Trabalho abala mente de estagiários: 'Achava que ia morrer domingo à noite'

Catarina* estava em êxtase para começar seu primeiro estágio em uma grande empresa. Era a expectativa pela oportunidade ímpar e pelas incertezas comuns de ingressar num ambiente até então desconhecido.

Na empresa, ela se sentiu muito acolhida: foi orientada por gestores e colegas, fez amigos e estava aprendendo com a experiência. Mas em poucos meses, começou a se sentir desconfortável pelo comportamento abusivo de uma pessoa que não era sua líder.

Cobranças que não faziam parte do trabalho de Catarina, feedbacks sempre negativos e conversas paralelas sobre o desempenho dela tornaram o ambiente desagradável. "Isso fez com que eu entrasse num desgaste mental muito grande", conta. Nada mudou após ser efetivada.

Fui atacada várias vezes de formas incisivas. Nunca houve xingamentos nem palavrões, mas sempre houve muitas grosserias. Catarina

A partir daí, a jovem foi se apagando dentro da empresa; antes sorridente e sociável, ficou mais reservada, pouco falante. O medo e a tensão fizeram Catarina começar a duvidar da sua capacidade e inteligência. "Ainda é muito difícil, acabou com minha sanidade mental."

Faltam programas efetivos

Uma pesquisa da Companhia de Estágios traçou o perfil dos estagiários e candidatos a estágio no Brasil. O levantamento com 6.226 pessoas abordou a saúde mental pela primeira vez.

Um em cada dez estagiários já enfrentou problemas emocionais relacionados ao trabalho atual ou anterior;

35% precisaram se afastar das atividades devido a doenças mentais;

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Dos que se afastaram, 56% pediram demissão e 10% foram demitidos.

Quando se fala de doenças mentais, as causas são variadas, e o trabalho é fator importante, pois ocupa parte significativa da vida. Por isso, a Companhia de Estágios destaca "a importância de políticas de apoio e prevenção de doenças emocionais nos programas de estágio".

Ações direcionadas trazem ganhos para as empresas. Um estudo da Deloitte mostrou que cada 1 libra investida em apoio ao bem-estar traz um retorno médio de 5 libras para a empresa.

Programas efetivos podem evitar casos como o de Roberta*, que foi diagnosticada com síndrome de burnout durante o segundo estágio, na pandemia. Sem conseguir delimitar horários por estar trabalhando em casa, ela recebia exigências dos superiores e pressão dos clientes da empresa.

Foi uma das maiores crises de ansiedade que eu tive no trabalho. Depois disso foi piorando. Comecei a achar que tudo que eu fazia estava errado, passava horas e horas pensando no trabalho. Não conseguia me desligar de jeito nenhum. Roberta

Na experiência anterior, em 2018, eram apenas Roberta e a dona da empresa para atender uma alta demanda. Sem direcionamento, a jovem ficava sozinha no escritório, uma vez que a chefe trabalhava de casa durante o dia e só aparecia à noite, quando ela já tinha encerrado.

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A estudante era acionada fora do expediente e fazia horas extras, o que não é permitido pela Lei do Estágio —há exceções, mas não era o caso. "Ela ligava para o escritório até 10 minutos antes do final do meu horário para passar uma demanda que dizia ser urgente e precisava ser entregue naquele dia. Foi uma das razões para eu sair de lá."

Cargo vulnerável

Em fase de aprendizado e desenvolvimento, estagiários se veem, por vezes, com receio de falar ou indicar qualquer conduta por achar que é normal.

Foi esse o pensamento de Luana Moraes, 28, quando se deparou com horas extras, trabalho no fim de semana e uma pressão por resultados.

"Trabalhávamos com metas semanais, existia um ranking semanal de performance, porém não tinham sessões de feedback sobre o que melhorar", conta. "Apenas apontavam que aqueles não eram os resultados esperados."

Sem apoio da liderança para se desenvolver e compartilhar o que vivia, ela começou a ter crises emocionais e foi diagnosticada com depressão.

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Decidi pedir demissão após começar a achar que ia morrer no domingo à noite. Ao pensar que o dia seguinte era segunda-feira, eu sentia que meu coração ia sair do peito, transpirava em excesso, tinha vertigem, sensação de peito apertado e até engasgo. Luana Moraes

Luana só contou aos gestores sobre a doença quando pediu o encerramento do contrato. "Nunca contei porque imaginei que as pessoas não receberiam bem. Achariam que eu era menos capaz por ter um quadro depressivo e tomar remédios fortes na época."

