Indústria imita rótulo para driblar veto a propaganda de fórmula, diz Idec

Influenciadores digitais com milhões de seguidores têm aparecido nas redes sociais em ações de publicidade de fórmulas infantis (leites artificiais) da Nestlé e da Danone. Os itens divulgados imitam embalagens de produtos cuja propaganda é proibida. O tema é alvo de uma ação na Justiça. A indústria diz que segue a lei e que apoia o aleitamento materno.

Entenda o caso

Como a propaganda das fórmulas infantis é vetada, Nestlé e Danone têm promovido produtos parecidos, cuja divulgação é permitida: as fórmulas voltadas para crianças a partir de um ano e os compostos lácteos, alimentos feitos com leite e outros ingredientes, como óleos vegetais.

A lei brasileira proíbe publicidade de fórmulas infantis para crianças com menos de um ano. O entendimento é de que esse tipo de publicidade desincentiva o aleitamento materno, assim como a de chupetas e mamadeiras.

O Idec entrou com uma ação civil pública contra Nestlé, Danone e Mead Johnson (dona da fórmula Enfamil) em junho de 2022. A ação pede a responsabilização das empresas por promoção cruzada, que consiste em assemelhar rótulos, cores e logos para associar produtos diferentes. O foco da ação é a suposta propaganda indireta da fórmula para bebês com menos de um ano por meio do rótulo dos compostos lácteos.

Os rótulos e os nomes desses produtos são muito semelhantes. A fórmula para crianças de até um ano da Nestlé tem o nome de Nan. Para crianças a partir de um ano é o Nanlac. O composto lácteo é o Neslac. Na Danone, a fórmula para crianças até um ano é o Aptamil. Para crianças a partir de um ano é o Aptanutri. E o composto lácteo é o Milnutri.

Contatadas, Nestlé e Danone disseram que apoiam as recomendações da OMS para o aleitamento materno e cumprem a lei brasileira. A Mead Johnson não respondeu ao contato do UOL.

O que diz o Idec

A ação pede que as empresas paguem juntas uma indenização de R$ 60 milhões por danos morais coletivos. Pede também que a promoção cruzada desses produtos seja considerada ilegal. A Justiça chegou a determinar que a Nestlé colocasse um adesivo nas embalagens do composto lácteo Neslac com o aviso de que aquele produto não deveria ser confundido com a fórmula infantil. A empresa conseguiu derrubar a decisão.

A semelhança entre os rótulos e os nomes faz com que a propaganda de um produto gere publicidade para o outro e confunde o consumidor, diz o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). É comum encontrar latas de fórmula para bebês ao lado dos produtos para crianças mais velhas nas prateleiras das farmácias.

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O Idec diz que isso viola a proibição de publicidade de fórmulas infantis. A fórmula que não tem restrição de publicidade promove as outras fórmulas, assim como faz o composto lácteo, diz Leonardo Pillon, advogado do Programa de Alimentação Saudável do Idec.

Essa é uma forma que a indústria encontrou para burlar a legislação, diz especialista da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria). Tanto as fórmulas para crianças a partir de um ano quanto os compostos lácteos foram criados após a regulamentação da lei que trata do tema, diz Fabíola Suano, presidente do Departamento Científico de Nutrologia da SBP.

É uma forma de burlar a legislação. Esses produtos não existiam quando a lei foi regulamentada. E então criaram esses produtos com o mesmo rótulo. O grande sinal de que é para burlar a legislação é rotulo o ser igual. Por que não faz outro rótulo?
Fabíola Suano, presidente do Departamento Científico de Nutrologia da SBP

Sobre a ação, a Nestlé diz que não comenta processos em curso. A Danone afirma que a ação se refere ao rótulo antigo.

A Mead Johnson não respondeu. Em novembro de 2022, a empresa anunciou que não ofereceria mais no mercado brasileiro as fórmulas Enfamil e Enfanutri e o composto lácteo Enfagrow, alvos da ação do Idec.

