Coach não é bagunça: profissionais se queixam de "banalização" da atividade
Um influencer leva 30 seguidores para uma montanha em dia chuvoso e quase mata todo mundo de hipotermia. Outro viraliza por associar cerveja a uma ameaça à virilidade masculina. Outros vêm de fora para fazer do Brasil um estudo de caso para um curso de turismo sexual.
Os personagens das histórias acima têm uma coisa em comum, além de serem todos homens. Eles se apresentam ao público como "coaches". Ficaram, assim, conhecidos como "coaches" messiânico, do Campari ou do namoro —para desespero dos profissionais da área.
Toda vez que figuras do tipo ganham holofotes, a International Coaching Federation Brasil (ICF Brasil), uma associação global responsável pela certificação de profissionais da área, vem a público recomendar cuidado: há muita gente sem qualificação usando o nome "coach" em vão.
A má fama, segundo a ICF Brasil, prejudica toda uma classe de profissionais. E a "incorreta familiaridade com o processo" banaliza e manda para longe a seriedade do seu trabalho.
A entidade é presidida por Camila Bonavito, uma administradora de empresas de 47 anos com MBA em liderança e gestão de pessoas que iniciou a transição para o trabalho de coaching após ela mesma se orientar com um profissional da área.
Ela é uma das pessoas que sucederam Marcus Baptista, 65, atual presidente do conselho deliberativo da ICF, que também deixou a carreira executiva, até então voltada a vendas e marketing, para abraçar a missão.
Ambos se reuniram com a reportagem para divulgar números de uma pesquisa recém-divulgada sobre o universo dos coaches brasileiros.
A instituição possui 54 mil membros associados em 167 países. O Brasil é um mercado ainda incipiente, com menos de 500 associados ao ICF e só metade deles credenciados (sim, são categorias distintas, mas já chegamos lá).
Coach, para começo de conversa, não é tudo igual. Há uma hierarquia entre profissionais que se reconhecem por credenciais como ACC (associate certificate coach), PCC (professional certificate coach) e MCC (master certificate coach), o topo do todo da carreira.
Marcus, que busca o selo de master, é da linha da antroposofia, uma ciência espiritual. Camila Bonavito tem formação mais voltada à psicanálise.
Há um pouco de tudo entre os profissionais: de coaches alinhados à neurociência a outros, voltados a terapias gestaltistas, uma das muitas doutrinas da psicologia.
O ICF, explicam os gestores, não é uma escola de coaching, mas uma associação de licenciamento que oferece educação continuada para quem já tem experiência na área. Isso significa que a entidade é responsável por atestar alguns requisitos exigidos para atuar na área —subir a montanha em dia de chuva para testar a resiliência dos clientes não é uma delas.
Um detalhe é que a profissão de coach, segundo a pesquisa, é majoritariamente feminina: 64% dos profissionais são mulheres. E a maioria trabalha em pelo menos outras três atividades relacionadas ao desenvolvimento humano, como liderança, treinamentos e consultoria.
A maior parte dos coaches brasileiros ouvidos pela pesquisa (45%) é baby boomer. Ou seja, nasceu entre 1946 e 1964. Outra parte (44%) é da geração X (1965-1981). Apenas 9% é da geração millennial (1982-1996) e 2%, da geração Z (1997-2010). Isso talvez explique o estranhamento das novas gerações com a prática, talvez cringe demais para quem tem mais tempo de Twitter do que de profissão.
O tempo na terra é uma variável importante no trabalho de coach. Com a idade ficamos mais capazes de discernir com mais clareza as questões da vida. Quando você está no início da carreira, você está ocupado ainda em conquistar e descobrir o seu lugar. Quando começa a ficar preocupado em manter o seu lugar, você já está pronto para começar a fazer as suas contribuições
Marcus Baptista, presidente do conselho deliberativo da ICF
Newsletter
POR DENTRO DA BOLSA
Receba diariamente análises exclusivas da equipe do PagBank e saiba tudo que movimenta o mercado de ações.
Quero receberParceria com clientes
Por definição, coaching é uma parceria com clientes, geralmente gestores de empresas, em um processo criativo que os instiga a refletir e maximizar seu potencial pessoal e profissional.
