José Paulo Kupfer

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Opinião

Lula e Haddad sofrem derrota acachapante para defensores de privilégios

O governo Lula levou uma surra de setores empresariais e do Congresso, nesta semana, depois da edição da MP (Medida Provisória) 1227/2024, a MP do Pis/Cofins, em 4 de junho. A devolução da parte substancial da MP, pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), culminou movimentação desastrada do presidente Lula, do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e da equipe de articuladores do governo no Congresso.

Devolver uma MP é coisa raríssima, que só ocorreu até aqui cinco vezes depois que a versão atual do dispositivo foi inserida na Constituição de 1988. Nos 35 anos da redemocratização para cá, em média, de sete em sete anos uma MP foi devolvida.

Sob a obrigação, determinada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), de que governo e Congresso encontrassem até fins de agosto receitas suficientes para compensar as perdas com as desonerações da folha de pagamento de empresas de 17 setores econômicos específicos, Lula e Haddad podem ter imaginado emparedar o Congresso com a MP.

Daí talvez a ausência de negociações em torno das restrições aos ressarcimentos de créditos tributários nas contribuições de PIS/Cofins a um grupo de setores da economia. O Congresso ficou agora, de fato, com a incumbência de achar a saída, mas os efeitos colaterais foram fortes e negativos para o governo.

Explosão de descontentamento

Lançada sem essa prévia negociação, a MP provocou uma explosão de descontentamento no meio empresarial e deu motivos para que a oposição ao governo no Congresso mostrasse as garras. Enquanto os articuladores políticos do governo no Congresso batiam cabeça, Lula tentou voltar atrás, vazando a intenção de retirar a MP, e, na prática, deixando Haddad ao relento. O movimento foi tão desastrado que alimentou especulações sobre a permanência do ministro no governo. Em viagem à Europa, Lula teve que sair do roteiro para anunciar aos quatro ventos apoio a Haddad.

Apelidada por críticos no setor empresarial e parlamentares de oposição de 'MP do fim do mundo', a agressiva reação a ela deteriorou o ambiente econômico, que viveu mesmo um fim de mundo, nesta semana. A cotação do dólar foi às nuvens, a Bolsa despencou e as taxas de juros dispararam.

Gastos tributários

Muito do que a MP do PIS/Cofins pretendia barrar ou limitar configura privilégio tributário, mas o terreno ficou fértil para que os defensores desses privilégios ganhassem mais uma batalha. Com o apoio de economistas influentes, encontraram espaço para retomar o já conhecido mantra de que a estratégia de ajustar as contas públicas com o reforço da arrecadação, sem cortar a explosão de gastos, tinha 'chegado ao limite', quebrando de vez o muito jovem, mas já supostamente moribundo novo arcabouço fiscal.

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Pode ser verdade que, em termos políticos, refletindo a força dos defensores de privilégios tributários, no mundo empresarial e no Congresso de ampla maioria oposicionista, a estratégia do governo tenha batido no teto. Para acalmar o mercado e as cotações dos ativos financeiros, Haddad terminou a semana com juras de que promoverá cortes e limitações em gastos públicos.

Mas, do ponto de vista técnico e econômico, essa é uma ideia falsa. Há um imenso espaço para aumentar arrecadação, eliminando privilégios que se escondem no gigantesco total dos gastos tributários previstos no Orçamento público.

Gasto tributário é o nome, no jargão fiscal, para isenções, abatimentos, renúncias e todo tipo de benefício que o governo dá a contribuintes, abrindo mão de parte ou da totalidade de tributos que deveriam recolher. A lógica da coisa é a de que os beneficiados oferecerão contrapartidas à economia e à sociedade, sob a forma de mais empregos, investimentos e produção. Nem sempre, porém, os benefícios são acompanhados de contrapartidas.

Captura de recursos públicos

A própria desoneração da folha de pagamento de 17 setores é um dos casos de benefício tributário sem as devidas contrapartidas. O benefício da desoneração da folha, que segundo o Ministério da Fazenda, resultarão, neste ano, em perdas de arrecadação de R$ 23 bilhões, já tem mais de dez anos de existência e não oferece o aumento de empregos que promete. A desoneração teve início no governo Dilma, em 2012, com validade de três anos, mas, como é regra nos benefícios fiscais temporários, vem sendo prorrogado e agora vai até 2027.

Nos primeiros dez anos de vigência da desoneração, de acordo com pesquisas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a desoneração não entregou a contrapartida em empregos que a renúncia de tributos objetivava. No período, o conjunto de setores com folha desoneração, ao contrário, reduziu participação no total de mão de obra ocupada.

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Outro caso recente é do Perse, benefício fiscal para empresas do setor de eventos e turismo. O benefício - zeragem de impostos federais, descontos no valor dívidas com o governo, extensão do prazo de pagamento dessas dívidas e isenção de multas e juros -, foi concedido, em 2021, com razão, a um setor duramente castigado pela pandemia. Ocorre que a pandemia passou, mas os benefícios, que significam renúncia fiscal de quase R$ 20 bilhões por ano, quando se previam nem R$ 5 bilhões anuais quando foram fixados, acabam de ser prorrogados, com pequenas limitações, até fim de 2026.

Desoneração da folha e Perse, que consomem o equivalente a 7% dos gastos tributários, são, na verdade, gotas de água no oceano das desonerações que formam o bolo das renúncias de arrecadação. No Orçamento de 2024, eles somam um volume estonteante de R$ 550 bilhões.

A captura dos recursos públicos em isenções e renúncias de impostos pelo setor privado avançou em 20 anos, desde 2003, em valores correntes, mais de cinco vezes. Se, em 2003, os gastos tributários tiravam da receita pública um total de 2,3% do PIB, hoje o volume de renúncias dobrou, alcançando 4,5% do PIB.

Limite político

Nem todos os gastos tributários configuram apenas privilégios, mas boa parte deles, sim. Para a Unafisco, a associação nacional dos auditores da Receita Federal, os programas de desoneração e renúncia fiscal sem as devidas contrapartidas somam cerca de R$ 300 bilhões, ou quase 60% do total dos gastos tributários. Sobram, portanto, 40% de renúncias fiscais com contrapartidas.

Não é verdade, portanto, que aumentar a arrecadação para ajustar as contas do governo sem cortar gastos públicos é uma estratégia que chegou ao limite. Se fosse possível acabar com os privilégios tributários, haveria recursos de sobra para promover o equilíbrio fiscal. Mas acabar com os privilégios fiscais é uma inviabilidade política. O limite da "sanha arrecadatória", da qual os defensores dos privilégios não se cansam de atacar, existe, é estreito e determinado, historicamente, pelo poder de influência política de setores e grupos que se beneficiam dos privilégios tributários.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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