Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Fechamento de rodovias deveria nos ensinar a não aceitar atos ilegais
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Confesso que fiquei surpreso com a surpresa de tantos com relação ao fechamento de vias públicas por parte do movimento dos caminhoneiros na última semana. Desde o governo Temer, temos assistido a essa turma fazer tudo o quanto quis de ilegal, sem que nada de efetivamente concreto fosse feito por nossas autoridades com relação aos abusos cometidos.
Já me manifestei nesta coluna algumas vezes explicando por que a chantagem colocada à sociedade por esse grupo no passado se caracterizava como um ato cujo único objetivo era o de replicar o resultado de um cartel, por meio de uma legislação que visava construir uma tabela de preços mínimos.
Também procurei explicar por que a introdução dessa tabela, além de ferir a lei de defesa da concorrência e a livre iniciativa, seria ruim inclusive para os próprios caminhoneiros autônomos. Na realidade, os únicos que efetivamente ganham com isso são os empresários proprietários de frotas no setor de transporte rodoviário.
Fato é que os propalados efeitos deletérios do fechamento de rodovias (desabastecimento, transtorno para deslocamento de pessoas, órgãos humanos a serem transplantados, etc.) também se verificaram no passado, quando esse movimento se achou no direito de fazer o que bem entendesse para obter o que considerava ser "seus direitos".
Mas parece que tudo isso foi visto com uma certa leniência por uma boa parte da sociedade e pelas nossas instituições constituídas. Durante o governo Temer, por exemplo, o Executivo iniciou esse processo de negociação de tabela de preços para que o movimento deixasse as ruas.
O resultado dessa chantagem foi o envio de uma Medida Provisória (MP 832/2018) ao Legislativo, que estabeleceu preço mínimo do frete em todo o país. E o pior é que o Congresso sancionou essa demanda e transformou a MP em lei, jogando todo o custo desse aumento de preços para o resto da sociedade.
Note-se que essa mesma lei, nitidamente inconstitucional por ferir o princípio da livre concorrência, foi questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 5956, ADI 5964 e ADI 5959). Aliás, a área técnica do Ministério da Economia se manifestou na época deixando claro para o STF o erro e a gravidade do que se tinha aprovado no Congresso.
Contudo, parece que o ministro relator, Luiz Fux, preferiu sentar em cima da questão e não decidir absolutamente nada sobre um assunto tão importante e de repercussão econômica gravíssima, deixando que as partes (caminhoneiros, donos da carga e Estado) negociassem, esquecendo-se que um dos maiores afetados (o consumidor final) não faria parte desse "acordão".
Também podemos lembrar que o presidente Bolsonaro foi mais um que fez vistas grossas à atuação dessa turma. Mais do que isso, usou os caminhoneiros em muitos momentos como instrumento político e fez promessas mirabolantes de todo tipo, sendo algumas cumpridas, como o "bolsa caminhoneiro".
Note-se, ainda, que uma parte da imprensa também tratou, ao longo do tempo, esse movimento como legítimo, afirmando, inclusive, que o governo deveria negociar para terminar com a tal da "greve dos caminhoneiros". Só que hoje, essa mesma parte da imprensa afirma (corretamente) que o movimento é ilegal, por ferir o "direito dos cidadãos de ir e vir" (além de obviamente ser antidemocrático).
Poderíamos ao longo desse tempo termos discutido as razões para os preços dos fretes terem caído e procurado soluções definitivas para a questão. Neste caso, além da revisão de políticas públicas de fomento, sinalização da redefinição da nossa matriz de transporte e retomada do crescimento econômico, caberiam ainda programas de assistência social e financeira aos profissionais mais afetados, além da utilização de programas de requalificação.
Mas não, nossa escolha foi empurrar o problema com a barriga, e aceitar uma lei que nitidamente afeta a concorrência e que só mantém uma expectativa de que sempre haverá demanda para todos os caminhoneiros, fato que está longe de ser verdade nesse e em qualquer outro setor.
Mais do que isso, ao fecharmos os olhos para as atitudes e os efeitos da paralisação de rodovias e vias públicas no passado, só sinalizamos que esse grupo tudo pode, dada a essencialidade do serviço que prestam.
E nesse sentido, o que aconteceu na última semana nada mais foi do que o reflexo extremo de uma sociedade que está acostumada a se calar e aceitar atitudes ilegais, em nome de uma certa empatia por determinados grupos ou por se sentir refém da situação na qual foi colocada.
Hoje já há gente levantando a hipótese de que a paralisação recente foi orquestrada por determinados grupos de empresários, inclusive por donos de transportadoras. Não tenho informações sobre tal fato, mas não estranharia se fosse verdade hoje e principalmente no passado, quando essa turma passou a paralisar o país.
De toda forma, o que realmente esse movimento tem nos trazido é a necessidade de uma maior reflexão "se tudo pode em nome do que alguns consideram seus direitos"; mesmo porque o direito de alguns pode ser o dever ou custo imposto a outros.
O que não dá mais é para sermos seletivos na crítica, quando nos convém, e coniventes com atitudes ilegais, principalmente quando ela afeta algum grupo político oponente. Se não mudarmos de atitude, nossa democracia, que tanto prezamos, correrá o risco de se tornar uma grande anarquia na qual cada um fará o que bem entender e todos perderemos.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.