Por que preços de alimentos sobem tanto
Não é só o arroz com feijão. É a carne, é a verdura, é o tomate, preocupando tanto os fãs de churrasco como os veganos. Os preços dos alimentos, pelo mundo todo, dispararam no último ano.
A Organização das Nações Unidas (ONU) fala em "níveis catastróficos sem precedentes de insegurança alimentar", e há o temor de que o aumento de preços continue — e de forma ainda mais acentuada.
"Quase meio milhão de pessoas estão enfrentando condições de fome na Etiópia, em Madagascar, no Sudão do Sul e no Iêmen. Nos últimos meses, populações vulneráveis em Burquina Faso e Nigéria também passaram a viver nessas condições", informou a ONU numa declaração oficial.
No dia 16 de outubro, quando se celebrou o Dia Mundial dos Alimentos, a organização fez um apelo por apoio adicional para dar suporte a 41 milhões de pessoas, em vários países, que correm o risco de uma crise de fome.
Segundo a entidade filantrópica The Hunger Project, baseada no Reino Unido, 690 milhões de pessoas no mundo todo vivem em estado crônico de fome — 60% delas são mulheres. Além disso, 850 milhões correm o risco de entrar na pobreza devido à pandemia de covid-19.
A situação do Brasil também é grave. Cenas recentes de pessoas fazendo filas para levar para casa pedaços e de ossos ou buscando restos de alimentos dentro de um caminhão de lixo viralizaram nas redes sociais.
Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, 19 milhões de brasileiros passam fome atualmente.
Além disso, segundo relatório recente da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país tem uma inflação geral que deve chegar a quase o dobro da média dos países do G20 - alcançando 7,2% em 2021.
Diante desse quadro, o aumento generalizado de preços ameaça tornar ainda mais dramática a situação de populações carentes mundo afora. Mas por que os preços de alimentos estão subindo tanto?
'Acostumem-se com preços altos'
A gigante internacional de alimentos Kraft Heinz alertou que as pessoas terão de "se acostumar com preços mais altos para os alimentos" como resultado da inflação "por todos os lados" nesta fase pós-pandemia — avaliação feita por seu executivo-chefe, Miguel Patricio.
Sarika Kulkarni, fundadora e trustee da Fundação Raah, em Mumbai (Índia), que oferece suporte a comunidades indígenas na Índia, concorda.
"Preções são uma correlação direta entre oferta e demanda", diz Kulkarni, especialista em políticas de alívio da pobreza. "Enquanto a população aumenta, e a demanda por comida continua crescendo, o número de acres sob cultivo está diminuindo devido a múltiplos desafios e problemas que incluem a disponibilidade de água, deterioração e qualidade do solo, as mudanças climáticas e variações climáticas extremas, novas gerações pouco interessadas em trabalhar na agricultura etc."
Durante a pandemia, muitos países viram cair sua produção de matérias-primas, de produtos agrícolas a óleos vegetais. Medidas para controlar o avanço do coronavírus, assim como a própria doença, limitaram a produção e a distribuição.
Com as economias voltando a oferecer esses produtos, muitas não foram capazes de atender à crescente demanda, o que levou a um aumento de preços. Salários mais altos e aumento no custo de energia também representaram um peso maior para fabricantes.
"Os agricultores enfrentam múltiplos desafios, o que está se refletindo nos preços dos alimentos, que continuam a subir."
'Trocando sexo por comida'
De acordo com o subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Martin Griffiths, a fome é um problema que se espalha com facilidade. "Quando a fome finalmente abre a porta, ela se espalha de forma viral, de uma forma que outras ameaças talvez não consigam."
Mulheres e meninas são particularmente vulneráveis, como resultado do aumento da pobreza e dos preços altos.
"Mulheres nos contam sobre medidas desesperadas que elas precisam tomar para encontrar comida para alimentar suas famílias, incluindo trocar sexo por comida, recorrer a casamentos ainda quando criança, como eu ouvia quando eu estava na Síria, recentemente", lembra Griffiths.
Algumas das populações com menos segurança alimentar, no mundo todo, são agricultores de pequeno porte, diz Karen Hampson, gerente sênior do Program Development na Farm Radio International.
"A atual realidade de aumento de preços é uma faca de dois gumes para eles. De um lado, famílias do campo precisam comprar comida que eles não podem produzir, então seus custos aumentam ou seu acesso a alimentos diminui, o que resulta em fome e má nutrição", diz Hampton à BBC.
"Do outro lado, pelo menos em tese, o aumento de preços deveria significar que eles recebem uma renda melhor dos produtos que vendem. Na maioria dos casos, porém, o aumento de preços não parece se traduzir em mais renda para agricultores —especialmente os de pequeno porte na África."
Como explica Sarika Kulkarni, a pobreza é diretamente proporcional aos preços - enquanto a pobreza aumenta, infelizmente os preços também estão subindo, destruindo o que resta dos pequenos orçamentos que as pessoas tinham.
"Preços altos de alimentos estão causando subnutrição, fome e múltiplos outros desafios de saúde ligados a isso em comunidades mais pobres. Preços altos de comida estão deixando comunidades presas num círculo vicioso de fome, saúde debilitada e pobreza."
