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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Projeto na Câmara sobrecarrega Cade e pode lesar defesa da concorrência

07/04/2021 04h00

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Está em tramitação na Câmara Federal o Projeto de Lei nº 4.063/2019 de autoria do Deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), que estabelece que "sempre que uma empresa ou grupo de empresas controlar um terço ou mais de mercado relevante, será instaurado inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica por parte desta empresa ou grupo de empresas, sem prejuízo de outras ações de defesa da concorrência." Para quem é da área da defesa da concorrência, este seria mais um daqueles projetos que cairia no anedotário parlamentar, não fosse sua disfuncionalidade e o risco que ele implicitamente carrega.

Para entender melhor o problema, devemos retornar ao final do século XIX, quando da aprovação do Sherman Act nos EUA, em 1890. O objetivo, na época, era impedir acordos anticompetitivos entre concorrentes e a monopolização de mercados, combatendo o poder econômico dos grandes trustes que estavam se formando. Naquela época, o processo de concentração que tomava corpo não era visto com bons olhos, sendo associado diretamente a problemas na esfera da concorrência. Iniciava-se aí o embrião de toda a legislação antitruste americana, que inspirou a elaboração de leis de defesa da concorrência por todo o mundo, inclusive no Brasil.

Dessa época até os dias de hoje, a visão sobre as causas e consequências de processos de concentração avançou substancialmente. Hoje não se assume, a priori, que a concentração seria o resultado de condutas anticompetitivas que visam tirar concorrentes do mercado. Tampouco se entende que fusões e aquisições são necessariamente realizadas com a finalidade de elevar o poder de mercado das empresas e que têm como contrapartida algum dano ao consumidor. Aliás, em muitos casos, o processo de concentração é visto como simplesmente o resultado natural da evolução dos condicionantes do mercado.

Isso ocorre, principalmente, em setores caracterizados por elevados investimentos em capital fixo (siderurgia e telefonia, por exemplo), indicando que economias de escala devem ser obtidas para que as empresas minimizem seu custo de produção. Nesses casos, quanto menor for o mercado disponível, menor será o número de empresas atuando de maneira eficiente e maior será a concentração; o que estará longe de indicar um problema de concorrência. No limite encontraremos até casos de monopólios naturais (saneamento básico e transmissão de energias, por exemplo), cuja estrutura mais eficiente é a presença de uma única empresa no mercado. Mas mesmo nesses casos, o "remédio" utilizado pelo Estado para evitar danos ao consumidor é a regulação tarifária, e não mecanismos associados à defesa da concorrência.

Por essa e outras questões, o padrão de análise na área de defesa da concorrência evoluiu muito, sendo que os critérios de avaliação foram substancialmente aprimorados. Indicadores de concentração servem apenas como um teste preliminar para que a autoridade antitruste não perca tempo com a análise de casos em que empresas envolvidas tenham baixa participação de mercado. Em outras palavras, a concentração diz muito pouco sobre a presença de problemas concorrenciais em um dado mercado.

Em realidade, graças às constantes evoluções derivadas da teoria econômica, hoje qualquer inferência sobre a potencialidade da adoção de condutas anticompetitivas pressupõe critérios de análise mais aderentes à realidade. E eles passam, por exemplo, pelo padrão de concorrência vigente em cada mercado específico, pela possibilidade da entrada de novas empresas, pelo reconhecimento de eventuais eficiências associadas a estratégias comerciais empreendidas pelas empresas e, inclusive, por possíveis sinergias obtidas como fusões e aquisições.

Nesse sentido, o Projeto de Lei aqui citado carece de um mínimo de sentido lógico-econômico. Ademais, além de ser desnecessário, ele pode criar problemas hoje não existentes no trabalho do Conselho Administrativo de Defesa Econômico (Cade). Isso porque a concentração de mercado, ao contrário da tese implícita no projeto de lei, não é causa de nada, mas sim consequência. Mais precisamente, ela pode derivar basicamente de quatro aspectos: (i) mudanças nos condicionantes de mercado (tecnologia utilizada, tamanho do mercado, etc.); (ii) maior eficiência de uma ou mais empresas, que se sobressaem sobre seus concorrentes; (iii) fusão ou aquisição de concorrentes; ou (iv) prática de condutas anticompetitivas.

Para os dois primeiros aspectos, não há qualquer razão para a atuação do órgão antitruste, sendo que a maior eficiência das empresas é desejável e fortalece a competição. Para o terceiro aspecto, a própria Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011) já prevê, no seu artigo 88, o controle prévio de concentrações econômicas, ao não permitir fusões e aquisições que possam limitar a concorrência. Já para o último, os artigos 36 e 37 da mesma lei endereçam o remédio adequado ao estabelecer um rol de condutas anticompetitivas a serem investigadas e penalidades a serem aplicadas. Como se percebe, todos os potenciais problemas concorrenciais já estão adequadamente cobertos na legislação atual.

Exigir que o Cade fique investigando empresas simplesmente pelo grau de concentração de mercado - ainda mais por ocupar apenas um terço de maneira isolada ou em conjunto do mercado - é impor um ônus absurdo ao órgão e só mostra um total desconhecimento das estruturas capitalistas modernas, cuja concentração tende a ser a regra. Equivale a dispersar parcos recursos públicos, introduzindo um custo de oportunidade desnecessário no processo de análise de defesa da concorrência, na medida que sobrará menos tempo para os técnicos do órgão investigarem o que é de fato relevante.

E tudo isso sem falar de um outro efeito que pode ser ainda pior, e que certamente passou desapercebido pelo proponente do projeto de lei: estipular um critério sem sentido e tão restrito para investigar empresas em mercado concentrados pode, em tese, incentivar maus políticos a usarem esse instrumento para chantagear empresas, ameaçando-as de solicitação de abertura de inquérito administrativo junto ao Cade com o objetivo de conseguir determinados favores, principalmente em períodos eleitorais. Nesse sentido, o projeto se torna também perigoso e pode ainda distorcer o processo democrático no país.