José Paulo Kupfer

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Opinião

Bets: regular atividade nociva deve mirar a atividade, não o consumidor

O ministro Fernando Haddad informou ao colega Tales Faria, colunista do UOL, que o governo Lula estuda "uma forma de represar o fluxo de recursos dos beneficiários do Bolsa Família para as plataformas de jogos virtuais".

É até compreensível que o governo — e o ministro Haddad — esteja preocupado com o fato de que a jogatina digital, sem a devida regulamentação, esteja à solta no país, prejudicando também parcela de presumíveis vulneráveis beneficiários do Programa Bolsa Família.

"Ideia-rolha" de Haddad

Mas nem por isso Haddad deveria ficar de parolagem, distribuindo ao público "ideias-rolha", aquelas que, sem a devida, necessária e responsável consistência, são lançadas ao ar para tapar alguma coisa que está vazando e pressionando o governo.

Depois de impor restrições ao gasto de dinheiro do Bolsa Família em apostas, no que mais Haddad vai restringir o consumo dos cadastrados? Está bolando algum plano para também limitar ou vedar o consumo de cigarros e bebidas alcoólicas? Não há, até aqui, no plano federal, que diz respeito ao Bolsa Família, qualquer vedação ou restringir ao uso dos recursos transferidos aos cadastrados.

Açúcar também não faz mal?

Aproveitando a onda, que tal impor limites às compras de açúcar, café, chocolate, ovos, alimentos ultraprocessados e outros produtos volta-e-meia acusados de causar doenças e impactar negativamente a saúde pública, muitas vezes com base em pesquisas científicas?

Parece que estão todos esquecidos, nesta onda de vetar gastos com bets no Bolsa Família, de que, há um pouco mais de 20 anos, uma gritaria detonou o Programa Fome Zero e disse não à limitação dos gastos a alimentos no nascedouro do Bolsa Família. Invocou-se, até com argumentos aceitáveis, a liberdade de opção das pessoas, e o equívoco em tentar tutelar os mais pobres e vulneráveis, como se fossem cidadãos incapazes.

Inversão do problema

É verdade incontestável que o fato de serem vulneráveis não torna os beneficiários do Bolsa Família menos cidadãos do que os demais. Daí não é difícil concluir que o problema não é o uso que as pessoas fazem do dinheiro transferido por programas sociais, mas a possibilidade de que parte desse dinheiro seja aplicado onde não deveria.

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O problema não está na liberdade de gastar o dinheiro, que o ministro Haddad agora resolveu inventar de limitar. O problema é a liberdade que produtos e serviços socialmente deletérios têm de serem comercializados, avançando no dinheiro das pessoas — inclusive, é claro, dos mais pobres e vulneráveis. Tudo isso sem falar na fertilização do terreno para o florescimento de esquemas de lavagem de dinheiro por milicianos e mafiosos de todos os feitios.

Em outras palavras, a questão que precisa ser atacada e resolvida não é a da liberdade de gastar, mas a liberdade do que é oferecido na praça, e não deveria ser, como é hoje em dia, quase sem qualquer restrição, caso agora escancarado da infinidade de bets distribuídas por todos os cantos.

A moral dessa história é a de que, para serem mais eficazes e corretas, restrições não devem mirar o consumidor, mas a oferta de produtos e serviços social e sanitariamente prejudiciais à população.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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