Brasil esvazia estoques de alimentos e perde ferramenta para segurar preços
Em uma década, os estoques públicos de alimentos tiveram uma redução de 96% na média anual, considerando seis diferentes tipos de grãos. Vilão da cesta básica devido ao alto preço, o arroz está entre os que mais puxaram a queda na armazenagem. Outros dois produtos estão com os estoques zerados. Considerado item indispensável na mesa do brasileiro, o feijão sumiu dos estoques públicos há mais de três anos. Já a soja, um dos principais produtos do país, não é armazenada desde 2013.
Para economistas ouvidos por UOL, a situação reflete uma política liberal dos últimos governos, que deixa os preços dos produtos à mercê da oferta e da procura do mercado e da oscilação no valor do dólar, sem interferência do Estado. Já o governo afirma haver custos altos de armazenamento e diz que os grãos não podem ser adquiridos acima do preço mínimo —valor definido anualmente—, como estabelece a legislação.
Apesar da diferença de visões, a redução nos estoques é fato concreto. Os dados estão disponíveis no site da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e foram atualizados no começo do mês.
Arroz: de 1 milhão para 21 mil toneladas
O caso do arroz chama a atenção. Em 2010, havia armazenadas quase 1 milhão de toneladas do grão, volume que despencou para 21 mil toneladas —patamar mantido desde fevereiro do ano passado a até agora.
Na análise ano a ano, é possível perceber uma curva ascendente no estoque de arroz nos três primeiros anos, chegando a casa de 1,5 milhão. Porém, após agosto de 2012, os silos só foram perdendo grãos.
O superintendente de gestão da oferta da Conab, Allan Silveira dos Santos, observa que houve duas compras de arroz durante o período: em 2011 e 2018. "Em 2014, foi feita a maior parte da venda. É natural que os estoques comecem num patamar e vão caindo."
Diferentemente de outros produtos, o arroz pode ser armazenado por anos. Porém, segundo o superintendente, os custos de estocagem são altos —os valores não foram informados.
Tudo bem que o produto valorizou agora, mas a gente nunca sabe quanto tempo será necessário ficar estocado. Pode ser um ano, cinco anos.
Allan Silveira dos Santos, da Conab
Quando são feitos os estoques
Para formar o estoque, a Conab só compra o produto quando o valor de mercado (pago ao produtor) está abaixo do preço mínimo (remuneração mínima a um mercado, suficiente para cobrir ao menos os custos de produção), observa o superintendente.
Hoje, o preço mínimo da saca de 50 quilos de arroz é de R$ 39,63 no Rio Grande do Sul. Já no Mato Grosso é fixada em R$ 47,55. Entretanto, o preço médio pago ao produtor está em R$ 102,92 para a mesma quantidade. Nesta situação, salienta o superintendente, formar estoque é inviável. "O produto já está escasso, iria ficar ainda mais."
Mas não é arriscado deixar os estoques de arroz tão baixos?
Na verdade, é uma opção de regulação de mercado. Tem opção via estoque e também de redução da TEC (Tarifa Externa Comum, aplicada para a importação do arroz). Óbvio que, se tivesse estoque elevado, poderia regular o preço.
Allan Silveira dos Santos, da Conab
A alta dos preços do arroz ocorreu por uma associação de fatores. O real desvalorizado frente ao dólar foi o primeiro deles. Na sequência, veio o aumento da procura pelo grão devido à baixa na oferta de grandes produtores como China e Índia na pandemia. Com valor baixo do grão no mercado interno, os produtores aproveitaram para exportar.
Feijão e soja: sem estoques
Desde junho de 2016, não há armazenamento de feijão nos estoques públicos, e agora se vê alta nos preços nas gôndolas dos supermercados. O superintendente da Conab observa que, diferente do arroz, o grão é mais perecível e não pode ser armazenado por muito tempo. "Em três, quatro meses perde a qualidade muito rápido. É complicado comprar e, quando for vender, não consegue. Não é só o preço, mas a qualidade." A última vez que o governo formou estoque foi em 2015.
Hoje, o preço mínimo da saca de 60 quilos de feijão é de R$ 94,90 em Minas Gerais e Paraná. Porém, o preço de mercado (pago ao produtor) oscilou, na semana passada, entre R$ 242,36, no Paraná, e R$ 276, em Minas Gerais.
