R$ 600 bi nas mãos: quem é a mulher mais poderosa do capitalismo no Brasil
A elite do mundo financeiro é geralmente retratada por homens brancos ambiciosos. Mas, em se tratando de Marise Reis de Freitas, 59, convém esquecer os estereótipos de Hollywood, a turma do coletinho da Faria Lima e os tuiteiros barulhentos que opinam bastante, mas não fazem preço.
Mineira de Diamantina, ela se tornou uma das mulheres mais importantes e poderosas do capitalismo brasileiro, superando adversários em silêncio, enfrentando crises com calma e estudando modelos de análise de risco aplicados a portfólios de renda fixa.
Marise é executiva da BB Asset Management. Sua missão é decidir o que fazer com uma montanha de R$ 600 bilhões pertencentes a milhões de investidores que compram fundos de renda fixa no Banco do Brasil. Hoje, comanda um time de seis analistas, responsável por gerir 47 fundos de renda fixa indexada.
Ela é a gestora responsável por mais dinheiro, em volume, no mercado brasileiro. O montante supera a carteira de muitos bancos privados e representa mais de 6% do PIB do país.
Mas Marise quase ficou fora do jogo da grande finança no início da carreira
No começo dos anos 1990, com um diploma de economia e apetite para o mercado, ela deu de cara com uma barreira clara nas vagas em corretoras e bancos privados às quais se candidatou.
Marise tinha filhos e, pela lógica machista, a maternidade seria incompatível com as jornadas de trabalho no mercado financeiro. Mas ela provou que empregadores estavam errados.
"Casei muito cedo em Minas, vim para o Rio e fui estudar quando já tinha dois filhos. Uma coisa que ouvi muito na iniciativa privada: 'Ah, mas você já tem filho, né?', 'ah, mas você já é casada e tem filho, né?'. E no Banco [do Brasil] nunca me perguntaram isso."
Trabalho dos sonhos e alto salário
Em conversa com o UOL por videoconferência na tarde de 10 de fevereiro, Marise, que tem dois filhos e hoje é avó de duas crianças, conta que se inscreveu no concurso do Banco do Brasil em 1993, 15 dias após o nascimento da filha mais nova.
Tinha 30 anos quando ingressou na instituição.
Cruzava todos os dias a baía de Guanabara. De Niterói, onde morava, rumo à zona norte do Rio até chegar à agência onde trabalhava em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Exercia atividades operacionais. Depois, conseguiu uma transferência para a agência do BB Centro-Rio, a maior do país.
Marise deu o grande salto na carreira em 1998, aos 35 anos e apenas cinco de banco: foi aprovada em um processo seletivo de três etapas para a então BB DTVM (Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários), o "dream job" dos funcionários mais qualificados da instituição. Era a chance de operar no mercado financeiro com alta remuneração. A BB Asset não abre o valor da remuneração de seus executivos.
Embora pertença ao Banco do Brasil, a BB Asset Management —nome da gestora desde 2022— tem uma estrutura independente e é um colosso que controla R$ 1,4 trilhão. O valor compreende os R$ 600 bilhões geridos por Marise e investimentos em outros tipos de ativos, como renda variável, câmbio e títulos de infraestrutura.
Essa separação —chamada no mercado de "Chinese Wall"— serve para evitar que a gestora faça negócios pensando primeiro nos interesses de seu controlador, o BB, em vez de servir aos de quem comprou cotas de seus fundos. Para tentar evitar conflitos de interesse, a BB Asset tem times próprios de analistas, como toda gestora de banco grande.
Transatlântico, Americanas e risco
Um título de renda fixa é uma obrigação contraída pelo governo ou por uma empresa privada que prevê o pagamento em datas preestabelecidas de juros e do principal do empréstimo.
A renda fixa difere da variável, que é quando o investidor compra uma fração do capital social de uma empresa. Em outras palavras, uma ação negociada na Bolsa de Valores.
Marise é especialista em analisar o risco de títulos de renda fixa e toma a decisão de quando comprar e quando vender um papel.
Sua dissertação de mestrado em finanças na Fundação Getúlio Vargas, apresentada em 2011 em linguagem direta e tão coloquial quanto possível, disseca formas de minimizar os riscos de se perder o dinheiro alheio.
Evitar a concentração na compra de títulos de dívida emitida por um único emissor é uma delas, sobretudo no caso de dívida privada.
"Se um fundo [que eu opero] pode ter crédito privado e eu posso ter 5% de um único emissor, eu tenho esses 5%? De jeito nenhum. Quando faço alocação em crédito privado, faço alocações muito menores do que a legislação me permite. É preciso ser mais conservador. Mas eu gosto do crédito privado, tá? Acho um bom ativo", explica.
Ume exemplo prático: o caso das Americanas. Logo após a descoberta do rombo bilionário que levou a empresa à recuperação judicial e à antessala de um calote em bancos e investidores, a filha de Marise, que não se interessa por finanças, ligou perguntando se ela tinha perdido dinheiro com algum dos fundos geridos pela mãe.
"Eu disse a ela: 'Ué, você não percebeu, não?' Se ela não percebeu, então é porque acertamos na alocação", diz.
Um dos fundos geridos por Marise tinha títulos de dívida das Americanas no portfólio, mas a alocação era de módico 0,10% do patrimônio líquido do fundo.
Gerir portfólios de centenas de bilhões de reais é como pilotar um Boeing ou conduzir um navio transatlântico. Viradas repentinas e movimentos bruscos são fortemente desaconselhados.
