Entrega rápida fere "Lei do Habib's" e faz motoboys correrem mais ainda?
Promoções de entrega de comida e outros produtos em até 15 minutos, adotadas por aplicativos de delivery, podem entrar em conflito com uma lei de dez anos que tenta evitar acidentes de trânsito com motos. As promoções são questionadas por sindicato de motoboys, pelo Ministério Público do Trabalho e por especialista em trânsito. O estímulo à velocidade pioraria números de acidentes com motoboys, que já cometem "abusos" nas ruas, segundo analista.
Desde julho de 2011 uma lei federal —conhecida como Lei do Habib's— proíbe que empresas estimulem a velocidade dos entregadores profissionais no trânsito. Dez anos depois, motoboys questionam por que a lei não se aplica às empresas que oferecem delivery express —modalidade de entrega em domicílio em prazos que vão de 10 a 15 minutos.
Origem do apelido Lei do Habib's
O apelido da Lei 12.436/2011 se refere à rede de fast food que tinha uma promoção de delivery em até 28 minutos. Se o prazo estourasse, o cliente não pagava a conta, mas parte do prejuízo era descontada do motoboy. Após a lei, o Habib's encerrou a promoção.
"O motoboy pegava farol, furava blitz, fazia de tudo para não chegar fora do prazo", lembra Gilberto dos Santos (o Gil do SindimotoSP), presidente do Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Moto-Taxistas do Estado de São Paulo.
A gente bateu no Habib's anos atrás, agora se cria um programa em que o cara vai ter de entregar em 15 minutos? O cliente vai exigir saco de ração, pacote de arroz, bebidas... o motoboy vai colocar aquilo tudo numa mochila e sair correndo igual um doido, sob ameaça de ser bloqueado [do aplicativo].
Gil do SindimotoSP
O que diz a 'Lei do Habib's'
A lei federal proíbe práticas de estímulo à velocidade dos entregadores, dentre elas:
- Oferecer prêmios por cumprimento de metas por números de entregas
- Prometer dispensa de pagamento ao consumidor, no caso de fornecimento de produto ou prestação de serviço fora do prazo
- Estabelecer competição entre motociclistas, com o objetivo de elevar o número de entregas ou de prestação de serviço
A crítica dos entregadores hoje não é tão voltada aos incentivos (prêmios pela agilidade), mas à punição pelos atrasos.
Motoboys que preferem não se identificar afirmam que as empresas suspendem a conta do entregador quando consideram que houve um atraso. Essa suspensão pode ser por minutos, por dias, ou até virar um cancelamento definitivo da conta.
Segundo os entregadores, nem sempre a punição é notificada expressamente. Em alguns casos, o motoboy relata que simplesmente deixou de receber chamados para novas corridas.
O que fazem os apps de delivery hoje
Empresas de delivery têm investido na publicidade da entrega rápida, focada em produtos específicos e disponível em algumas cidades. O iFood Express promete entregas em 15 minutos e o Rappi Turbo oferece delivery em dez minutos.
O UOL também encontrou oferta de delivery express no Uber Eats, mas sem prazo definido. Outras empresas, como o Zé Delivery, têm anúncios focados na velocidade do serviço, mas não estipulam um prazo de entrega.
iFood, Rappi e Zé Delivery afirmam que o modelo de serviço está dentro da lei e que não compromete a segurança dos entregadores. As empresas dizem que o delivery express é baseado em estratégias de logística e negam a aplicação de punições aos motoboys em caso de atraso (veja detalhes ao final da reportagem).
O Uber Eats afirmou que o serviço express no seu aplicativo é de responsabilidade de outra empresa, a CornerShop, que não se manifestou.
Ministério Público diz que é preciso avaliar cada caso
O MPT (Ministério Público do Trabalho) declarou que não tem poder de polícia para autuar empresas que descumpram a lei. Caso verifique que há irregularidade trabalhista, o MPT pode propor termos de ajustamento de conduta (TAC) ou ajuizar ações.
O procurador do trabalho Tadeu Henrique da Cunha diz que não pode afirmar se há irregularidade e que é preciso analisar cada caso, mas que, pelos prazos de entrega, "muito provavelmente há algum tipo de situação vedada por essa lei".
