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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Se era para ser genérica, quais as razões da nova carta de Lula?

28/10/2022 14h38

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Sem muito aviso prévio, foi divulgada, nesta quinta-feira (27), uma nova carta de Lula, com compromissos e promessas para um seu eventual terceiro governo, Sob o título de "Carta para o Brasil de Amanhã", o documento consolida, em 2,3 mil palavras e 26 parágrafos, propostas anunciadas ao longo da campanha eleitoral pelo próprio Lula ou em peças de sua propaganda política.

A carta começa destacando o compromisso "inabalável" de Lula com a democracia e termina reafirmando a superioridade dos princípios democráticos que, de acordo com o documento, serão observados num governo do petista. Reitera, portanto, o ponto central que uniu, em torno da candidatura do ex-presidente, uma frente formada por um amplo arco político, que vai da direita democrática à esquerda idem.

"O Brasil passa por um momento histórico em que os direitos, as instituições e as liberdades democráticas estão fortemente ameaçadas", expõe o documento. "Por isso, reafirmamos nosso total compromisso com a democracia, pois somente a democracia pode garantir os direitos da cidadania, condições de vida com dignidade para a população e as conquistas da sociedade."

Em relação a um programa de governo, a carta é um compilado de propostas já conhecidas. Está lá, logo na abertura do texto, a promessa de dar prioridade absoluta ao combate à fome. "As primeiras medidas de nosso governo serão para resgatar da fome 33 milhões de pessoas e resgatar da pobreza mais de 100 milhões de brasileiros e brasileiras", lê-se no documento. "A democracia só será verdadeira quando toda a população tiver acesso a uma vida digna, sem exclusões."

Também estão lá promessas de corrigir anualmente o salário mínimo acima da inflação, isentar do Imposto de Renda ganhos até R$ 5 mil mensais, recriar o programa Bolsa Família para transferir R$ 600 por mês a famílias vulneráveis, mais R$ 150 mensais para cada criança até seis anos. Constam ainda da carta os programas "Desenrola Brasil", voltado à redução do generalizado endividamento da população, e "Empreende Brasil", destinado a apoiar micros e pequenos empresários.

Uma série de ideias e medidas conhecidas vai desfilando ao longo do texto. São muitos os programas sociais, por exemplo, que demandam ampliação de gastos públicos. Há também diversos outros dependentes de juros baixos — e, portanto, pelo menos em parte subsidiados. Bancos públicos, de acordo com a carta, como em governos petistas do passado, seriam acionados para dar vida a esses programas. Todos os projetos e programas são embalados em juras de responsabilidade fiscal, sem abdicar da responsabilidade social e ambiental.

O problema é que a carta anuncia uma lista alentada de novos gastos sem detalhar como muitas das despesas exigidas serão acomodadas no Orçamento. A acusação de que o documento é genérico demais, que é quase unânime entre representantes do mercado financeiro, não é injusta — não há mesmo respostas detalhadas, do lado da acumulação de receitas para bancar, os gastos. Mas é compreensível que faltem, em um documento de campanha eleitoral, detalhes de como eleitores, ainda que de renda mais alta, serão mais tributados.

Não é possível, por exemplo, apenas isentar ganhos até R$ 5 mil mensais do Imposto de Renda sem outras mudanças tributárias que promovam ajustes e reequilibrem a tabela progressiva, sob o risco de abrir um belo rombo fiscal e, além disso, beneficiar mais quem menos precisa. No documento apresentado por Lula, esse ponto não é esquecido, mas se resume ao anúncio de que a isenção prometida virá junto com uma reforma tributária. Detalhar a reforma poderia espantar eleitores.

A questão que aparece, então, é a seguinte: se não podia, por conveniência política, deixar de ser genérica, para que a carta? As respostas, mesmo quando obtidas com integrantes da coordenação da campanha de Lula, não permitem chegar a uma conclusão.

Embora representantes do mercado financeiro estejam entre os que mais se manifestaram e comentaram o documento, fontes da campanha negam que a carta mirou na Faria Lima. A negativa é apoiada pelo fato de que alguns pontos de destaque no texto são historicamente repelidos pela banda mais liberal na economia, em que se encaixa o mercado financeiro.

É o caso da recriação de uma política industrial, assim como do uso de bancos públicos para impulsionar setores de produção, e do retorno de empresas estatais, como a Petrobras, como indutoras de investimentos em inovação tecnológica. É o caso também da proposta de revisão da reforma trabalhista implantada no governo Temer, com a recriação de direitos e benefícios aos trabalhadores.

Uma outra hipótese para a divulgação de uma carta sem aprofundar políticas seria a de que Lula ou, mais propriamente, a equipe econômica que formula seu plano de governo, resolveu uma fronteira mais à esquerda, como forma de neutralizar eventuais tentativas de capturar o programa por aliados liberais recém-chegados. Mas essa possibilidade também é negada por coordenadores da campanha.

A justificativa oferecida é a de que, além de reafirmar os princípios democráticos que nortearão um novo governo, tema chave da frente ampla que se formou em torno do ex-presidente, procurou-se enumerar propostas para o futuro, depois de Lula tanto bater na tecla de seu legado do passado. Dirigir o debate eleitoral, na reta final, para o campo da economia também faria parte da estratégia de divulgação da carta. Poder afirmar o tripé "responsabilidade fiscal, responsabilidade social e desenvolvimento sustentável", num próximo governo Lula, seria, na visão de economistas que participaram da elaboração do documento, razão suficiente para sua divulgação.