Harpinder Collacott, executiva-chefe da organização The Development Initiatives, que usa dados e evidências para combater a pobreza, reduzir a desigualdade e aumentar a resiliência, concorda com Kulkarni.
"A pobreza extrema, em particular, é calculada com base na renda necessária para atender a necessidades básicas, e comida é uma parte significativa disso", diz.
"Se o custo dos alimentos aumenta, um número crescente de pessoas não consegue satisfazer suas necessidades básicas, o significa que elas são empurradas para a pobreza extrema ou para bem abaixo da linha de pobreza extrema", afirma ela.
O que pode ser feito?
Enquanto pessoas no mundo desenvolvido podem optar por reduzir o consumo de itens de luxo, viajar menos para o exterior ou mesmo administrar cuidadosamente seu orçamento, não é tão simples assim para muitas pessoas em países menos desenvolvidos, onde muitas pessoas acabam tão desesperadas que acabam forçadas a trocar sexo por comida.
A ONU, organismos regionais e governos nacionais podem adotar medidas convencionais para tentar tirar pessoas da pobreza, para enfrentar o desafio de alimentos mais caros, e muitas entidades de ajuda mundo afora estão trabalhando com métodos inovadores.
"Alimentos e assistência nas condições de vida devem ser fornecidos em conjunto", diz o diretor-geral da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura, Qu Dongyu.
"Apoiar sistemas agrícolas e alimentares e oferecer assistência de longo prazo é a base para a recuperação, além de apenas sobrevivência, e aumenta a resiliência. Não há tempo a perder", diz ele.
Mas Collacott disse à BBC que a pobreza alimentar não será resolvida apenas por meio de dinheiro. "Precisamos de uma reforma radical dos sistemas e das estruturas que têm mantido as pessoas na pobreza."
"Precisamos de um esforço global, por todo governo, instituição, empresa e ONG, que coloque as pessoas mais pobres no centro de sua política para mudar o status quo e crie um sistema global que pare de deixar as pessoas para trás."
Segundo Kulkarni, o que é preciso é introduzir uma atividade agrícola inteligente no que diz respeito ao clima, melhorar a adaptação ao clima, como melhorar por todas as partes a capacidade de armazenamento de água da chuva para o cultivo, reduzir o preço de sementes e outros materiais básicos para agricultura, incentivar agricultores a manter o suficiente consigo para consumo próprio enquanto recebem uma renda a partir da venda do restante."
Nos últimos sete anos, a Fundação Raah ajudou 105 vilas a se tornarem seguras em termos de acesso a água, fazendo com que água esteja disponível durante o ano todo para 30 mil pessoas de comunidades indígenas.
"Temos encorajado pessoas mais jovens a trabalhar na agricultura em tempo integral oferecendo os incentivos necessários e criando corredores agrícolas para garantir que a atividade agrícola concentrada leve a melhores produtos e, com isso, uma renda melhor", afirma Kulkarni.
Segundo Karen Hampson, da Farm Radio International, uma ONG canadense, uma das razões para a pobreza alimentar é o fato de que residências em zonas rurais de países em desenvolvimento não possuem acesso adequado a boa informação — sobre preços em diferentes mercados, melhores práticas ou as condições do tempo numa área específica. Dessa forma, eles não conseguem negociar muito bem com distribuidores e vendedores nem melhorar sua produção.
A Farm Radio usa rádio interativo para responder às necessidades de comunicação e informação de pequenos agricultores na África subsaariana.
"Os programas podem mudar a realidade atual ao oferecer conselhos sobre como obter preços melhores por seus produtos ou informação precisa e no momento certo. Por exemplo, num projeto recente sobre serviços climáticos na Tanzânia, 58% dos ouvintes disseram que seu conhecimento de como usar informações sobre o tempo para melhorar sua produção agrícola ficara 'melhor' depois de ouvir os programas de rádio, e 73% disseram ter melhorado suas práticas de capinagem depois de ouvir os programas", afirma Hampson.
E agora?
Enquanto pessoas mundo afora, tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento, podem estar se perguntando sobre como responder ao aumento de preços dos alimentos, ativistas demonstram ter esperanças de que uma crise possa ser evitada, contanto que ações rápidas e precisas sejam tomadas por líderes mundiais.
"Pessoalmente, eu diria que sempre há esperança", diz Hampson.
Mas apenas, acrescenta a gerente da Farm Radio, se "ouvirmos as mulheres, homens e jovens agricultores, se nós os deixarmos liderar e ouvirmos suas preocupações, se os incluirmos nos diálogos sobre políticas e se apoiarmos seus esforços, sejam por meio de cooperativas, grupos de agricultores e mulheres ou por meio de inovação. Se nós colocarmos nosso foco na resposta às mudanças climáticas e apoiarmos especialmente os grupos marginalizados e respondermos a suas necessidades — por igualdade no acesso aos mercados, acesso a crédito, acesso a informação."
Sarika Kulkarni expressa uma opinião semelhante. "Temos esperança, já que ainda existe tempo para atacar as falhas, que são conhecidas e já identificadas." Mas ela alerta: "Se continuarmos a ignorá-los, poderemos ter problemas, e a esperança pode ficar desoladora".
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