Privatização condena Brasil a ser empregado dos países ricos, diz Bresser
O Brasil está à venda. O alerta foi dado pelo ex-ministro (três vezes) e professor da FGV Luiz Carlos Bresser-Pereira em um artigo publicado em uma rede social, logo após o governo federal anunciar a intenção de privatizar a Eletrobras e outras 56 empresas ou projetos de infraestrutura. Nesta semana, o presidente Michel Temer está na China justamente para convencer investidores chineses a comprar os negócios brasileiros.
Em entrevista exclusiva ao UOL, Bresser afirma que não são apenas as estatais que estão à venda. Empresas privadas também estão sendo transferidas para os estrangeiros.
"A venda do patrimônio público e privado certamente está empobrecendo o país e é consequência da irresponsabilidade do governo", afirma o professor emérito da Fundação Getulio Vargas (FGV). Leia abaixo os principais assuntos da entrevista.
Vamos virar empregados dos países ricos
Entre as práticas do governo que Bresser considera "irresponsáveis" estão o deficit fiscal, ou seja, o fato de o governo gastar muito mais do que arrecada; a falta de investimento público em projetos que estimulem o crescimento da economia; e o endividamento excessivo, que também atinge as empresas do setor privado.
"É como uma família que decide se endividar para fazer um investimento qualquer, digamos de R$ 100 mil. Mas, em vez de usar o dinheiro emprestado para investir, a família usa para consumir. A família só investe R$ 10 mil e acabando gastando os outros R$ 90 mil para viajar, fazer uma festa, comprar coisas. Mas aí tem que pagar a dívida. Como a família faz? A única saída para pagar essa dívida é vendendo patrimônio. Vende os móveis da casa, vende o carro, vende a própria casa. É isso que o país está fazendo agora", diz Bresser.
Sem investimento, o Brasil está se condenando a taxas de crescimento muito baixas e a ser uma economia de propriedade dos países ricos. E nós seremos todos empregados.
Privatizar nem sempre é a solução
Ele é contra o argumento de que a privatização torna todas as empresas melhores e mais eficientes.
Sou a favor de privatizações de empresas competitivas. Mas entendo que privatizações de empresas monopolistas [que atuam em setores sem concorrência], em princípio, não são uma boa coisa. A empresa privada funciona bem porque ela é controlada pelo mercado.
"No caso dos monopólios, como a Eletrobras, você não tem o mercado para controlá-la. Ser a favor da privatização simplesmente porque a empresa privada é mais eficiente é uma coisa muito relativa. As empresas privadas não são necessariamente mais eficientes. E elas não têm nenhum compromisso com o interesse público."
Esse governo está tentando privatizar desde quando chegou ao poder. É um governo liberal, que acha que empresa pública é ruim. Um governo que não tem conceito de interesse nacional. O mercado é que cuida de tudo. Então, você pode vender tudo o que você quiser.
Apesar da polêmica em torno das privatizações, Bresser diz que a questão relevante é a necessidade de o governo elevar o investimento público.
"Ficar aqui discutindo se sou contra ou a favor da privatização não interessa. Esse não é o ponto central. Eu prefiro que as empresas monopolistas estejam na mão do Estado, mas essa não é uma questão de vida ou morte. O que é vida ou morte para mim é que o Brasil volte a crescer, que o Estado volte a gastar com setores essenciais. E que ele próprio faça investimentos, da ordem de 20% do PIB [Produto Interno Bruto]. Ninguém vai estatizar o Brasil investindo desse jeito, o que aliás seria um profundo equívoco."
Juros de 6% ao ano e dólar a R$ 4
Bresser também considera irresponsáveis a atual política monetária, com juros ainda muito altos, e a política cambial, que mantém o dólar baixo em relação ao real, encarecendo os produtos brasileiros vendidos no exterior. "Eu venho, ao longo de todos esses anos, fazendo uma crítica forte aos juros altos, ao câmbio apreciado [dólar baixo] e a todas as consequências disso."
Na sua avaliação, a taxa básica de juros, a Selic, deveria cair para cerca de 6% ao ano. E o dólar deveria subir para R$ 4 para permitir que a indústria nacional seja mais competitiva lá fora. Com dólar mais caro, os produtos brasileiros ficam mais baratos para os estrangeiros.
Atualmente, a Selic está em 9,25% ao ano, mas chegou a valer 14,25% há um ano atrás. O dólar está cotado em torno de R$ 3,15.
"A taxa de juros todo mundo sabe que tem que controlar. O Banco Central existe para isso. Ele está baixando os juros e tem que continuar baixando até que a taxa real [descontada a inflação] chegue perto de 2% a 3% ao ano. Com a inflação hoje em 3,5% ao ano, isso seria equivalente a uma taxa Selic de mais ou menos 6% ao ano."
Bresser critica o controle exercido pelo BC sobre o câmbio. Embora a cotação do dólar seja flutuante no Brasil, o BC faz intervenções frequentes no mercado financeiro, usando ferramentas como a oferta de contratos futuros da moeda americana, com objetivo de evitar que o dólar suba ou caia muito.