Quem fiscaliza a lei?
A fiscalização da "Lei do Habib's" esbarra em uma questão burocrática: é uma lei trabalhista ou de trânsito?
O Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), vinculado ao Ministério da Infraestrutura, afirmou que não fiscaliza porque a regra não faz parte do Código de Trânsito Brasileiro.
A Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia não se manifestou.
Na prática, a fiscalização fica para os municípios. Em São Paulo, a Secretaria Municipal de Trânsito declarou que formou um grupo com outras secretarias e as principais empresas de delivery para a regularização dos entregadores.
Entre as ações criadas pela Prefeitura de São Paulo, estão a produção de vídeos educativos, uma parceria com o Samu e o envio de mensagens de conscientização via SMS para os entregadores —o que Gil do SindimotoSP critica.
"Aí o cara está em cima da moto e toca uma mensagem de conscientização, ele olha o celular, bate e morre. Tem que parar de brincar com o bom senso e observar os parâmetros que as leis federais determinam", diz o sindicalista.
Abuso de motociclistas no trânsito
Segundo Regis Nishimoto, diretor da Perkons, empresa especializada em segurança no trânsito e mobilidade, o excesso de velocidade é o principal problema relacionado às motos. "Há um certo abuso no comportamento da forma de conduzir, principalmente com ultrapassagens perigosas, já que elas [as motos] têm aceleração mais rápida do que os veículos em geral."
Gil do SindomotoSP afirma que, de fato, alguns entregadores desrespeitam as leis de trânsito com frequência, porém atribui parte do problema às condições de trabalho. "A gente faz uma mea culpa, reconhece que há um excesso de imprudência, mas também pontua que a maioria [das infrações] é causada pelo estímulo que os algoritmos das empresas criaram para ter entrega em tempo recorde."
De acordo com o relatório anual da seguradora Líder, 79% das indenizações pagas no Brasil pelo seguro DPVAT em 2020 estavam relacionadas a acidentes de motos.
Dados de 2020 da Companhia de Engenharia de Trânsito de São Paulo (CET) apontam que 54% das 12.152 vítimas de acidentes de trânsito na cidade estavam conduzindo ou na garupa de uma motocicleta. As mortes no trânsito no mesmo grupo somaram 345 (43%).
Para Nashimoto, é importante haver uma lei que desestimule a velocidade dos entregadores. "Acredito que, na maioria dos casos, esse modelo logístico [do delivery express] dê certo, mas existem variáveis que ninguém consegue controlar, como chuva, neblina ou acidentes no caminho."
O que dizem as empresas
Habib's
O Habib's declarou que a promessa de entrega em 28 minutos não faz mais parte do delivery da empresa. Afirmou que não promove prêmios aos entregadores por entregas dentro do prazo previsto, não estimula competição entre os profissionais, assim como não implementa qualquer punição por entregas realizadas em prazo superior ao esperado.
iFood
O iFood afirmou que o serviço express funciona em "São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, Campinas, entre outras". Declarou que a escolha de pontos estratégicos e a estrutura logística permitem que os motoboys façam a entrega com segurança em uma velocidade média de 18 km/h em 15 minutos. O iFood afirmou que não concede desconto ao consumidor se a entrega atrasar e que tampouco aplica punições ao entregador.
Rappi
O Rappi afirmou que o serviço Turbo está disponível em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, para compras em estabelecimentos que ficam no máximo a 2 km de distância do consumidor. Declarou que o serviço se limita a produtos que ficam em estoques fechados ao público (dark stores), o que agiliza o processo sem comprometer a segurança do entregador. A empresa não esclareceu se há punições para os motoboys que extrapolam o prazo de entrega.
Uber Eats
O Uber Eats declarou que o delivery express anunciado em seu aplicativo é de responsabilidade da empresa CornerShop. Procurada, a CornerShop não respondeu.
Zé Delivery
A Zé Delivery declarou que não tem entregadores próprios, porque firma parcerias com estabelecimentos comerciais responsáveis pela entrega. Declarou que o raio de atuação de cada distribuidor é limitado (em média 3 km) e que não pratica a modalidade de punições ou incentivos por tempo de entrega dos parceiros.
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