José Paulo Kupfer

José Paulo Kupfer

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Solução para contradições de Lula nas contas públicas esbarra na política

Lula, na sua própria definição é uma metamorfose ambulante. Tendo essa característica do presidente em mente, é preciso tomar cuidado com suas declarações. Nem tudo que Lula diz, portanto, ele acaba executando.

Na entrevista exclusiva que deu a Carla Araújo e Leonardo Sakamoto, do UOL, Lula fez duas importantes declarações, em relação às contas públicas:

Enquanto for presidente, não mexerá na política do salário mínimo, que garante, além da correção anual do seu valor pela inflação, um ganho real derivado do crescimento da economia, nos dois anos anteriores;

Também enquanto for presidente, não desvinculará do salário mínimo reajustes dos benefícios da Previdência Social e do BPC (Benefício de Prestação Continuada) — este benefício assegura um salário mínimo a pessoas com deficiência e idosos pobres acima de 65 anos.

Contradições de Lula

Na mesma entrevista, Lula afirmou que famílias ou países não devem gastar mais do que ganham. Disse ainda que não classifica os recursos do governo destinados a programas sociais, Educação e Saúde como gastos, mas como investimentos.

Há contradições, ditadas pela realidade, nesse conjunto de afirmações do presidente. Existem também pesadíssimas barreiras políticas ao desejo de Lula de não desvincular gastos sociais do salário mínimo, assim como os pisos de Saúde e Educação de receitas públicas, ao mesmo tempo em que declara não querer gastar mais do que arrecada.

Não se discute a necessidade de transferir recursos públicos para garantir sobrevivência mínima digna a um enorme contingente da população. Dados mais recentes do IBGE, mostram que mais de 30% dos brasileiros são pobres, com renda de até R$ 640 mensais, enquanto mais de 12% vivem em extrema pobreza, com renda menor do que R$ 200 mensais.

Também de acordo com o IBGE, sem os programas sociais de transferência de renda o contingente de pobres seria 12% maior, ao mesmo tempo em que pessoas em situação de extrema pobreza somaria um conjunto 80% mais elevado. No caso da desigualdade de renda, a ausência das transferências de renda resultaria numa alta de 5,5%, na média da população, e de 12%, na região Nordeste.

Continua após a publicidade

"Falácia da composição"

Ocorre que os gastos públicos, neste terceiro mandato de Lula, continuam crescendo a uma velocidade maior do que o do montante da arrecadação. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgão do ministério do Planejamento, no acumulado de janeiro a maio, as despesas públicas avançaram 12,6%, enquanto as receitas cresceram 8,7%, em comparação com o mesmo período de 2023.

O governo não está gastando o mesmo que arrecada, como desejaria o presidente, o que tem contribuído para aumentar a dívida pública. Mas o problema das contas públicas não é tão simples como a definição que Lula aprendeu com a mãe, Dona Lindu, sobre a sustentabilidade do orçamento familiar, que ele, equivocamente, aplica para as contas públicas.

Ao dizer que nem famílias, nem países devem gastar mais do que arrecadam, Lula está, talvez sem querer, concordando com um dos argumentos do pensamento econômico mais ortodoxo e neoliberal para defender os cortes de gastos que o mesmo Lula renega. Essa ideia é bem antiga, tendo sido refutada pelo inglês John Maynard Keynes, por muitos considerado o maior economista do século 20, já na primeira metade do século passado.

Keynes mostrou, valendo-se do conceito de "falácia da composição", por ele mesmo criado, que a gestão do orçamento de uma família não tem a ver com a administração do orçamento público. Se uma família está endividada, uma estratégia correta é cortar gastos para equilíbrio o orçamento e reduzir as dívidas.

Mas, para o conjunto das famílias — e para países —, aplicar a estratégia de equilibrar o orçamento com cortes de gastos não resolve o problema, podendo jogar a economia em recessão, o que reduz receitas e exige mais cortes em gastos para alcançar equilíbrio nas contas públicas. Isso porque o corte de gastos de uma família, reduz ou elimina a receita de outra, que produz e vende bens e serviços no mercado.

Continua após a publicidade

A "falácia da composição" mostra que o que vale para um pode não valer para o conjunto. Além disso, diferentemente das famílias, governos podem aumentar a própria renda, com aumento de alíquotas dos impostos existentes ou criar novos tributos, e podem também criar e vender títulos públicos, dois movimentos para aumentar receitas, vedados às famílias. Não se deve esquecer ainda que certos gastos de governos, quando estimulam a produção e a atividade econômica, contribuem para aumentar a arrecadação e facilitar o equilíbrio orçamentário.

Gastar mais do que arrecada

Dessa argumentação, pode-se concluir que governos podem, e, em alguns casos, devem gastar mais do que arrecadam.

Foi o que aconteceu, por exemplo, na pandemia, em que governos ao redor do mundo foram obrigados a ampliar em muito os gastos públicos, para fazer frente à necessidade de reforçar os sistemas de saúde, e, na economia, mitigar efeitos do colapso abrupto da atividade. Essa também é uma necessidade em países com grandes bolsões de pobreza, como é o caso do Brasil.

Há, obviamente, limites para manutenção ou ampliação da estratégia de gastar mais do que se arrecada, o que resulta em déficits e dívidas nas contas públicas. Esse limite é dado pela capacidade de o governo financiar o endividamento com a colocação de títulos, bem como o de promover crescimento da economia.

Depois da fracassada tentativa do Teto de Gastos, estabelecido no governo Temer, de ajustar as contas públicas apenas pelo lado do corte de despesas, o governo Lula, no seu terceiro mandato, definiu uma estratégia de equilíbrio fiscal basicamente pelo lado do aumento de receitas.

Continua após a publicidade

Se a estratégia funcionar, seria possível resolver a contradição entre a decisão de Lula de não desvincular gastos sociais do salário mínimo e das receitas públicas e sua convicção de que o governo não deve gastar mais do que arrecada. Para isso, porém, seria exigido aumentar razoavelmente a carga tributária e garantir crescimento econômico relativamente forte.

Espaços para aumentar receitas

Com a correção de aspectos disfuncionais e regressivos do sistema tributário brasileiro seria possível encontrar espaços de sobra para incrementar a arrecadação e compensar os aumentos de gastos desejados por Lula.

O conjunto de benefícios e isenções de receitas, em grande medida criados em governos do PT, por Lula e Dilma Rousseff, alcança hoje o excepcional volume de R$ 500 bilhões, dos quais, pelo menos R$ 300 bilhões não apresentam contrapartidas para os privilégios concedidos. Isso sem falar em tributos que deveriam ser cobrados e não são, como é caso dos lucros e dividendos, que, de acordo com estimativas, poderiam chegar a R$ 150 bilhões por ano.

Barreiras políticas

Avaliada com realismo, porém, na atual composição do Legislativo, ao qual caberia aprovar as propostas do governo de aumento de receitas, a viabilidade política de reverter essa massa de subsídios que não oferecem retorno fiscal, econômico e social, é muito baixa. Os lobbies que se beneficiam dessas isenções são poderosos, com forte influência sobre a maioria conservadora da Câmara e do Senado.

Continua após a publicidade

Lula conseguiu o milagre político de aprovar, mesmo com um Congresso adverso, uma reforma tributária do consumo que circulava há duas décadas no Legislativo. Mas está enfrentado dificuldades para regulamentá-la. Nem se fale dos obstáculos para fazer passar os projetos do governo de reforma tributária da renda. Previstos para serem apresentados em 2024, já foram adiados para 2025. Serão necessários outros milagres políticos para Lula entregar o que prometeu na entrevista ao UOL.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes