Ford: afinal, por que a montadora decidiu encerrar a produção de veículos no Brasil?
"Continuidade do ambiente econômico desfavorável" e "pressão adicional causada pela pandemia" de covid-19.
Essas foram as duas principais justificativas citadas pela Ford em sua decisão, anunciada na segunda-feira (11/01) por meio de um comunicado à imprensa, de encerrar a produção de veículos no Brasil.
Três fábricas serão fechadas: Camaçari, na Bahia, onde os modelos EcoSport e Ka são produzidos; Taubaté, em São Paulo, que produz motores; e Horizonte, no Ceará, que fabrica jipes da marca Troller. As duas primeiras terão suas atividades encerradas imediatamente, enquanto a última, até o quarto trimestre deste ano.
Como resultado, os modelos nacionais terão suas vendas interrompidas assim que terminarem os estoques, informou a montadora. Com cerca de 280 concessionárias, a Ford continuará comercializando carros no Brasil, mas eles serão importados, principalmente das unidades da Argentina e do Uruguai. A empresa confirmou a venda dos novos Transit, Ranger, Bronco e Mustang Mach1.
A Ford acrescentou ainda que todos os clientes seguirão com assistência de manutenção e garantia. Especialistas do setor automotivo preveem, contudo, forte desvalorização dos veículos que vão ser descontinuados e vislumbram possível falta de peças para eles.
Cerca de 5 mil empregos diretos serão perdidos, mas o número pode passar de 12 mil, considerando os indiretos.
A sede administrativa da montadora na América do Sul, localizada em São Paulo, será mantida, assim como o centro de desenvolvimento de produto, na Bahia, e o campo de provas de Tatuí, em São Paulo.
Trata-se do fim de um longo ciclo para a montadora americana, a primeira a se instalar em solo brasileiro, em 1919, onde chegou a dar nome a uma cidade operária ("Fordlândia", distrito do município de Aveiro, no Pará) e revolucionou o mercado com o conceito de SUVs compactos, a partir de seu modelo 100% nacional, o EcoSport, que rodou o mundo.
Mas a decisão da Ford não se deve apenas à crise econômica do Brasil, aprofundada pela crise da pandemia da covid-19.
Também devem ser considerados fatores como erros de gestão, entre eles a dificuldade de a montadora americana manter-se competitiva frente a concorrentes, as transformações tecnológicas pelas quais passa o setor automotivo no mundo e o "Custo Brasil", o conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas e econômicas que atrapalha o ambiente de negócios no país, entre outros.
"A Ford não está abandonando o Brasil, mas se readequando às circunstâncias de mercado, em parte pelos erros que ela própria cometeu. Acho que a decisão foi acertada, levando em conta a saúde financeira da empresa. Ela quer um crescimento mais sustentável", diz à BBC News Brasil Milad Kalume Neto, diretor de novos negócios da consultoria automotiva Jato Dynamics.
"É importante destacar que, apesar da crise econômica, acentuada pela pandemia de covid-19, o Brasil ainda segue sendo um mercado consumidor imenso, respondendo por mais de 50% das vendas na América do Sul. Nenhuma montadora pode abrir mão do Brasil", acrescenta ele.
Participação em queda
Segundo a Ford, a decisão de encerrar a produção de veículos no Brasil resultou de uma "reestruturação dos negócios na América do Sul".
Em carta às concessionárias obtida pela TV Globo, a montadora informou que "desde a crise econômica em 2013, a Ford América do Sul acumulou perdas significativas" e que a matriz, nos Estados Unidos, vinha auxiliando nas necessidades de caixa, "o que não é mais sustentável".
Fato é que o desempenho da Ford já não era o dos melhores no Brasil. A montadora americana perdeu espaço para as asiáticas e sua participação no mercado brasileiro estava em queda desde 2016.
"A indústria automotiva é muito competitiva. A Ford parou no tempo. Deixou de atualizar seu portfólio. Sem produto, não tem o que fazer", diz Kalume Neto, da Jato Dynamics.