No caso da soja, a explicação está relacionada ao preço: desde 2007, o valor pago ao produtor é maior do que o preço mínimo, o que impede a compra do grão pela Conab. Hoje, o preço mínimo da saca de 60 quilos de soja é de R$ 43,38 no Mato Grosso. Já o valor de mercado é de R$ 116,80.
Milho: montanha russa de números
No caso do milho, praticamente se vê uma montanha russa nos dados de estocagem. De 5 milhões de toneladas em 2010, o estoque caiu para uma média de 236 mil toneladas em oito meses deste ano —em agosto, o acumulado nos estoques era de 183 mil toneladas. Desde 2010, há um sobe e desce no total estocado, mas sem nunca voltar à marca inicial.
O superintendente da Conab afirma que havia um problema estrutural em relação a esse grão e o preço caía com frequência. Entretanto, a construção de usinas de etanol em 2017 acabou gerando procura pelo produto. "O mercado do milho mudou desde então. O preço pago ao produtor está acima do mínimo. Foram compradas 1 milhão de toneladas em 2017 e, desde então, não foi mais adquirido. As aquisições eram maiores que as de arroz, mas depois de 2017 houve mudança."
Trigo e café: baixa nos estoques
O trigo e o café foram outros dois produtos que tiveram queda nos estoques públicos. No caso do café, o volume armazenado baixou de 39 mil toneladas, em 2010, para apenas três toneladas em setembro de 2017 —e, desde agosto de 2017, o produto estocado está estagnado em 31 toneladas.
No caso do trigo, a queda foi mais abrupta: de uma média de 1 milhão de toneladas em 2010, caiu para 1.592,88 toneladas.
A economista e professora da PUC-RS Izete Bagolin, observa que, no caso do trigo, o país não é autossuficiente na produção e, por isso, a maior parte do que é consumido vem do exterior. "Como depende de importação, é limitada a capacidade reguladora do Brasil —diferente do café, no qual o Brasil é um grande produtor."
Para especialistas, estoque baixo é decisão de governo
A baixa nos estoques soa como alerta para especialistas, que percebem um movimento liberal dos últimos governos em relação aos preços. Para o professor de economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) José Guilherme Vieira, o produto armazenado pelo governo poderia ser utilizado tanto para absorver a produção —e proteger o produtor rural— quanto para segurar a disparada de preços, como a que está ocorrendo agora com o arroz.
Tem gente que acha que isso é intervenção do governo, mas não é. Quando a gente analisa pela estratégia alimentar, não é o preço mínimo que importa.
José Guilherme Vieira, da UFPR
Para o pesquisador, os países devem ter, ao menos, seis meses de estoques reguladores para não ficarem à mercê de intempéries, oscilações cambiais ou queda na oferta de determinado produto no mercado internacional.
A redução dos estoques foi totalmente incorreta. A formação de estoques é uma garantia de alimentação para o povo. É uma segurança alimentar. Além disso, um instrumento de regulação do preço.
José Guilherme Vieira, da UFPR
Vieira afirmou que, para governos liberais, a manipulação artificial dos preços —como a entrada no mercado de grãos estocados, por exemplo— é considerado um "absurdo". "Para os liberais, o preço é o artífice do sistema. É uma das raízes da política do abandono dos estoques. Há outra razão: o estado brasileiro vive em crise fiscal, e o liberalismo não gosta de déficit público. Imagina, então, investir em estoques. Isso vai dinheiro. Se pensar que está faltando dinheiro, e o governo tem prioridades, a última coisa é controlar preço, e gastar dinheiro para controlar preço é o absurdo do absurdo."
A professora Izete Bagolin, da PUC-RS, entende que os baixos estoques deixam a população brasileira vulnerável à disparada dos preços.
A gente passa a ter preço dos alimentos tabelados pela lógica de mercado, sem planejamento do governo. Isso é bom? É ruim? Para o governo vai ter menos custos de manutenção, porque o governo acaba fazendo estoque sem necessidade de usar. Por outro lado, acaba transferindo o custo coletivo para o individual. Formar estoques reguladores não é uma política de graça, mas, em momentos de crise, [as consequências] acabam vindo à tona. É uma escolha.
Izete Bagolin, da PUC-RS
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