O Banco Central ter o controle sobre a taxa de câmbio é uma coisa absolutamente inaceitável. É a mesma história de colocar a raposa para tomar conta do galinheiro. Não faz parte da política do Banco Central ter uma taxa de câmbio competitiva para a indústria. Não é esse o objetivo dele. O Banco Central usa a taxa de câmbio como âncora cambial para controlar a inflação. O certo seria ele usar só os juros para isso.
Na opinião de Bresser, o controle da política cambial do país deveria passar das mãos do BC para um conselho específico, nos moldes do Conselho Monetário Nacional (CMN), que hoje é formado pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do Banco Central. "Esse conselho é quem definiria a política cambial. E o Banco Central apenas a executaria."
Exportar matéria-prima demais causa "doença holandesa"
Bresser lembra que, por ser um país essencialmente produtor de matérias-primas, as chamadas "commodities", como o minério de ferro e a soja, o Brasil sofre de "doença holandesa" [quando o excesso de exportações valoriza demais a moeda local].
O professor sugere uma espécie de mecanismo de controle para evitar que o aumento das exportações das empresas produtoras de commodities acabe empurrando a cotação do dólar novamente para baixo.
"Eu preciso criar um imposto variável sobre as exportações de commodities. Se eu elevar a taxa de câmbio para R$ 4, o lucro que a Vale vai ter será tão grande que eles vão aumentar a oferta de minério e não vai ter santo que segure esse câmbio nos R$ 4", explica Bresser.
Segundo ele, o efeito sobre a Vale ou qualquer outra empresa exportadora de commodities será nulo porque o imposto vai apenas reduzir a receita extra que a empresa receberia pelo fato de o dólar estar mais alto. Na prática, é como se a Vale continuasse exportando com base na cotação atual do dólar, de R$ 3,15. Ao mesmo, tempo, a desvalorização do real deixará os produtos industrializados mais baratos no exterior, tornando as empresas brasileiras mais competitivas.
Reação à crise demorou demais
Bresser, que já foi ministro três vezes --da Fazenda, em 1987, no governo de José Sarney, da Administração Federal e Reforma do Estado (1995 a 1998), e de Ciência e Tecnologia (1999), esses dois últimos cargos no governo de Fernando Henrique Cardoso--, não economiza críticas aos governos do atual presidente, Michel Temer (PMDB), e da antecessora, Dilma Rousseff (PT).
Segundo ele, grande parte do estrago observado na economia do país é decorrência de políticas equivocadas e da demora do governo em perceber o erro e corrigir o rumo do país.
"A reação [à crise] veio quando a coisa se tornou dramática, muito depois de quando realmente deveria. A reação deveria ter começado em janeiro de 2014", afirma.
O Banco Central manteve uma estratégia de juros altos muito além do que deveria, com o país em plena recessão. A política fiscal da Dilma, que foi absolutamente desastrosa, populista, terminou no final de 2014. Desde o começo de 2015, primeiro com Dilma, depois com Temer, se pratica uma política econômica ortodoxa, de forte corte da despesa pública, especialmente do investimento público, em um quadro de recessão.
A estratégia adotada apenas ajudou a prorrogar a duração do problema. "Essa política ortodoxa é inviável porque provoca uma redução no PIB e na receita do governo, de forma que o país vai demorar muito para conseguir sair da crise." Para Bresser, o caminho escolhido deveria ter sido outro.
O governo deveria ter expandido o investimento público e cortado o juro imediatamente.
Reforma da Previdência é necessária, mas trabalhista não
Das reformas defendidas pelo atual governo como imprescindíveis para a retomada do crescimento, Bresser concorda apenas com a reforma da Previdência e faz duras críticas à proposta que definiu um limite para o gasto público nos próximos 20 anos.
O governo Temer cometeu um grande erro quando chegou ao poder e, por mera irresponsabilidade de todos os tipos, propôs o teto do gasto público. Ou seja, propôs o congelamento da despesa em termos reais [descontada a inflação]. O que ele deveria ter feito naquele momento, quando o governo ainda estava forte e a hegemonia liberal estava grande, era ter proposto imediatamente a reforma da Previdência, porque essa é necessária e tem que ser feita. Temos que caminhar essencialmente para um sistema com idade mínima para aposentadoria.
"Não fez isso. Fez aquela proposta absurda do teto do gasto público, que eu acho que não vai se sustentar. Não é uma proposta para resolver a crise fiscal que a Dilma deixou. É uma política de redução do tamanho do Estado na base da porrada. Isso não faz sentido. Se realmente você precisa encolher o Estado, primeiro você deve discutir isso com a sociedade."
Bresser também avalia que a reforma trabalhista foi mal feita, punindo demais os trabalhadores.
Acho que alguma flexibilização [na lei trabalhista] sempre é boa. Acontece que o discurso é o seguinte: façamos o ajuste fiscal e as reformas, que o Brasil vai crescer. Como num passe de mágica. Isso é mentira. O Brasil não está nesta situação lamentável em que está por causa da legislação trabalhista. Essa legislação está aqui desde 1944, e o Brasil teve um crescimento absolutamente extraordinário sob ela, entre 1930 e 1980.