Impacto no longo prazo

No levantamento da Companhia de Estágios, 55% dizem que o afastamento do trabalho prejudicou muito a carreira. Segundo Jéssica Gondim, gerente da empresa, os impactos incluem:

Não confiar nas próximas lideranças por acreditar que esse é o modelo padrão do mercado;

Barreira para criar vínculo com lideranças, que afeta o desempenho e o rendimento;

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Visão distorcida por parte dos gestores, que entendem que a pessoa não tem o perfil aderente à companhia.

"A liderança tem de estar sensível ao comportamento de cada funcionário", diz Gondim.

Roberta sente como as experiências negativas afetaram sua carreira. Primeiro, teve prejuízos na faculdade porque as horas extras a faziam chegar tarde às aulas. Depois, ficou insegura sobre o próprio trabalho. "Mexeu muito com a minha confiança. Sempre me questiono se meu trabalho está bom", diz.

São marcas que ela leva até hoje. "Tenho conversas com time e gestores o tempo inteiro porque me sinto insuficiente. Essa parte de duvidar de mim é constante e está presente ainda."

Empresas podem ser punidas

Não é "mimimi" da geração Z. A forma como algumas pessoas estagiárias são tratadas no trabalho vão contra o previsto em lei. "A empresa pode ter problemas jurídicos se não fizer acompanhamento do estagiário", diz Gondim.

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Hora extra não é compatível com a modalidade de estágio. A empresa precisa comunicar o RH e gestores sobre isso, porque às vezes é falta de informação. Jéssica Gondim, gerente da Companhia de Estágios

Outra questão jurídica envolve a falta de feedback e pressão por resultados. "Estagiário não pode ser responsável por projeto significativo em sentido de meta, não pode ser cobrado por resultados. Essa pressão não pode existir", alerta a gerente.

É preciso falar mais

A pesquisa mostra que apenas 16% dos estagiários receberam algum tipo de apoio ou assistência por parte da empresa. Esse movimento de apoio é recente.

"O tema tem aparecido pelos movimentos do mercado, de burnout pós-pandemia, porque as pessoas passaram a olhar mais para isso", diz Gondim.

Outro destaque do levantamento é que 10% não souberam dizer se tiveram problemas de saúde mental. A especialista atribui isso à falta de informação sobre o assunto. Para ela, não adianta a empresa e o RH estarem engajados no acolhimento dos estagiários se as lideranças não estão conscientes e preparadas para isso.

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Assim, é preciso fazer campanhas sobre o tema e incluir o assunto na trilha de desenvolvimento dos estagiários, indo além da soft skills e hard skills. Nelas, vale explicar o que é saúde mental e quais são os sinais problemáticos, como não conseguir desconectar no fim de semana e se sentir inseguro no ambiente.

Além dos benefícios geralmente vistos nas empresas, como assistência jurídica, psicológica, social e programas de saúde física, o discurso de saúde mental deve estar no dia a dia.

"A partir do momento que a liderança está consciente da importância disso, ela avisa para cumprir o horário, pergunta o que tem feito no fim de semana. É um discurso que faz parte da cultura da empresa", diz a gerente.

Outro cuidado envolve cobrar resultados e demandas com foco em desenvolvimento e aprendizado. "Os estagiários vão querer se envolver, mas não pode colocar carga de responsabilidade como coloca em analista e assistente", comenta Gondim.

Como procurar ajuda

A pessoa que se sentir desconfortável, ameaçada ou prejudicada no estágio deve procurar a liderança para reportar o problema. Se não for viável, busque os canais oficiais de denúncias da empresa. "É o canal mais seguro, em que a pessoa vai passar o que está acontecendo e a empresa vai avaliar para tomar decisão", explica Gondim.

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Se a companhia for pequena e não tiver esse canal, tente falar com a pessoa que contratou você. Em paralelo, converse com pessoas próximas de confiança para ter uma visão externa e rede de apoio. "A pessoa tem de ser transparente, porque é um cuidado com ela mesma. Vai também muito do autoconhecimento e da coragem para falar", diz Gondim.

*Nomes fictícios para preservar a identidade das pessoas

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