Como manobra do teto de gastos para viabilizar Auxílio Brasil pode deixar brasileiros mais pobres
Dinheiro extra sempre vem em boa hora, sobretudo para quem mais precisa dele.
Por isso, faz sentido que milhões de brasileiros em condição de vulnerabilidade vejam de forma positiva os esforços do governo de Jair Bolsonaro para viabilizar o pagamento de R$ 400 aos beneficiários de seu novo programa social, o Auxílio Brasil, valor superior ao do Bolsa Família, que deixa de existir.
E, de fato, dizem economistas, "a curtíssimo prazo", esse incremento poderia até dar um empurrão na economia, em meio a circunstâncias atuais nada animadoras. Afinal, tende a elevar o consumo e a amenizar os efeitos da inflação que corroem o poder de compra.
O problema é que esse gasto adicional, na forma como está sendo proposto pelo governo, tende a "retroalimentar" a inflação no futuro, anulando seus efeitos inicialmente positivos —e são os mais vulneráveis os primeiros a sentir o impacto disso.
Mas por quê?
A realidade é que o governo não tem de onde tirar essa despesa excedente.
Para viabilizar o pagamento de R$ 400 do Auxílio Brasil, ele pretende driblar o chamado "teto de gastos", uma regra de 2016 que limita o crescimento dos gastos públicos à inflação do ano anterior.
Ela foi criada naquele ano pelo temor de um desastre fiscal —o governo vinha gastando mais do que podia e isso colocava em xeque a capacidade de o país arcar com suas dívidas.
É mais ou menos como um cidadão comum: quem não paga suas contas, fica com o nome "sujo" na praça.
Se o mercado percebe que a capacidade de pagamento do Brasil está comprometida, reage negativamente, levantando dúvidas sobre o que e como o governo vai fazer para honrar seus compromissos.
Um exemplo prático é de um investidor que tenha ações de empresas no Brasil. Diante de um futuro nada promissor para seus investimentos, ele tende a querer buscar outros países onde se sente mais seguro para ver seu dinheiro se multiplicar.
Agora, imagine vários investidores pensando o mesmo e, possivelmente, retirando seus recursos em massa —é o que economistas chamam de "fuga de capitais".
Para piorar, houve uma debandada de integrantes do alto escalão do Ministério da Economia, todos subordinados ao titular da pasta, Paulo Guedes. Foram quatro, ao todo, incluindo o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal.
Segundo comunicado divulgado pelo órgão, eles citaram razões pessoais para deixarem seus cargos, mas nos bastidores se sabe que a decisão foi motivada pela proposta formalizada do governo de furar o teto de gastos.
Tudo isso fez com que o dólar subisse e a bolsa brasileira fechasse em queda na quinta-feira (21/10).
Só as empresas brasileiras listadas na Bovespa perderam R$ 284 bilhões em valor de mercado em três dias, segundo a desenvolvedora de sistemas de análise financeira Economatica.
Nesta sexta-feira (22/10), até a conclusão desta reportagem, a situação não estava muito diferente —o dólar continua em forte alta e a bolsa, em queda.
Mas o agravamento da situação fiscal não só acarreta o aumento da inflação. Também provoca efeitos em cascata para o restante da economia.
Inflação mais alta força subida dos juros pelo Banco Central (BC), o que freia a atividade econômica e tem impacto no PIB (Produto Interno Bruto, a soma de riquezas produzidas por um país).
E economia mais enfraquecida gera queda de renda e desemprego.
Já a fuga de capitais gerada pela crise de confiança dos mercados tem impacto direto no dólar —quanto mais dólares saem do país, "mais cara" a moeda americana fica.
E o dólar mais valorizado afeta consideravelmente o preço de uma série de produtos, como gasolina, gás de cozinha e alimentos.
O que, em última instância, contribui para elevar ainda mais a inflação.
E não é só o bolso do brasileiro, especialmente aquele de menor renda, que sofre. Os cofres do governo, também.
Segundo um estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI), cada ponto percentual de aumento da inflação gera um impacto estimado de R$ 12,4 bilhões no gasto primário.
Isso significa que a capacidade de o governo de gerir suas contas fica ainda mais engessada, o que pode afetar, em última análise, a continuidade do pagamento do benefício no futuro.
"O mercado parece de fato ter abandonado o auto engano que haveria espaço para mais ajustes fiscais e respeito ao teto dos gastos", diz André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos, em seu comentário diário a investidores.
"A realidade econômica e social se impôs sobre o Planalto e na ausência de um plano de ação claro se acumulam evidências que irão tampar um buraco por vez com uma fita crepe de R$ 400 por vez", acrescenta.
Auxílio Brasil
O Auxílio Brasil, o programa social do governo Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, foi anunciado na quarta-feira (20/10) pelo ministro da Cidadania, João Roma, com início previsto para novembro deste ano.
O programa, pelo qual beneficiários receberiam R$ 400, R$ 100 a mais do que o proposto inicialmente e mais do que o dobro do pagamento médio do Bolsa Família, coincidiria com o fim do pagamento do chamado Auxílio Emergencial, benefício pago aos mais vulneráveis durante a pandemia de covid-19. O número de beneficiários também aumentaria dos atuais 14,6 milhões para 17 milhões.
A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que flexibiliza o teto dos gastos cria um espaço orçamentário de R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022, segundo seu relator, o deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB).
Esse valor não deve só ser usado para viabilizar o pagamento do Auxílio Brasil, mas também gastos de interesse de aliados do governo, como emendas parlamentares, por meio das quais eles mandam dinheiro para obras e projetos em suas bases eleitorais.
Em entrevista coletiva nesta sexta-feira (22/10), o ministro Paulo Guedes minimizou o impacto do aumento do valor do Auxílio Brasil para o controle das despesas do governo. Ele disse que as mudanças previstas representarão uma mudança de 17,5% para 18,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em despesas.
Perguntado sobre o impacto do aumento de gastos na inflação, principalmente para a população mais pobre, o ministro afirmou que a inflação está "subindo no mundo inteiro" e que o Banco Central também deve exercer seu papel na definição da taxa de juros.
"Toda vez que tiver aumento localizado, comida, material de construção, é temporário. Agora, se está virando generalizado, se está subindo tudo, todo mundo tem que olhar para o Banco Central. O fiscal estava perfeitamente sob controle", disse Guedes a jornalistas. "Se a inflação está subindo, vamos ficar na frente da curva, vamos correr atrás (do aumento de juros)."
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