Segundo ele, o que está pressuposto na reforma trabalhista é que os trabalhadores seriam os "grandes privilegiados" do Brasil por causa dos direitos assegurados pela legislação. "Eu absolutamente não estou de acordo com isso. Para mim, os grandes privilegiados da República são os rentistas [investidores], que recebem uma remuneração que eu entendo como uma captura do patrimônio público, porque a taxa de juros deveria ser básica, e não a que está aí."
O outro grupo de "privilegiados", segundo Bresser, são os altos servidores públicos, que recebem salários e aposentadorias excessivamente altos, muitas vezes acima até do teto permitido por lei, ou seja, acima dos salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
A gente pensa que o grande problema do Brasil é a corrupção. Essa é outra tristeza enorme. Mas a grande captura do patrimônio público é feita essencialmente pelos rentistas e por esses altos servidores públicos.
Aumentar imposto é inevitável, mas deve haver investimentos
O governo terá, inevitavelmente, que aumentar impostos para conseguir sair da crise, avalia o professor da FGV.
Há impostos que não têm efeito recessivo. Eles falaram em aumentar a alíquota do Imposto de Renda. É algo desagradável, inclusive para mim, mas eu sou 100% a favor. Não interessam os meus interesses particulares. O que interessa é o país.
Mas apenas elevar impostos não resolverá o problema. "O governo tem que pensar seriamente em provocar a retomada do crescimento. Eu acho que o governo deveria mudar totalmente o seu discurso em relação ao investimento público."
Uma solução de curto prazo para a falta de dinheiro do governo seria conceder alguns projetos à iniciativa privada, diz Bresser.
"Tá bom, vamos fazer concessões, isso e aquilo, com o dinheiro dos rentistas que sobra mundo afora. Nós vivemos em uma época de alta abundância de capitais no mundo inteiro. É razoável que uma parte dos investimentos seja feita por concessões. Não há muita alternativa no curto prazo. Mas, ao mesmo tempo, o Estado deveria estar, ele próprio, fazendo seus investimentos, garantindo que o investimento público fosse pelo menos 20% do PIB."
Conforme Bresser, o investimento público, combinado com o privado, irá provocar uma retomada mais rápida da economia, elevando a arrecadação. "O governo tem que gastar esse dinheiro porque isso dá retorno. Se esse investimento for feito na atividade econômica, eu tenho certeza de que ele vai provocar aumento de PIB e, consequentemente, da arrecadação, mais do que compensando o gasto que ele teve. Eu sei que é uma coisa complicada, não é fácil fazer, é um ciclo."
Sem investimento, país fica condenado ao subdesenvolvimento
Se o governo não voltar a investir no mínimo o equivalente a 20% do PIB, o país estará condenado à "semiestagnação", ou seja, a um crescimento muito pequeno nos próximos anos, afirma o economista.
O Brasil vai sair da recessão, mas não vai voltar a crescer. Minha previsão é que o Brasil cresça em torno de 1% ao ano. Para mim, isso não é crescimento. É semiestagnação. É falta de um projeto de nação, falta de um projeto de desenvolvimento. Isso é nos condenar ao atraso e ao subdesenvolvimento. É nos condenar a ficar para trás.
Recentemente, Bresser liderou um manifesto chamado "Projeto Brasil Nação". "O que nós queremos, fundamentalmente, é retomar a nação brasileira. Nós definimos cinco pontos econômicos nesse manifesto. O primeiro ponto é a responsabilidade fiscal. O segundo ponto são os juros baixos. O terceiro é uma taxa de câmbio competitiva. O quarto é a retomada dos investimentos públicos. E o quinto ponto é um sistema de imposto progressivo [com alíquotas maiores para quem ganha mais]."
Interesse do atual governo não é econômico, mas político
Bresser afirma que o atual governo não está realmente interessado em resolver os problemas econômicos do país, mas apenas em permanecer no poder. Segundo ele, "a última coisa que passa pela cabeça deste governo que está aí é o interesse público".
"Quando os políticos do PMDB que agora estão no poder viram que a Dilma foi reeleita, mas não tinha apoio da sociedade civil, não tinha apoio das elites, e percebendo que havia especialmente um outro partido, o PSDB, que tinha posições ideológicas naquela época que pareciam claras e definidas como liberais, o PMDB teve uma grande ideia", afirma.
Bresser descreve qual foi a "grande ideia" do PMDB: "Vamos chamar os economistas mais liberais possíveis e fazer um projeto para o PMDB, Uma Ponte para o Futuro. Eles (PSDB) vão ver nosso projeto, vão dizer que nós (PMDB) somos de confiança e vão nos apoiar." O resultado foi uma "violência à democracia", diz o economista.
De fato, o PSDB apoiou o PMDB e, assim, eles conseguiram derrubar a Dilma e chegar ao poder. Tiveram êxito na manobra, mas com uma violência contra a democracia brasileira enorme, uma desmoralização do nosso sistema político enorme, que já estava desmoralizado por causa da corrupção.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.