No ano passado, a Ford amargou o quinto lugar no ranking das maiores montadoras do Brasil, com participação de 7,14%, atrás da líder General Motors (17,35%), da Volkswagen (16,80%), da Fiat (16,50%) e da Hyundai (8,58%), segundo dados da Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores), entidade representativa do setor de distribuição de veículos.
Em 2004, a título de comparação, essa participação era de 11,5%.
Apesar disso, seu modelo de entrada, o Ka, foi o sexto mais vendido no Brasil em 2020. Se somados os emplacamentos das versões hatch e sedã (Ka Plus), o carro teria sido o segundo mais vendido do país no ano passado.
Além disso, a Ford vinha priorizando um modelo de venda para pessoas jurídicas, como locadoras, que "não é tão lucrativo quanto para pessoas físicas", acrescenta Kalume Neto.
Surpresa?
Tampouco pode-se dizer que o anúncio pegou o mercado "totalmente de surpresa".
Em 2019, a montadora anunciou o fechamento da fábrica de São Bernardo do Campo (SP), depois de 52 anos. Ali a Ford montava caminhões e o Fiesta, um de seus modelos de maior sucesso.
Foi o sinal claro para uma guinada de foco da empresa, a exemplo do que já ocorria no mercado internacional e que se consolida de vez agora no Brasil.
A Ford já tinha acenado que deixaria de produzir hatches e sedãs ? sendo a única exceção a Europa. Em 2018, anunciou, por exemplo, que se concentraria em produzir picapes e SUVs, além do esportivo Mustang e dos elétricos, nos Estados Unidos.
Nesse contexto, a Argentina surge como uma opção mais vantajosa em relação ao Brasil.
Além de ser mais barato de produzir por lá, o país já tinha expertise para a fabricação desses modelos de maior valor agregado ? a Ranger vendida no Brasil vem da Argentina. No mês passado, a Ford anunciou um investimento de R$ 3 bilhões, com a maior parte do montante a ser investido na fábrica de General Pacheco, em Buenos Aires.
Vale lembrar que Brasil e Argentina têm um acordo para o comércio de veículos e peças pelo qual para cada US$ 1,5 exportado do Brasil para a Argentina, os argentinos podem enviar US$ 1 aos brasileiros.
Em 2019, os dois países assinaram um acordo que prevê o livre-comércio de veículos e autopeças em 1º de julho de 2029.
Desde a criação do Mercosul, em 1990, o setor automotivo era um dos poucos que ficavam de fora do bloco e sempre teve um comércio administrado.
Paralelamente, e não menos importante, o desalento do cenário automotivo brasileiro ? aprofundado pela pandemia de covid-19, com forte desvalorização do real, acabou por acelerar essa transição do modelo de negócios da montadora americana.
Se, por um lado, os carros populares, com seu mercado interno robusto no Brasil, deixaram de ser super lucrativos para a Ford, por outro, o brasileiro passou a comprar menos automóveis.
No ano passado, devido à pandemia de covid-19, a Ford vendeu 39,2% menos veículos novos do que em 2019, uma queda maior do que a observada em todo o segmento de automóveis (26%).
Mas a montadora não foi a única afetada.
Em dezembro, a Mercedes-Benz anunciou o encerramento da produção de automóveis em sua fábrica de Iracemápolis, em São Paulo. A alemã citou a crise econômica enfrentada pelo Brasil, agravada pela pandemia da Covid-19, como argumento para sua decisão. Já a também alemã Volkswagen abriu um Programa de Demissão Voluntária (PDV) para a fábrica de Taubaté (SP) na segunda-feira (11/1).
E, embora o mercado automotivo brasileiro como um todo tenha ensaiado uma recuperação em 2019 ? com 2,8 milhões de veículos novos vendidos naquele ano, alta de 8,65%, o melhor resultado desde 2014, os números ainda estão longe do recorde histórico de 3,8 milhões em 2012.
"Ao levar a produção de veículos para a Argentina, a Ford soluciona o problema da alta ociosidade de suas fábricas no Brasil. Ela poderá trazer os carros sem custos adicionais de lá, devido ao acordo comercial entre os dois países", lembra Kalume Neto.
