Produção de dendê cai, preço sobe 146% e há risco de faltar óleo do acarajé
A produção de óleo de dendê na Bahia caiu 37% nos últimos quatro anos, o preço disparou 146% neste ano e pode faltar uma das matérias-primas para a produção do acarajé. E isso acontece justamente na retomada das atividades com a reabertura gradual do comércio em meio à pandemia de coronavírus. O salgado pode ser encontrado em barracas de Salvador (BA) por R$ 12, mas o preço varia.
Em fevereiro, eu paguei R$ 65 por um balde de 14 litros. Hoje a mesma quantidade está em R$ 160".
Rita Maria Ventura dos Santos, presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivo e Similares (Abam)
Prateleiras vazias
Além de caro, está difícil achar. Na Feira de São Joaquim, principal ponto de distribuição do azeite de dendê em Salvador, as prateleiras estão ficando vazias. A receita tradicional do acarajé não prevê nem permite trocar o azeite por similares, explica Santos. Isso é tão sério que a associação recebe denúncias quando profissionais usam óleo de soja tingido com urucum.
A escassez pode ainda trazer riscos à saúde. "O azeite precisa ser trocado no máximo a cada três ou quatro fritadas, senão satura. Mas, se muitas baianas já não respeitavam antes essa determinação da vigilância sanitária, imagine o que pode acontecer agora se o preço não voltar ao que era", alerta.
"Não dá para imaginar Salvador sem aquele perfume de dendê no final da tarde. Se faltar acarajé, vai haver guerra", afirma o economista Ilton Cândido de Jesus.
A alta dos preços do insumo ainda não chegou aos clientes porque a procura despencou durante a quarentena e 85% das baianas estão afastadas da labuta devido às regras de isolamento, diz a presidente da Abam. Mas a reabertura pode mudar este quadro.
Biodiesel compete com acarajé?
Os especialistas consultados pelo UOL divergem sobre as razões que levaram à carestia de dendê.
Para Rita Maria Ventura, o produto falta porque boa parte da produção é usada para fazer biodiesel. Alcides dos Santos Caldas, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a produção baiana vem caindo significativamente nos últimos 10 anos, e a do Pará, que sempre foi uma alternativa, está direcionada à exportação.
O presidente do Sindicato dos produtores Rurais de Nazaré, no Recôncavo Baiano, Demétrio Souza D'Essa, discorda de ambos. À frente de uma das poucas cooperativas fornecedoras para o biodiesel, ele não vê relação entre escassez do azeite de dendê no mercado alimentício e a demanda da indústria de combustíveis.
Queda de 37% na produção em 4 anos
Todos concordam que o problema é a arcaica estrutura da cadeia do dendê na Bahia. Apesar da fama, o estado é o segundo maior produtor do país, com 204.908 toneladas anuais, segundo o IBGE. A Bahia importa azeite do Pará, líder na produção e que tem área plantada quase dez vezes maior que a baiana, de 207 mil hectares de dendezeiros.
Adailton Francisco dos Santos, coordenador do Colegiado Territorial de Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul, explica que produção baiana caiu 37% nos últimos quatro anos devido à falta de crédito, incentivo para a produção, tecnologia, assistência técnica e até de mão de obra.
Estrutura antiga de colheita
Tudo isso resulta na baixa produtividade por hectare, intensificada pela antiga estrutura de colheita e processamento e pela variedade de palma predominante na região. Chamada de dura, ela produz entre uma e duas toneladas por hectare, enquanto a tenera, variedade mais encontrada no Pará, gera 24 toneladas por hectare.
Além disso, a colheita paraense é favorecida pela topografia plana, o que permite a mecanização. Já a baiana depende de mão de obra com destreza e coragem para subir pés de palma com 25 metros de altura e derrubar cachos de até 100 quilos. "Os meeiros ficam com 50% do valor da colheita e, mesmo assim, os produtores têm dificuldade para achar trabalhadores, pois os jovens já não querem o serviço", diz Santos.
Mandioca e pasto no lugar de dendezeiros
A falta de incentivo levou a Coomtrata a ficar com mais de 3.000 mudas de dendê tenera encalhadas no viveiro que mantém em Nazaré, no Recôncavo Baiano, conta D'Essa.
Muitos produtores preferem derrubar os dendezeiros e plantar no lugar mandioca, cacau ou fazer pastagens, acrescenta.
Para o professor Caldas, as produções do Pará e da Bahia não podem ser comparadas, porque a segunda possui importância histórica e cultural.
O azeite do Pará é feito por multinacionais com produção mecanizada, e que conta com rede de apoiadores como bancos e agentes públicos de fomento. É uma commodity. O dendê baiano é um produto cultural com mais de 300 anos de cultivo e preparo, que sustenta esse imaginário simbólico e não pode ser entendido apenas como mecanismo de mercado.
Alcides dos Santos Caldas
A simbologia foi construída por mulheres negras descendentes de escravas e ligadas a religiões de matrizes africanas. Elas criaram o acarajé como oferendas aos orixás, mas o salgado logo invadiu a culinária baiana.
Por isso, o ofício das baianas do acarajé foi reconhecido em 2005 como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Iphan, e o modo tradicional de preparo do prato foi inscrito no Livro dos Saberes.
Saída para a crise
Como não haverá nova safra neste ano, não há perspectiva de recomposição do preço antes de 2021. A importação do óleo de palma, como o dendê é conhecido internacionalmente, de grandes produtores como Indonésia e Malásia não é viável, já que o dólar disparou.
Para os especialistas ouvidos pelo UOL, a saída para a crise do dendê baiano não será alcançada no curto prazo, pois depende de diversos fatores. Para o professor Caldas, os municípios baianos produtores de dendê precisam seguir os passos do que Ilhéus fez com o cacau, Juazeiro e Petrolina fizeram com as uvas e Abaíra fez com a cachaça.
A sobrevivência passa por transformar o dendê em símbolo cultural da região e articular setores como turismo e gastronomia. "O governo do Estado tem que sustentar esse patrimônio que diz respeito às nossas mais caras tradições", afirma.
Uso na hemodiálise e como cosmético
Para Adainton Santos, a cadeia produtiva pode se qualificar para extrair mais da palma. Como o azeite é apenas um dos produtos do dendê, é possível:
- usar a polpa do fruto como combustível;
- queimar a casca para extrair o alcatrão, que produz a chamada fumaça líquida para defumar embutidos;
- produzir carvão ativado usado nos processos de hemodiálise;
- macerar a amêndoa para fazer o óleo de palmiste da indústria de cosméticos;
- confeccionar torta de coco, usada na alimentação animal.
O trabalho já começou. Santos, D'Essa, Caldas e Ventura integram a Rede IG Dendê, um grupo formado por associações de produtores, revendedores e consumidores do produto para solicitar o registro de Indicação Geográfica (IG) da procedência do azeite de dendê feito na região do Baixo Sul. A medida busca a valorização da produção numa extensão territorial de 26 mil hectares, que se estende por 28 municípios baianos.
Doações e empreendedorismo para as baianas do acarajé
Há mais de 7.000 baianas do acarajé associadas à Abam em várias partes do Brasil e do mundo. Em virtude das medidas restritivas de circulação, a maioria delas está fora de atividade e enfrenta dificuldades. A situação motivou a Abam a a arrecadar donativos. Isso despertou outras ações.
Simone Moutinho, delegada titular de atendimento a mulher de Peri-Peri, conta que a unidade criou cursos de empreendedorismo para as baianas aprenderem a usar a internet e vender seus produtos nas plataformas virtuais.
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