Um programa para ajustar as contas públicas brasileiras sem sobressaltos
As declarações do presidente Lula e dos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento), na semana passada, soaram controversas. De um lado, a defesa do enfrentamento da pressão fiscal exercida pelo ritmo de crescimento dos gastos públicos. De outro, a política. Pelo caminho do meio e com bom diagnóstico, é possível entregar bons resultados, a nosso ver.
Há um amplo consenso de que a União está em uma situação fiscal bastante delicada, o que traz importantes consequências negativas para o desempenho econômico do país. A geração de sucessivos déficits e o contínuo aumento da dívida pública elevam a incerteza e as taxas de juros, comprometendo o crescimento econômico sustentável e o enfrentamento da pobreza.
O déficit do Governo Central deverá ficar um pouco acima de 0,5% do PIB, em 2024. No próximo ano, sem medidas fiscais relevantes, deveremos ter um déficit mais alto, próximo de 0,8% do PIB. No ano em curso, o déficit está contratado, mas 2025 ainda poderá ser o primeiro da implementação de um programa de ajuste que leve gradualmente a um superávit de 1,5% do PIB, em 2028, estabilizando a dívida pública, nesse ano, ainda que em um elevado patamar de 82% do PIB.
As medidas necessárias para levar a esse ajuste de cerca de dois pontos percentuais de PIB, em quatro anos, podem combinar a busca da elevação da receita primária do Governo Central com a redução da despesa primária, ambas aferidas em relação ao tamanho da economia.
A promoção do ajuste é uma decisão da sociedade, em última instância, representada pela classe política. A nós que lidamos diariamente com a questão fiscal e suas agruras cabe indicar alguns possíveis caminhos.
Se estamos falando de dois pontos percentuais de PIB de ajuste, uma possível combinação é de um ponto para o aumento de receita e de um ponto para o corte de despesa. A carga tributária do Brasil de cerca de 33% do PIB já é muito alta e um novo aumento teria que vir da redução dos benefícios tributários, sem partilha deste ganho com demais entes.
Em relação aos cortes de despesas, a tarefa é mais complexa, pois, nesse caso, há que se conter o aumento da despesa obrigatória, notadamente a previdenciária. Sem isso, o novo limite de gasto não durará muito tempo, sob pena de comprometer o funcionamento da máquina pública.
Diante do envelhecimento da população, será difícil alcançar tal intento sem uma nova reforma previdenciária, conjugada com a desvinculação entre os benefícios previdenciários e assistenciais e o salário mínimo.
Já a redução do gasto da União em relação ao PIB teria que vir de um conjunto de medidas. A chamada revisão dos gastos é necessária com ações destinadas ao combate a fraudes, análise criteriosa dos pedidos de concessão de benefícios, além de ajustes nas políticas públicas de modo a que alcancem os resultados esperados e reduzam a judicialização.
Assim, seria possível, por exemplo, conter o descontrolado aumento da concessão de alguns benefícios sociais, como o Benefício de Prestação Continuada e o Auxílio-Doença.
Em que pese a importância da revisão de gastos, isoladamente é insuficiente para o corte pretendido de um ponto percentual do PIB das despesas. Quando muito, poderia contribuir com 0,2 ponto percentual de PIB. O restante 0,8 ponto poderia vir de medidas relacionadas ao Abono Salarial, à Saúde, ao Fundeb e às emendas parlamentares.
O Abono Salarial consumiu 0,23% do PIB em 2023. Concede um salário mínimo para os que ganharam até dois salários mínimos, proporcionalmente ao tempo que ficaram formalmente empregados nos doze meses tomados como base.
Essa política não parece mais fazer sentido. Poderia ser extinta, ainda que de modo gradual, em quatro anos, ou absorvida pela reforma e integração das políticas assistenciais (Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, além do Seguro-Desemprego).
Quanto aos gastos na área da saúde, a questão é a existência de um gasto mínimo atrelado à variação da receita da União, no caso a 15% da Receita Corrente Líquida (RCL). A existência de um mínimo já é questionável, mas a vinculação à receita não faz sentido. O tamanho do gasto acaba sendo definido pelo quanto foi arrecadado e não pela conveniência e necessidade, além de ajudar a "espremer" as demais despesas discricionárias, não protegidas.
O mínimo de Educação apresenta o mesmo problema, mas, tradicionalmente, a execução nessa função superou o respectivo piso. O desejável seria extinguir o mínimo da saúde, mas, na impossibilidade, uma opção seria corrigir esse mínimo pela mesma taxa que corrige o teto de gastos, tomando-se como base o gasto feito em 2023, assim como se deu no caso do teto.
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Quero receberHaveria um ganho para a saúde, pois houve forte aumento de cerca de R$ 28 bilhões na execução em ações e serviços de saúde, na comparação com 2022. Com essa providência, haveria um aumento menos pronunciado do gasto mínimo com saúde, a partir de 2025, em relação ao que acontecerá se for mantida a regra atual de vinculação com a RCL. Esse gasto a menos seria de 0,12% do PIB, em 2025, chegando a 0,15% do PIB, em 2028, último ano do nosso pretendido programa de ajuste.
Outra providência seria no Fundeb. A Emenda Constitucional nº 108, de 2020, elevará a complementação da União a esse Fundo de 0,2% do PIB para 0,48% do PIB, entre 2020 e 2026, quando o cronograma lá previsto for concluído. Trata-se de aumento muito brusco e incompatível com a situação fiscal da União. Propomos um ajuste nesse cronograma de modo a levar a complementação para 0,31% do PIB, em 2028, ganho de 0,17 ponto percentual de PIB, portanto, patamar ainda bem acima do vigente em 2020.
Por fim, temos as emendas complementares, também vinculadas à variação da RCL, regra problemática como comentado acima. Mas há um outro ponto aqui. O tamanho dessas emendas é simplesmente incompatível com a atual situação fiscal da União. Torna ainda mais dramática o aperto das despesas discricionárias não protegidas e desafiadora a manutenção do teto de gastos.
Propomos que essas emendas correspondam a 8% das despesas discricionárias, o que as levaria a algo como R$ 16 bilhões. Parece-nos bastante razoável e bem acima do que se observa na experiência internacional. Frente à atual regra, a providência traria uma economia de 0,27% do PIB.
Chegamos, assim, a uma redução de um ponto percentual de PIB do gasto primário da União: 0,23 ponto do Abono Salarial, 0,17 ponto do Fundeb, 0,15 ponto do mínimo da saúde, 0,27 ponto das emendas parlamentares e o restante 0,18 ponto de revisão de gastos.
É claro que se trata apenas de uma proposta. Outras podem ser apresentadas. Mas não podemos só ficar apontando o desequilíbrio fiscal da União e as consequências para o país. Precisamos definir um plano e implementá-lo. Não será fácil angariar o suporte político para isso.
A opção é uma economia susceptível a crises, incapaz de enfrentar a pobreza, pouco dinâmica, ainda que com espasmos de crescimento.
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