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'Eu dependia do Uber Eats': entregadores temem prejuízo com fim do app

Henrique Santiago

Do UOL, em São Paulo

18/01/2022 04h00

Feliphe Melo, 20, sai de sua casa no bairro Cordovil, zona norte do Rio de Janeiro, para fazer entrega de refeições em bairros da classe média carioca, como Copacabana, Humaitá e Lapa. Por mais de dois anos, trabalhou exclusivamente como entregador do Uber Eats, serviço que encerrará o delivery de comida de restaurantes no Brasil em 7 de março, mantendo o serviço de supermercados e pacotes.

Ele já ouvia um burburinho entre os colegas de trabalho e por isso decidiu se adiantar e migrou para a concorrente iFood, há um mês. Mas não esconde a surpresa com a perda daquela que era sua única fonte de renda. "Eu dependia só do Uber Eats, são milhares de entregadores prejudicados. Tive que partir para o iFood, senão não ia ter o que comer", diz.

Feliphe Melo, entregador de aplicativo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Feliphe Melo trabalha 14 horas por dia como entregador do Uber Eats
Imagem: Arquivo Pessoal

14h de trabalho, R$ 2.500 por mês

Desde antes da pandemia, Melo mantém uma rotina esgotante: pedala de bicicleta seis dias por semana, com folgas às quintas-feiras, por até 14 horas diárias. Só fica tranquilo quando atinge a meta de 20 entregas por dia, mas não é sempre que isso acontece. Recebe não mais do que R$ 2.500 mensais - a Uber Eats paga em média R$ 5 por pedido feito, independentemente da distância, conta.

Entre as viagens de trem e bicicleta, Melo leva mais de uma hora para chegar na região onde bombam os restaurantes. Conta que já sofreu seis acidentes: quatro vezes fechado por carro e duas vezes ao passar por buracos no asfalto em dia de temporal. Em todas, teve de pagar os remédios e curativos.

O Uber Eats, assim como as demais empresas do ramo, não oferece benefícios aos entregadores, chamados de parceiros, apenas o aplicativo para uso. A mochila com o logotipo do Uber Eats custa R$ 85. O dinheiro de qualquer reparo no veículo sai do bolso do trabalhador.

A Uber disse em nota que os entregadores recebem um valor que "varia de acordo com uma série de fatores, como a cidade em que eles atuam, engajamento do parceiro na plataforma, horário do dia, movimento na região, distância a ser percorrida".

Ainda assim, Feliphe Melo encontra mais vantagens do que desvantagens no trabalho. "Eu não acho R$ 5 um valor ruim, a demanda é alta e acaba suprindo", afirma ele, que já pensou em um plano B e se cadastrou em mais apps.

Alugou casa para morar perto do trabalho

Rennan Resende, entregador de aplicativo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Rennan Resende trabalha para o Uber Eats há dois anos
Imagem: Arquivo Pessoal

O cadastro para ser entregador do Uber Eats é gratuito e sem burocracias. Basta criar uma conta, inserir documentos e fotos (para carteira de habilitação para motos ou carros) e fazer uma selfie. A aprovação vem em pouco mais de uma semana. Foi essa facilidade que chamou a atenção de Rennan Resende, 20, que faz entregas de bicicleta para a empresa há dois anos.

Além de entregador, é diretor da APP (Associação de Profissionais por Aplicativo), entidade que representa 190 profissionais da categoria do Rio de Janeiro. Para ele, a saída de cena do Uber Eats não muda muito a rotina, pois os trabalhadores seguirão para outros aplicativos.

"Vai ter um impacto no começo, sim, porque muitos são reféns da plataforma. Eu vou continuar pensando em como ajudar as pessoas e a trabalhar nas plataformas, porque não adianta tentar corrigir os problemas sem ter o que comer", avalia.

Inicialmente, Resende conta que comprou a ideia de "ser seu próprio chefe" e fazia seu próprio horário de trabalho, que geralmente passava de 10 horas por dia. Foi aí que começou a se sentir pressionado para fazer mais e mais entregas e, com isso, se irritar com motoristas no trânsito e porteiros de condomínios. Dores corporais também o acompanharam.

