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Apoio de Biden a quebra de patente é jogada política com efeito desastroso

13/05/2021 04h00

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Na última semana, o presidente americano, Joe Biden, foi à imprensa anunciar que seria favorável à suspensão do direito de propriedade intelectual de vacinas contra a covid-19. Muita gente tem elogiado essa declaração, mas esse ato não passa de mais uma jogada política, cujos efeitos poderão ser desastrosos no médio e longo prazo, além de não ajudar a resolver o problema de curto prazo.

Para entender essa afirmação, há que se ter em mente que o setor farmacêutico investe verdadeiras fortunas todos os anos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) na descoberta de novos medicamentos (inclusive em vacinas). Mas poucos desses investimentos geram resultados positivos, permitindo a recuperação dos gastos realizados.

Assim, quando novos medicamentos são obtidos, é natural que as empresas procurem definir seus preços de maneira a recuperar todo o investimento realizado em P&D. Mas, para isso, é necessário que essas empresas adquiram o monopólio na venda do novo produto durante um determinado período de tempo. E esse monopólio é delegado pelo Estado, por meio do que denominamos direito de propriedade ou patente.

É exatamente a perspectiva de obter uma patente que incentiva as empresas a se arriscarem e investirem rios de dinheiro todos os anos. Sem que a perspectiva de obtenção desse monopólio temporário (a patente) seja adequadamente sinalizada e efetivamente garantida, os incentivos deixam de existir e as empresas param de investir em P&D e toda a sociedade perde com isso.

A garantia de patente tem ainda implicitamente como pressuposto econômico uma mudança na perspectiva de concorrência. Tira-se o foco da competição "no mercado" em nome do que chamamos de concorrência "pelo mercado", ou seja, pelo direito de ser monopolista na venda do novo produto por um período de tempo definido legalmente. E, novamente, é isso que mobiliza as empresas.

Acabar compulsoriamente com esse direito é sinalizar que não há mais sentido em investir no desenvolvimento de novos produtos; é estimular as empresas a apresentarem um comportamento oportunista de pegar carona nos investimentos de terceiros. Neste ambiente, a pergunta que todo empresário fará a si mesmo é: qual o sentido de gastar tanto para descobrir novos produtos se eu não posso internalizar (rentabilizar) parte do benefício gerado para a sociedade?

Mais do que isso, por que esse empresário investiria, se ele pode simplesmente copiar a inovação do seu concorrente, apropriando-se dos resultados dos investimentos realizados por seus competidores? Por óbvio, todos pensarão da mesma forma e o resultado será uma grande queda no ritmo de inovação. E isso será particularmente desastroso quando falamos do setor de saúde.

Dados recentes aos quais tive acesso mostram que temos hoje 111 vacinas contra a covid-19 em desenvolvimento (48 em fase 1, 36 em fase 2 e 27 em fase 3), além de 8 já aprovadas. Isso mostra duas coisas. A primeira é que os incentivos econômicos estão funcionando e que os esforços na busca de uma vacina contra essa doença são os maiores já observados até hoje.

A segunda é que em breve poderemos ter um excesso de oferta de vacina contra a covid-19 no mundo, o que torna essa discussão sobre licenciamento compulsório de patentes ainda mais extemporânea e perigosa. Na realidade, "quebrar a patente" é apenas a condição necessária legal para permitir que terceiros produzam a vacina.

Entretanto, a condição suficiente implica também a transferência de tecnologia e a montagem de estrutura fabril capaz de produzir cada tipo específico de vacina, algo que não é nem um pouco trivial, demanda bastante tempo e que grande maioria de países mais pobres (aqueles mais afetados atualmente pela falta de vacina) nem de longe teria condições de fazer.

Em outras palavras, até que esse processo se completasse, já teríamos toda a população do mundo devidamente vacinada e com o efeito colateral de gerar um péssimo sinal para todos aqueles que têm direcionado tempo e dinheiro para descobrir vacinas contra a covid-19. Sendo mais claro, a maioria desses desenvolvedores não estariam mais dispostos a investir em vacinas no futuro.

Abrir mão dos esforços da iniciativa privada em um ambiente de incerteza que envolve a própria evolução do vírus da covid-19 já seria uma temeridade. Mas pior do que isso é lembrar que, em um mundo globalizado, nada garante que não teremos no futuro novas pandemias. Ou seja, essa estratégia pode ser um verdadeiro tiro no pé da população mundial.

E Biden com certeza sabe disso. Aliás, se ele realmente estivesse preocupado com a população mundial, já teria liberado uma boa parte do excesso de vacinas contratadas pelos EUA. Mas no melhor estilo "trumpista" America First, ele tem limitado seus esforços a vacinar a população americana, deixando em segundo plano o resto do mundo.

Nesse sentido, sua declaração soa mais como uma forma de atender às expectativas de sua clientela eleitoral, mesmo porque o presidente dos EUA sabe que a proposta de licenciamento compulsório não deverá efetivamente caminhar, por toda a complexidade que envolve essa decisão no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).

No fundo, podemos resumir esta discussão como "uma não solução" para um problema de curtíssimo prazo, qual seja, a restrição de capacidade produtiva hoje vigente. Se Biden e os países de primeiro mundo quisessem realmente ajudar os mais pobres, deveriam concentrar seus esforços em uma estratégia de vacinação coletiva mundial, liberando o quanto antes o excesso já contratado.

Ademais, poderiam constituir um verdadeiro fundo financeiro mundial de peso para comprar vacinas para os mais pobres e acelerar o desenvolvimento de novas vacinas e a construção de novas estruturas fabris ao redor do mundo; mesmo porque essa estratégia teria como "externalidade" a redução do ritmo de transmissão da doença e de formação de novas cepas.