUA e a China. Tem que ser realista nessas coisas.

Na política, você tem que ter lado e defender a democracia, as instituições. Mas o mercado pesa nesse jogo todo. E o Brasil tem que ter uma posição de tirar o máximo de proveito do fato de estar longe e não ter que se alinhar. O mundo não está requerendo alinhamentos nesse momento. Por que vamos nós agora optar por um dos lados? Meu Deus, eu acho um erro.

BBC News Brasil- O senhor está aqui para participar de uma palestra na Universidade de Oxford. Nas suas viagens ao exterior, dos tempos de dedicação acadêmica para cá, como evoluiu a percepção que o mundo tem do Brasil? Estamos pior aos olhos do mundo ou melhor 50 anos depois?

FHC - Melhor do que a há 50 anos talvez esteja, mas pior do que há 20 acho que está também. Por que? Eu viajo bastante, dou entrevista, e é difícil porque as pessoas têm uma visão muito negativa. E no exterior a gente tem que ser prudente na hora de falar, mas percebo uma insistência para a crítica. Isso (a visão negativa sobre o Brasil) é uma realidade.

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Tradutor: FHC: Taxar seguro-desemprego é ridículo; agenda ultraliberal pode gerar revolta