Fórmulas infantis e composto lácteo da Nestlé
Fórmulas infantis e composto lácteo da Nestlé Imagem: Reprodução
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Fórmulas infantis e composto lácteo da Danone
Fórmulas infantis e composto lácteo da Danone Imagem: Reprodução

O que dizem as empresas

A Nestlé disse que "suas fórmulas infantis, fórmulas de primeira infância e compostos lácteos seguem todos os requisitos legais aplicáveis". Diz ainda que colabora com o governo, instituições públicas e sociedade civil "para a implementação do Código da Organização Mundial da Saúde para a Comercialização de Substitutos do Leite Materno no Brasil".

Disse também que os rótulos desses produtos estão em conformidade com a lei e contém indicação da faixa etária. Também ressaltou que, na impossibilidade do aleitamento materno, "recomenda que pais, mães e responsáveis consultem um profissional de saúde para que obtenham orientações nutricionais individualizadas".

A Danone diz que oferece duas linhas de fórmulas infantis e uma linha de composto lácteo, "com marcas e rótulos diferentes, além de clara diferenciação de faixa etária na embalagem". Diz ainda que, caso a amamentação não seja uma opção para os pais, fornece "produtos seguros e de qualidade nutricional, desenvolvidos para as diferentes necessidades, sempre pautados nas evidências científicas mais confiáveis".

A Danone ressaltou que a legislação permite a comunicação para a fórmula voltada para crianças a partir de um ano. Na categoria de fórmula infantil da primeira infância (1 a 3 anos), "a legislação define o engajamento permitido para o público em geral, incluindo comunicação e outras ações", diz.

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Ações nas redes sociais

Nos últimos meses, esses produtos têm aparecido em uma leva de ações publicitárias com influenciadores nas redes sociais. As peças fazem propaganda do Nanlac, fórmula infantil da Nestlé direcionada a crianças a partir de um ano, e do Aptanutri, produto semelhante da Danone.

Como as fórmulas são direcionadas para crianças a partir de um ano, sua divulgação é permitida.

A propaganda é feita por famosos pais e mães de crianças pequenas. Em abril, a atriz Talita Younann (1,1 milhão de seguidores no Instagram) publicou fotos com a filha e um texto de propaganda do Nanlac. O casal formado pela cantora Marcella Fogaça (259 mil seguidores) e o ator Joaquim Lopes (1,7 milhão de seguidores) fez uma postagem parecida no final de maio. No início de junho, o ator Bruno Gissoni (7,4 milhões de seguidores) e a atriz Yanna Lavigne (2,2 milhões de seguidores) também divulgaram que o pediatra recomendou Nanlac para sua filha.

A apresentadora Rafa Brites (com 3,2 milhões de seguidores) postou um texto em meados de maio divulgando a fórmula da Danone para crianças a partir de um ano. No final de junho, divulgou também uma promoção da marca com sorteio de prêmios.

O UOL entrou em contato com todos os influenciadores citados. Nenhum deles respondeu aos questionamentos da reportagem.

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Publi do Nanlac
Publi do Nanlac Imagem: Reprodução/Instagram

O avanço das redes sociais tem dificultado a fiscalização do cumprimento da lei, segundo Rosana De Divitiis, cientista social e membro do conselho diretor da IBFAN (Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar, na sigla em inglês). Os motivos são o grande número de influenciadores e a falta de regras claras para o tema no ambiente digital. Há inclusive os casos em que a divulgação ocorre mesmo sem parcerias com as fabricantes.

Muitas vezes a pessoa fala da fórmula mesmo sem ser patrocinada pela indústria e, quando entramos em contato, diz que está apenas dando sua opinião como mãe.
Rosana De Divitiis, membro do conselho diretor da IBFAN

Publi da Rafa Brites sobre o Aptanutri
Publi da Rafa Brites sobre o Aptanutri Imagem: Reprodução Instagram

Alimento ultraprocessado

A recomendação da OMS é que o leite materno seja oferecido até os dois anos de idade ou mais, e de forma exclusiva até os seis meses de vida. A fórmula infantil é o alimento indicado se houver algum impedimento para a amamentação.

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Não há indicação pediátrica para o uso de fórmulas infantis por crianças saudáveis a partir de um ano, diz Fabíola Suano, da SBP. Nessa idade, a criança deve comer comida e pode consumir o leite usado pela família, de duas a três vezes ao dia.

Já os compostos lácteos são "alimentos ultraprocessados que não encontram indicação em lactentes" e podem gerar a "impressão inadequada de que são mais importantes do que a alimentação", diz a SBP.

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