Um gestor com tanto poder pode fazer disparar o preço de um ativo em uma compra atabalhoada ou levá-lo à lona se vendê-lo muito rápido.
"Minha equipe tem muito cuidado. Se vou fazer uma compra, eu começo com muita antecedência e vou fazendo o movimento aos poucos. Exatamente pelo nosso tamanho e para não criar uma distorção no mercado. Dá trabalho, sim. Uma gestora que não tem um volume muito grande vai mandar uma ordem e montar a posição que precisa. Eu não posso fazer isso. Vou fazer um lote hoje, outro amanhã, dois depois", explica.
A tela piscando nos momentos de pânico
Marise atribui seu sotaque "neutro" ao fato de ter nascido em Minas e vivido muito tempo em São Paulo e no Rio. Mas há uma "mineirice" intrínseca no modo como trata as pessoas.
Ela fala baixo e pausadamente. E deixa escapar um senso de humor irônico à medida que a conversa com o interlocutor avança.
Questionada sobre os prós e contras dessa característica, ela relembra setembro de 2008, quando o banco de investimentos Lehman Brothers quebrou e títulos hipotecários norte-americanos passaram a valer zero, derretendo mercados globais.
Fundos do mundo inteiro registraram ondas de resgates naquele mês. Investidores temiam que as perdas se alastrassem ainda mais.
"Meu chefe estava preocupado se haveria resgate [em massa] e veio me perguntar. Eu disse bem claramente: 'Não tenho nenhuma preocupação com isso porque eu tenho recurso para pagar resgate'. Estava numa posição líquida."
Posição líquida, no jargão financeiro, significa possuir ativos que podem ser convertidos em dinheiro rapidamente sem que seja preciso vendê-los em um mau momento.
O grande problema para o gestor, segundo Marise, é se ver encurralado tendo de comprar ou vender em horas ruins. Quem consegue gerenciar isso vive momentos de pânico generalizado com "relativa tranquilidade". Relativa por quê? Porque é o dinheiro dos outros que está em jogo.
"Quando você vê aquela tela piscando e vê que vai ter uma cota ruim, é doído. Ah, vai voltar [a subir]? Vai voltar, mas a gente pode precisar daquele dinheiro antes. É a vida das pessoas que está na minha mão. Você gerencia isso bem quando trabalha para não estar em posição de ser pressionado."
A crítica mais recorrente aos fundos pilotados por gestoras ligadas aos grandes bancos brasileiros refere-se às altas taxas de administração cobradas do investidor.
"As grandes instituições sofrem muitas críticas pelas taxas de administração. Mas você tem que ter uma equipe, uma estrutura. Não tenho como ter seis analistas trabalhando sem remuneração", esquiva-se.
Lula, o Banco Central e as 'doninhas' de Copacabana
Segundo Marise, o principal complicador do mercado brasileiro é o constante ruído político.
Ele deveria estar em declínio após o fim do processo eleitoral, mas as críticas de Lula ao Banco Central ajudaram a manter a volatilidade alta. Isso é perceptível, segundo ela, nos movimentos bruscos de alta e baixa de juros futuros em um mesmo dia (no "intraday", no dialeto do mercado).
"Não é que a volatilidade seja ruim pro gestor. Não é isso. Mas nesses anos todos aqui, eu nunca vi a renda fixa com tanta volatilidade. Eu digo no 'intraday'. Vejo o patamar de taxa futura indo lá em cima, voltando. Movimentos intensos no mesmo dia. Isso é um fator que exige mais cuidado na alocação para minimizar esse efeito para o cotista no fim do dia", explica.
O cenário básico com o qual ela trabalha é o de manutenção do sistema de metas de inflação --um dos alvos de Lula para fustigar o Banco Central, acusando-o de manter altas as taxas de juros e sacrificar o crescimento econômico.
"A gente tem uma expectativa para o cenário de manutenção do sistema de metas, tem um processo de desinflação em andamento com queda da taxa [de juros] no segundo semestre, mas a premissa básica é a manutenção do sistema de metas."
É uma balela a visão de que o dinheiro que circula no mercado financeiro vem unicamente dos bilionários e super-ricos, afirma Marise.
Ela gosta de lembrar que a maioria dos investidores dos fundos comercializados pelo Banco do Brasil é composta por gente normal. Professores, pequenos comerciantes e a senhorinha aposentada de Copacabana.
"Grande parte dos nossos cotistas são as doninhas de Copacabana, a turma que está pegando a barca para atravessar para Niterói. É o cidadão comum que está juntando dinheiro para pagar a universidade do filho, para trocar de carro. Essas coisas do dia a dia da classe média."
Admiradora do Clube da Esquina e torcedora do Cruzeiro
Reservada na vida pessoal, Marise é fã de Milton Nascimento --"Ponta de Areia" é sua canção favorita-- e nas férias costuma viajar ao exterior. Logo depois da entrevista, embarcou para Baltimore, nos Estados Unidos, para visitar amigos até a Quarta-feira de Cinzas.
Nas horas vagas, assiste a jogos de futebol na TV. Uma torcedora insólita: cruzeirense desde a infância, agregou o Flamengo após viver no Rio e passou a simpatizar pelo América-MG recentemente, quando o Cruzeiro frequentou a Série B do Campeonato Brasileiro.
Estaria a gestora repetindo a estratégia da renda fixa no esporte? Diluir a torcida em vários times diferentes para evitar uma grande decepção no final? Marise gargalha: "Pode ser, pode ser...", consente.
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