Para se adaptar ao trabalho, chegou a deixar a casa da família em Cascadura, na zona norte, para morar no Catete, na região sul, o que facilitou as entregas feitas nos bairros Botafogo e Flamengo. O dinheiro mal cobria o aluguel de R$ 1.100.

Resende diminuiu a carga horária para seis horas por dia, e divide o tempo com as aulas de filosofia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Seus ganhos por dia despencaram, consequentemente, para cerca de R$ 25 por dia, o que dá menos de um salário mínimo (R$ 1.212) por mês. Ele voltou a morar com os familiares antes de pensar quais são os próximos passos de sua vida.

Ele afirma que a precarização da mão de obra terá resultados negativos para o país. "É fácil entrar, mas é muito difícil sair. Tem muita gente de comunidade trabalhando nisso, menores de idade também. Não é bom trabalhar com aplicativo, mas o problema é estrutural, déficit de educação e emprego formal."

Restaurantes veem monopólio

Micael Augusto Braz, proprietário de restaurante - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Micael Augusto Braz acredita que os restaurantes ficarão mais dependentes do iFood
Imagem: Arquivo Pessoal

O dono do Gigante Burger & BBQ, Micael Augusto Braz, trabalha com o Uber Eats desde que a empresa desembarcou no Brasil, em dezembro de 2016. A cada três pedidos feitos no seu estabelecimento, um é pelo aplicativo.

Ele acredita que a retirada da Uber do mercado de delivery irá fortalecer o iFood, que é mais acionado por seus clientes. "O impacto é muito grande, infelizmente abre margem para o monopólio. Ficaremos à mercê do iFood e das taxas que quiserem impor a partir de então", declara.

De acordo com Braz, o Uber Eats cobra de seu restaurante uma taxa de 30% a cada compra.

A empresa afirma, em nota enviada ao UOL, que os valores são negociados "caso a caso" e são usados para subsidiar transações com cartões de crédito, investir em ações de marketing e melhorias no aplicativo do Uber Eats.

Braz acredita que terá uma dor de cabeça pela frente, pois o raio de alcance do aplicativo do iFood é menor que o do Uber. São 10 km contra 7 km, afirma. Ele busca como alternativas os apps Lalamove e Loggi, que, segundo ele, não têm a mesma força na região onde trabalha, em Santana, zona norte de São Paulo.

"Meu desafio vai ser trazer o cliente para dentro do meu restaurante ou que ele migre para dentro do iFood."

Delivery próprio é inviável

Erik Araújo, proprietário de restaurante - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Erik Araújo diz que é inviável contratar motoristas para fazer entregas
Imagem: Arquivo Pessoal

Erik Araújo, proprietário do restaurante La Buena Onda, diz que o Uber Eats era responsável por quase 80% de suas vendas por delivery em 2018. No ano passado, porém, chegou a 10%. Diz que agora deverá haver maior dependência de só uma plataforma.

O seu restaurante, que fica na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, depende cada vez mais dos aplicativos: 75% das vendas são por iFood, Rappi ou Uber Eats. Por manter um negócio pequeno, Araújo não consegue bancar um delivery próprio.

"Os meus custos seriam muito altos para isso, eu teria que gerenciar dois ou três motoqueiros na distribuição, é inviável. Eu vou ter que abraçar o que será apresentado pelos aplicativos para mim", afirma.

Uber Eats pode voltar?

O pesquisador e pós-doutorando em sociologia do trabalho pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Marco Gonsales, estuda o fenômeno dos entregadores de aplicativos no Brasil. Ele até chegou a ser um durante um trabalho de campo, por 15 dias. Disse que teve prejuízos, pois gastou R$ 215 em equipamentos (mochila, capa para celular e outros) e ganhou R$ 168 com as entregas de bicicleta.

Na sua visão, a Uber Eats pode voltar ao Brasil em breve com uma repaginação de marca. Ele aposta em modelos já usados no exterior e um pouco no Brasil também, como as dark kitchens, que são restaurantes que funcionam apenas para entrega.

"O Uber sai de lugares onde tem prejuízo para se posicionar melhor em mercados onde há resultado mais eficiente. Se não faz esse ajuste estratégico, pode perder espaço também onde está bem financeiramente."