Coaches são pessoas com carreira corporativa, experiência de vida profissional e pessoal e que precisam de maturidade para atuar nesse mercado. Nós cuidamos do nosso autodesenvolvimento, e fazer isso demanda tempo.
Camila Bonavito, presidente da ICF Brasil
Em geral, as pessoas que contratam coaches são via empresa, e não por conta própria. Um exemplo é a Petrobras, que, por meio da Fundação Dom Cabral, contratou serviços de profissionais associados ao ICF para seus funcionários e executivos.
Para trabalhar como coach profissional, o interessado deve procurar um programa de formação específica em coaching. Para ser membro da ICF, o postulante tem uma série de capacidades analisadas por um avaliador independente que assistirá suas sessões gravadas. Nelas o candidato precisa mostrar que tem "a mentalidade de coaching", que sabe estabelecer acordos e cultivar confiança, que promove escuta ativa, evoca conscientização e facilita o crescimento do cliente. Ele também é submetido a um código de ética e passa a ser "vigiado" em um processo de revisão de conduta pelo qual pode ser até denunciado por clientes em um fórum específico.
Se passar no teste, o candidato ganha uma transparência que acompanha o logo de seu e-mail apontando a escola onde estudou e quando fez o exame.
Camila e Marcus dizem que o trabalho do coach tem crescido em um contexto de desorientação e adoecimento, que acompanham fenômenos como os de demissão silenciosa, explosão de burnout, dúvidas sobre o futuro de profissão em risco, ambientes econômicos voláteis - e muita gente operando no piloto automático. Coaching seria, então, uma espécie de terapia para crises em ambientes corporativos?
"O coaching é terapêutico, mas não é terapia", explica Marcus Baptista. "O psicólogo investiga as relações do passado, suas causas e raízes. Ele tem competência para trazer essas questões para o presente. O nosso olhar é daqui para o futuro: a gente ajuda o profissional a subir na montanha e olhar para a sua situação em 360º. Para enxergar seus pontos cegos é preciso ganhar altitude", diz ele, sem qualquer referência a coaches messiânicos. "Nossas sessões são limitadas e definidas. Mas quando o cliente de coaching resolve fazer as duas coisas, o resultado geralmente é mais rápido."
O coaching tem paralelos interessantes com a psicanálise. Nós também precisamos rever a nossa prática, então passamos por uma supervisão, uma prática que vem da psicanálise. E precisamos de um espaço de troca para refletir sobre nossos atendimentos, nossos medos e angústias.
Camila Bonavito
Uma das razões da angústia é o que eles chamam de banalização da profissão. "Muitos têm habilidades em comunicação e levam um monte de gente ao engano", diz Baptista, com o cuidado para não citar nomes.
No Brasil, a situação ficou mais exacerbada por conta de algumas subcelebridades e também de um ataque sofrido pela categoria em meados de 2019, quando o Senado parou para analisar uma iniciativa popular que buscava criminalizar o coaching no país. O autor da iniciativa é um rapaz de 20 anos, segundo Baptista.
Na ocasião, ele foi até Brasília participar de uma audiência para defender a classe (ao menos os devidamente certificados). "Foi um esforço para mostrar o que faz um coach real."
No fim, os parlamentares concluíram que não cabia criminalizar a profissão, mas que ela deveria ser regulamentada —a ICF defende a tese da autorregulação do setor.
Atualmente cinco projetos tramitam no Congresso sobre o tema e todos eles, segundo a associação, estão longe do bom senso.
Um dos projetos prevê que a profissão seja assegurada a bacharéis diplomados com mais de cinco anos de profissão. A ICF é contra. Defende que um executivo com mais de 20 anos de experiência em multinacional tem mais a oferecer do que qualquer recém-formado.
Baptista lembra que a palavra "coach" vem do inglês e denomina "aquele que treina". Ela se refere a treinadores esportivos e até preparadores de elenco. "A palavra hoje está em voga. Precisamos criar conhecimento e ajudar as pessoas a entender o que fazemos", diz.
"É que nós aparecemos pouco", corrige Camila, antes de terminar a entrevista. "Esperamos que agora a gente comece a aparecer mais."
Deixe seu comentário