Felipe Salto

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Opinião

O 'Trio Parada Dura' de Haddad

Não faltou quem se aboletasse nos corredores do Congresso Nacional para pressionar os parlamentares e evitar o avanço da agenda progressista e fiscalmente responsável do Ministro Fernando Haddad. É uma pena, mas é do jogo.

Ele e o seu time têm conseguido avançar, democraticamente, a partir do diálogo e da negociação, como deve ser. Dario Durigan, Rogério Ceron e Robinson Barreirinhas formaram espécie de Trio Parada Dura da Economia. Respectivamente, comandam a Secretaria-Executiva, o Tesouro Nacional e a Receita Federal. E vão bem na execução das suas tarefas, até aqui.

O conjunto musical era famoso por canções que penetram muito rapidamente nos corações dos vitimados pela "sofrência". Quem não se lembra de: "eu quero que risque meu nome da sua agenda..." Já o nosso trio da economia tem uma tarefa mais hercúlea, de dobrar o coração de pedra dos parlamentares, difíceis de amolecer quando o assunto não é distribuir emendas para suas bases eleitorais.

O papel da Receita Federal e dos Auditores na agenda Haddad

A Receita Federal, notadamente, é um dos núcleos pelos quais sempre nutri grande admiração, quando trabalhei na assessoria do senador José Serra e, depois, no comando da Instituição Fiscal Independente (IFI). Sérios, experientes, tecnicamente impecáveis e normalmente injustiçados no debate público, aliás, por gente que não tem ideia do trabalho do Auditor Fiscal, seja no âmbito do Estado, da União ou do Município.

Quando fui secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, pude atestar, também, o elevadíssimo nível dos auditores fiscais da Receita Estadual. É na burocracia permanente que devemos confiar para, sob a liderança política e técnica dos que assumem cargos de comando no serviço público, modernizar o Estado brasileiro.

Por dever de ofício, acompanho de perto todas as ações na área fiscal, orçamentária e tributária, desde 2008, quando, ainda no último ano de graduação, já comecei a trabalhar com contas públicas na Tendências Consultoria Integrada, sob a tutoria do ex-ministro Mailson da Nóbrega. Posso atestar que estamos no caminho certo.

Sempre haverá os caras de pau e sua pressão, mas, para estes, a sagacidade. É bíblico: ser sagaz com os hipócritas. Veja o caso da lei nº 14.789/2023, derivada da MP nº 1.185. O meu amigo e brilhante economista, referência para uma geração inteira de colegas, Marcos Lisboa, gosta de chamar de "meia-entrada" esse tipo de situação. Trata-se de grupos organizados montados sobre o Orçamento público dispostos a abocanhar um pedaço dos recursos financeiros do Estado. E a bocada costuma ser gulosa.

A meia-entrada escancarada antes da Lei nº 14.789/2023

Antes da MP, funcionava assim: um governador de Estado concedia determinado benefício fiscal do ICMS e, de quebra, o contribuinte abatia esse valor do lucro da empresa. Recolhia, portanto, tributos federais (que incidem sobre o resultado das empresas) menor. Isto é, fabricava-se, por conta própria, um segundo benefício, em cima do primeiro, e a fatura era espetada no guichê da União.

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O curioso é que pouquíssimos saíram em defesa de Haddad e do nosso Trio Parada Dura, quando eles conseguiram derrubar essa sandice. Paciência. Nem sempre prevalece a coerência e, por vezes, a defesa de teses gerais é mais simples do que quando se apresenta um caso concreto, escancarado, bem debaixo do nosso nariz. A sofrência é mais susceptível do que a sanha gastadora.

As múltiplas ações começam a render resultado

Foram muitas as ações tomadas em 2023. Repito-as, por didatismo: além da citada MP, a nova tributação das offshores e dos fundos fechados; a obrigatoriedade de contabilizar os créditos de ICMS na hora de descontá-lo da base do PIS e da COFINS; a reoneração da folha de pagamentos; a busca por reorganizar o Perse (benefício para o setor de eventos, ainda em discussão com o Congresso — eis aí a pressão da meia-entrada, sempre presente); a limitação das chamadas compensações tributárias; a reoneração dos combustíveis; a mudança na Lei do Carf; e a alteração no benefício dos Juros sobre Capital Próprio.

Pois bem, os dados da arrecadação para janeiro e fevereiro mostram que começamos a colher os frutos das ações tomadas no ano passado. Se a dinâmica observada neste primeiro dos seis rounds da briga de 2024 se repetir, ainda que parcialmente, até dezembro, o resultado primário poderá melhorar mais do que o esperado. Em fevereiro, a reação de tributos ligados à atividade foi bastante expressiva, mas também daqueles mais sensíveis às novas medidas arrecadatórias. A arrecadação administrada pela Receita Federal pode estar subindo na casa de 22% em termos nominais.