Já no cenário internacional, montadoras tradicionais, como a Ford, vem enfrentando novos competidores, que investem em veículos com maior autonomia e menos agressivos ao meio ambiente, como a Tesla, de carros elétricos.
Para fazer frente à concorrência, elas não têm outra alternativa senão também implementar essas mudanças tecnológicas, o que significa mais custos.
Na semana passada, Elon Musk, cofundador e CEO da Tesla, chegou a superar Jeff Bezos, da Amazon, como a pessoa mais rica do mundo.
Já o Google investe em um projeto de carros autônomos.
Mas, ao decidir encerrar a produção de veículos no Brasil e transferi-la para a Argentina, a Ford continuará sendo uma opção viável para o brasileiro na compra do tão sonhado carro?
"Carros produzidos na Argentina estão há muito tempo no nosso país. Isso não é novidade. Mas evidentemente vai depender muito de como a Ford trabalhe sua imagem no mercado brasileiro daqui para a frente. Seus produtos vão ter que estar adequados aos gostos do nosso consumidor", diz Kalume Neto.
Repercussão
Segundo a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), a decisão da Ford "corrobora o que a entidade vem alertando há mais de um ano sobre a ociosidade local, global e a falta de medidas que reduzam o Custo Brasil".
Já a CNI (Confederação Nacional da Indústria) considerou que o anúncio da Ford serve de alerta para que o Congresso aprove uma reforma tributária, que "se apresenta como a prioritária para a redução do principal entrave à competitividade do setor industrial brasileiro", informou a entidade em nota.
Em comunicado, o Ministério da Economia lamentou a decisão da Ford de encerrar a produção no Brasil e disse que a atitude da empresa "destoa da forte recuperação observada na maioria dos setores da indústria no país".
"O Ministério da Economia lamenta a decisão global e estratégica da Ford de encerrar a produção no Brasil. A decisão da montadora destoa da forte recuperação observada na maioria dos setores da indústria no país, muitos já registrando resultados superiores ao período pré-crise. O ministério trabalha intensamente na redução do Custo Brasil com iniciativas que já promoveram avanços importantes. Isto reforça a necessidade de rápida implementação das medidas de melhoria do ambiente de negócios e de avançar nas reformas estruturais", informou.
Já o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, demonstrou surpresa com anúncio da Ford. Em conversa com jornalistas, ele disse que a decisão não foi uma "boa notícia".
"Não é uma notícia boa. Eu acho que a Ford ganhou bastante dinheiro aqui no Brasil. Me surpreende essa decisão que foi tomada aí pela empresa", disse Mourão. "Ela poderia ter retardado isso aí mais e aguardado. Até porque o nosso mercado consumidor é muito maior do que outros aí."
Para o presidente Jair Bolsonaro, faltou à Ford "dizer a verdade" sobre o que motivou sua saída do Brasil. Ele disse que a empresa queria a continuidade de benefícios fiscais no país.
"Mas o que a Ford quer? Faltou à Ford dizer a verdade, querem subsídios. Vocês querem que continue dando R$ 20 bilhões para eles como fizeram nos últimos anos ?dinheiro de vocês, impostos de vocês? para fabricar carros aqui? Não, perdeu a concorrência, lamento", declarou o presidente, na saída do Palácio da Alvorada.
"Há três anos, a Ford anunciou que não ia mais produzir carro de passeio nos EUA. E falta de ambiente de negócios, na verdade eles (Ford) tiveram subsídios nossos ao longos dos últimos anos de R$ 20 bilhões. Queriam renovar subsídios para fazer carro para vender", disse.
"Agora tem a concorrência também, chinesa, entre outros, então (a Ford) saiu porque num ambiente de negócios quando não tem lucro, você fecha. Assim é na vida em casa nossa. Perder emprego, tem uma pessoa ajudando ele, vai demitir aquela pessoa. A Ford é mesma coisa, lamento os 5 mil empregos perdidos", concluiu.
As declarações de Bolsonaro foram publicadas numa rede social de Tercio Arnaud, assessor da Presidência.
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