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Moradores pegam ossos de boi descartados em açougues para alimentar filhos

Luciano André Barros Alves espera sua vez para levar um pacote de ossos bovinos para casa - Bruna Barbosa Pereira/UOL
Luciano André Barros Alves espera sua vez para levar um pacote de ossos bovinos para casa Imagem: Bruna Barbosa Pereira/UOL

Bruna Barbosa Pereira

Colaboração para o UOL, em Cuiabá

16/07/2021 15h15

Mara Siqueira, 35, costuma acordar por volta de 5h30 e começa uma peregrinação em busca de doações para alimentar os sete filhos. Três vezes na semana, ela é uma das dezenas de pessoas que se enfileiram em frente a um açougue no bairro CPA 2, na periferia de Cuiabá, para conseguir levar para casa pedaços de ossos doados pelo estabelecimento.

Trata-se dos restos do processo de desossa do boi. Nesses pequenos pedaços, ficam resquícios de carne, que se tornam prato principal na casa de cuiabanos em situação de vulnerabilidade financeira e insegurança alimentar.

A distribuição dos ossos começa às 11h, às segundas, quartas e sextas. Na manhã de quarta (14), o UOL esteve no local, e moradores do entorno diziam ter chegado com duas horas de antecedência.

Elen Cristina de Souza, sentada, à esq., e Mara Siqueira, sentada, à dir. - Bruna Barbosa Pereira/UOL - Bruna Barbosa Pereira/UOL
Elen Cristina de Souza, sentada, à esq., e Mara Siqueira, sentada, à dir.
Imagem: Bruna Barbosa Pereira/UOL

Mara mora no bairro Planalto, a mais de três quilômetros do açougue Atacadão da Carne. Ela aguardava no local com três vizinhas. Todas têm filhos e afirmam que não podem se dar ao luxo de deixar de ir ao estabelecimento, já que isso significaria não ter o que comer em casa.

Acordo às 5h30 e começo a andar. Conseguimos os ossinhos aqui e algumas verduras que iriam para o lixo em outros mercados. Muitas vezes, ainda somos xingadas [por donos de lugares onde pedimos doações]. Mas fazer o quê? Preciso levar comida para casa.
Mara Siqueira, desempregada

Elen Cristina de Souza, 17, também aguarda com Mara. Ao lado dela, o filho, em um carrinho de bebê, parece atento ao que está acontecendo. A jovem afirma que o ossinho é parte da maioria das refeições na casa dela.

Misturamos com tudo, mandioca, abóbora, [comemos] puro. Só não comemos cru mesmo.
Elen Cristina de Souza, desempregada

Sem emprego nem renda

Ana Maria de Jesus Araújo, à esq., e Renildes Pereira da Silva estão desempregadas - Bruna Barbosa Pereira/UOL - Bruna Barbosa Pereira/UOL
Ana Maria de Jesus Araújo, à esq., e Renildes Pereira da Silva estão desempregadas
Imagem: Bruna Barbosa Pereira/UOL

Sentadas na calçada, onde mais de 50 pessoas tentavam desviar do sol quente do meio-dia em Cuiabá, Renildes Pereira da Silva, 53, e Ana Maria de Jesus Araújo, 39, estava no início da fila.

Renildes diz que, há muito tempo, a carne grudada nos ossos que sobram no açougue é a única que ela tem condições de comer. Fazendo anotações em um caderno, fala que está mais difícil sobreviver sendo pobre no Brasil.

Ela mora com uma neta e com dois filhos, que fazem bico como ajudantes de pedreiro, no bairro 1º de Março, perto do CPA 2. DIz não saber ao certo qual a renda da família.

Abaixo de R$ 1500. Para pagar água, luz, que também está muito cara, aluguel... Depois ainda vem o gás. Quando não tem dinheiro para comprar, nós cozinhamos com lenha mesmo.
Renildes Pereira da Silva, desempregada

Para Ana Maria, que está desempregada e vive com R$ 375 do auxílio emergencial, a fila de moradores em busca de ossos é um reflexo da situação econômica do Brasil.

Tenho muito medo de piorar mais. Não gosto nem de pensar nisso. Deus não vai deixar acontecer. Antes as coisas eram melhores, depois que tirou o Lula, a coisa ficou pior. [Antes] conseguíamos comprar comida, tinha emprego", afirma, fazendo referência ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT).
Ana Maria de Jesus Araújo, desempregada

Aumento da fome

Luciano André Barros Alves, 45, já teve vários empregos, de vigilante a churrasqueiro, mas ultimamente tem tido dificuldade até para conseguir pequenos bicos. A mulher dele também está desempregada desde que teve um problema de saúde.

A fome chegou à casa de Luciano, a mulher e os três filhos, no bairro Três Lagoas, e há sete semanas ele marca presença na fila para conseguir pegar um pouco dos ossinhos.

"Faço bico as vezes. Consigo R$ 50, não dá para nada. Se não fosse esse açougue, esse pessoal todo aqui na fila não teria o que comer. Tem muitos com cinco, seis filhos, é difícil ", diz.

Ele também recebe doações de frutas e verduras de outros estabelecimentos na região.

Dão mandioca, batata. O que for, nós aceitamos. Essa fila ainda vai crescer mais ainda. Antes, nós conseguíamos comprar carne. Fico triste, porque não gosto de ver meus filhos tristes. Saio para conseguir doações para termos o que comer, quero ver meus filhos saudáveis.
Luciano André Barros Alves, desempregado

Mais de 500 quilos de ossos por dia

Restos de ossos doados pelo açougue Atacadão da Carne, de Cuiabá - Reprodução - Reprodução
Restos de ossos doados pelo açougue Atacadão da Carne, de Cuiabá
Imagem: Reprodução

Funcionários do Atacadão da Carne informam que há mais de dez anos as doações de ossos são realizadas para os moradores sem renda da região, mas dizem que a fila aumentou nos últimos tempos.

Por dia, são quase 500 quilos e eles garantem que sempre "dão um jeito" para que ninguém volte para casa sem um pouco de proteína. Açougues da região, que vendem o produto, cobram até R$ 10 o quilo.

Para Maurício Munhoz, professor de economia da Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso), a fila de moradores em busca de ossos escancara a contradição de um estado que é referência no agronegócio e na criação de gado.

"Mato Grosso tem o maior rebanho bovino do país, com cerca de 32 milhões de cabeças de gado. São aproximadamente dez cabeças de boi por habitante. Seria lógico que pelo menos o preço da carne fosse barato aqui, mas acontece o contrário", diz.

Com o dólar alto, explica, frigoríficos preferem exportar a carne a vender no mercado interno, para ganhar mais.

"Poucos grupos detêm o poder no mercado de carne no Mato Grosso. São cerca de 25 frigoríficos, que pertencem a de oito a dez grupos. Ficamos [a população] como segunda opção", afirma.