Alguns colegas diziam: "ah, mas o ajuste é só pelo lado da receita, vejam vocês, de modo que vamos derrubar a economia e não teremos o controle do gasto". Ledo engano. Erraram.

A importância do Novo Arcabouço Fiscal

O Novo Arcabouço Fiscal, instituído pela Lei Complementar n.º 200/2023, estabelece regras claras de controle do gasto. Há dois pilares na nova regra: metas para o resultado primário (receitas menos despesas sem contar os juros da dívida pública) e limite para o crescimento da despesa pública orçada. O primeiro pilar é mais simples: fixam-se, como antes já ocorria, metas para a diferença entre a receita e a despesa, mas agora com uma banda. Para 2024, a meta é zerar o déficit primário, mas, se o governo conseguir entregar 0,25% do PIB de déficit (cerca de R$ 30 bilhões), terá cumprido com sua tarefa legal.

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O segundo pilar, mais complexo, está relacionado ao primeiro. O governo só pode mandar um Orçamento contendo despesas que cresçam a 70% da variação real passada da receita líquida de transferências a estados e municípios. Assim, se a receita estiver crescendo a 2%, o governo terá de fixar uma despesa, no Orçamento, que represente crescimento de 1,4% real. Se a meta de primário for descumprida, o fator de 70% vira 50% e, no exemplo numérico, a despesa teria de crescer a, no máximo, 1%. Mas, sempre aumentar ao menos 0,6%, dado o piso legal.

Dessa maneira, vê-se que há uma regra instituída para, sim, conter o avanço da despesa. A ligação com a dinâmica da receita é salutar e estimula o combate às benesses fiscais e tributárias iníquas mantidas por décadas. É por essa razão — e não outra qualquer — que se conseguiu o feito de aprovar tanta coisa importante em matéria de combate ao gasto tributário, em 2023. E há muito, ainda, por fazer.

Exemplo: os gastos com saúde que os ricos descontam do seu Imposto de Renda, todo ano, custam R$ 27,9 bilhões. E, quando somada à meia-entrada das despesas abatidas referentes à Educação, a cifra sobe para R$ 33,1 bilhões. Isso tem de acabar de imediato. Esse montante, caros leitores, representa 0,3% do PIB!

Justiça seja feita, o Ministro Paulo Guedes tentou, mas encontrou, também, as resistências de praxe.

Se essas iniquidades forem sendo combatidas, retomaremos a capacidade de arrecadar. É apenas parte da verdade a história de que a carga tributária no Brasil, por ser alta, não ensejaria espaço para medidas corretivas com ganhos de base e de arrecadação. Recuperar-se-ia a capacidade de coletar impostos, mas de maneira justa socialmente. É disso que se trata.

Números atualizados para a política fiscal em 2024

Para terminar, uma dose de números. Se partirmos da minha projeção para o déficit primário, aqui na Warren Investimentos, hoje em 0,74% do PIB, isso significa que, tudo o mais constante, o resultado primário poderia ser de 0,44% do PIB caso a benesse do abatimento de despesas médicas e educacionais do Imposto de Renda das Pessoas Físicas fosse eliminada. Se a arrecadação superar em 0,2 ponto de percentagem do PIB a esperada por nós, em razão do desempenho das medidas arrecadatórias, chegaríamos a 0,24% do PIB de déficit primário. Isto é, a meta zero estaria cumprida (considerada a banda que expliquei acima).

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Como não vai acontecer, neste ano, a reversão da permissividade de abatimentos no IR, da qual este colunista e todos que declaram o IR na forma completa (portanto, tendo seu desconto calculado pelas hipóteses legais, e não pela regra geral de 20%) se beneficiam, o ganho extra de receitas será suficiente para levar o primário a algo como 0,54% do PIB. Neste caso, um corte de despesas será preciso além do contingenciamento mínimo autorizado pela LDO.

A meu ver, cumprido o mandato legal da Lei Complementar n.º 200/2023, que determina o corte do máximo possível (25% da despesa discricionária autorizada), chegaríamos a 0,2% do PIB de déficit primário. Este é o capítulo final, o spoiler que estou trazendo a vocês. Ao longo do ano, entretanto, há toda uma liturgia orçamentária a ser seguida.

O primeiro capítulo é a apresentação do relatório bimestral orçamentário, agora no fim de março. O jogo da política fiscal, neste ano, é ganhar tempo, maior aliado do ministro da Fazenda. Tão simples quanto isso. E tão difícil também. Haddad e o Trio Parada Dura vão se sair muito bem, porque o desempenho do primeiro bimestre superou as expectativas, mas é preciso sempre lembrar por quem os sinos dobram lá no Plenário Ulysses Guimarães.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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