A passos lentos, pessoas trans chegam ao mercado de trabalho formal brasileiro
Ainda que hoje possam contar com plataformas virtuais e programas de capacitação para ganhar espaço no mercado de trabalho, pessoas trans continuam a enfrentar o preconceito — ou correr risco de vida — só por serem quem são no Brasil.
A estimativa média de vida delas é de apenas 35 anos e, no mais recente relatório da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais), 88% dos entrevistados acredita que "as empresas NÃO estão preparadas para contratar ou garantir a permanência de pessoas trans em seus quadros".
Há um longo estigma pela frente a ser quebrado em uma sociedade que a passos lentos contrata pessoas trans para vagas formais.
Técnica em gestão administrativa, a paulistana Rochelly Rangel, de 34 anos, recebeu várias rejeições por ser mulher trans.
"Em 2004, cheguei na última etapa do processo seletivo de uma multinacional. Restamos eu e um garoto branco cis, que foi escolhido. Ouvi uma conversa entre uma funcionária do RH e um gestor, que disse: 'Não dá para contratar um travesti'. Depois de situações como essa, com muita resistência, entrei na prostituição", conta.
Após trabalhar como cabeleireira e se mudar para o Rio de Janeiro, participou do Transgarçonne — um projeto de extensão do curso de Gastronomia da UFRJ — voltado para a capacitação de pessoas trans e travestis no ramo de bares e restaurantes.
Depois de 15 anos em busca de uma vaga com carteira assinada, Rochelly conseguiu não um, mas dois empregos.
"Trabalho em um bar de mulheres, onde sou atendente. Sei a luta que foi chegar até aqui, precisamos de um mercado formal de trabalho não heteronormativo", afirma a funcionária do Boleia Bar, que em breve assumirá também outra função.
Oportunidades
Idealizador do Transgarçonne, Renato Monteiro é professor de gastronomia e homem trans.
"Fiz minha carreira antes da transição, não sei se teria conseguido se tivesse passado por esse processo antes. Meu exemplo é uma exceção", conta.
Dando prioridade a alunos de fora da universidade, o curso ensina sobre hospitalidade, alimentos e bebidas.
"Em 2019, recebemos os primeiros alunos. Um deles me contou que o pai passou a respeitá-lo depois de ser aceito na UFRJ. Neste ano teremos duas turmas on-line para sensibilizar proprietários e gestores para a questão", conta Monteiro.
O eixo Rio-São Paulo concentra projetos sociais e plataformas para a empregabilidade trans.
No Rio, o Capacitrans já formou mais de 150 pessoas em workshops de moda, imagem e empreendedorismo.
"Temos mais de 20 instituições apoiadoras e 26 casos de sucesso. Comecei com um salão de beleza, me capacitei como empreendedora e fundei o projeto", conta a travesti Andréa Brazil, de 48 anos, estilista da marca que leva seu nome e coordenadora do Capacitrans.
Baseada em São Paulo, a TransEmpregos é a maior plataforma brasileira para pessoas trans, com 707 contratadas no último ano.
Desenvolvido pela empresária e advogada travesti Márcia Rocha com outros apoiadores, o projeto permite o cadastro de currículos para vagas em todo o país, além da inscrição em cursos e atividades.
"Temos mais de 24 mil currículos e mil empresas parceiras. Há um crescimento exponencial de empresas que contratam pessoas trans, hoje com mais de 100 multinacionais com vagas disponíveis", diz Rocha.
A passos lentos
Apesar dos resultados positivos, a advogada reconhece que há grandes desafios.
"Antes pensavam que transsexuais só podiam ser prostitutas. O maior desafio foi romper com esse preconceito no meio empresarial", acrescenta.
Para isso, ela se associou ao Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, que reúne mais de 100 empresas signatárias do compromisso com a diversidade, com sede em São Paulo.
Há apenas três anos, pessoas transexuais e travestis conquistaram o direito de retificar o nome sem autorização judicial ou apresentação de laudos de acompanhamento psicológico e hormonioterapia.
Agora, podem ir diretamente ao cartório, se auto identificar como pessoa trans e alterar o gênero e o nome.
"Na época de procurar emprego, eu tomava hormônios e me mostrava mais como mulher, mas não tinha mudado o nome. Fiz mais de 200 entrevistas, mas quando colocavam meu RG e currículo na mesa me diziam que a vaga já estava preenchida", relata Rochelly, que só conseguiu retificar o nome há dois anos.
O médico Jonas Manoel, de 37 anos, também enfrentou preconceito ao iniciar sua transição.
"Passei dois anos sem saber como explicar no trabalho que a forma como me tratavam, que antes já não parecia adequada, agora era completamente inviável", afirma.
Ele precisou do suporte de uma equipe de advogados LGBTQIAP+ para recorrer ao Conselho Regional de Medicina e fazer valer seu direito de uso do nome social.
"No primeiro momento ao procurar o conselho não tive o acolhimento esperado. Após o suporte jurídico, consegui minha nova identificação. Tive medo da reação no trabalho, mas logo que cheguei com meu carimbo novo providenciaram a troca do nome no sistema", relata.
E o preconceito se reflete na violência. Desde 2008, o Brasil é o país onde mais se mata pessoas trans no mundo, segundo a ONG Trangender Europe.
"Se somos 1% da população brasileira, desse total menos de 1% chega às universidades. Nós somos existência, quem não nos aceita é que é resistência, porque querem que sejamos invisíveis", argumenta Brazil.
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