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Como a visão utópica do Vale do Silício pode criar uma forma brutal de capitalismo

Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

Jamie Bartlett - Diretor do Documentário da BBC "Os Segredos do Vale do Silício"

20/08/2017 07h12

Os deuses da tecnologia estão vendendo a todos um futuro brilhante.

"Somos uma comunidade global", dizem. "Com a tecnologia em nossos bolsos, podemos recuperar nossas cidades", prometem. "Não queremos ser parte do problema. Somos e seguiremos sendo parte da solução", garantem.

Mas a promessa do Vale do Silício de construir um mundo melhor se baseia, de certa forma, em destruir o que temos hoje em dia.

Essa "quebra" ou "destruição" é o que eles chamam de "rompimento". Os responsáveis por causá-lo são, assim, os "rompedores", conforme denominação usada por eles, mas que não está no dicionário.

Esperança

De perto, o Vale do Silício parece muito normal. Tem até um ar meio entendiante. Mas o que faz desse lugar um agente tão modificador na vida de todo mundo?

Provavelmente, um bom lugar para buscar essa resposta seja a Mansão Arco-Íris, uma "comunidade de pessoas que trabalham para otimizar a galáxia".

A mansão é o local de um monte de nômades do mundo todo que chegaram ao Vale do Silício para realizar seus sonhos. Eles dividem o valor do aluguel e, assim, conseguem bancar a moradia em uma casa de luxo.

Por toda a casa, há gente trabalhando para resolver algum dos problemas mais urgentes do planeta.

"Estou tentando fazer a conversão do CO2 com uso da energia ultravioleta do sol. Assim seria possível reverter as mudanças climáticas...quimicamente, seria totalmente possível", explica um dos moradores da região.

"Nossos hambúrgues feito de plantas utilizam uma pequena porção da terra, menos água e menos emissões de gases de efeito estufa", conta uma mulher entusiasmada.

"Somos exploradores, estamos descobrindo novos mundos", garante outro.

Bill Hunt, por sua vez, já criou cinco empresas, que vendeu por US$ 500 milhões. O que ele acha de quem escolhe morar na Mansão Arco-Íris?

"Há uma mentalidade aqui muito focada na ruptura."

Essa é a ideia mais forte na ideologia do Vale do Silício: ruptura.

"Trata-se do pensamento: como se desfazer desse sistema (ou indústria ou arquitetura) e encontrar uma nova forma (e melhor) de fazê-lo?"

A Mansão do Arco-Íris reflete o sonho que paira sobre o Vale do Silício: a ideia de que, com um pouco de tecnologia e ideias, é possível mudar o mundo e melhorar radicalmente a vida de milhões de pessoas.

E os deuses tecnológicos professam essa ideologia com a mesma intensidade: perturbar significa mudar e tudo isso soa a "esperança".

Mas por trás dos ideais que levam à ruptura incentivada pelo Vale do Silício, há uma realidade empresarial mais tradicional.

Dinheiro

As startups chegam ao Vale do Silício atraídas por outra grande indústria: a do capital de risco.

Os investidores apostam milhões - e até bilhões - de dólares nessas empresas recém-criadas com a esperança de encontrar outro Facebook ou Google.

Mas o investimento tem uma consequência.

Os fundadores das startups mais valiosas até agora - Airbnb e Uber - atraíram bilhões de dólares de capital de risco, embora o Airbnb só tenha começado a dar lucro agora e a Uber esteja constantemente acumulando prejuízos enormes.

Mais do que benefícios, os investidores de capital de risco querem ver um potencial de lucro rápido, e isso cria uma grande pressão para essas empresas novatas.

Elas têm que demonstrar sempre que estão crescendo. A mantra das startups é sempre aumentar o número de clientes.

Mas, quais são as implicações disso na missão do Vale do Silício para construir um mundo melhor?

O caso da Uber

A Uber é a empresa de tecnologia que conseguiu acumular mais investimento até agora: mais de US$ 16 bilhões.

A empresa oferece um novo tipo de transporte, como se fosse uma "carona". Foi criada há apenas oito anos e já opera em mais de 450 cidades em 76 países diferentes.

Mas qual é, na verdade, o tipo de mundo que a Uber está construindo?

"Nossa proposta é deixar de lado a ideia de que todo mundo precisa dirigir seu próprio carro para onde quiser ir", explica Andrew Salzberg, diretor de transporte da Uber.

"Em países como os Estados Unidos, a grande maioria dos percursos são feitos por pessoas que conduzem seu próprio carro, e isso tem muitas consequências. Não somente em termos do número de veículos que acabam sobrecarregando as cidades, mas também pelo impacto ambiental e pela quantidade de mortos no trânsito."

Uma pura expressão da utopia do Vale do Silício.

A Uber seria uma mera empresa que busca o lucro ou seria uma empresa que privilegiaria sua missão social?

"Obviamente, estamos aqui para ganhar dinheiro, como qualquer negócio privado. Mas na medida em que você começa a entrar em diferentes lugares e muda a maneira que as pessoas usam os carros, isso faz o segundo aspecto se tornar possível."

Em todo o mundo, os taxistas tradicionais protestaram contra a Uber por subvalorizar seus preços. É uma ruptura clássica do Vale do Silício: destruir indústrias tradicionais proporcionando uma alternativa popular e barata.

Mas o custo social dessa ruptura vai muito além disso.

A Índia é um país com mais de um bilhão de pessoas, e o principal objetivo da Uber para sua expansão global é chegar até lá.

Na cidade indiana de Hyderabad é possível ver as consequências humanas da ruptura feita em San Francisco. A Uber chegou prometendo um novo tipo de trabalho mais flexível, que empodera os motoristas.

Sem lucro e sob uma enorme pressão de crescer para fazer frente a um forte concorrente local, a Uber publicou anúncios publicitários na imprensa e outdoors prometendo aos motoristas um salário de US$ 1,4 mil ao mês, cerca de quatro vezes mais do que o que eles normalmente ganhavam.

Como na Índia muita gente não tem carro, especialmente os possíveis motoristas da Uber, a empresa ofereceu ajuda para eles conseguirem empréstimos para comprar carros novos.

Assim, o número de motoristas foi aumentando, mas o número de clientes não, então os lucros caíram.

E, como já não eram necessários tantos motoristas, a empresa cortou os incentivos. Para algumas famílias, a vida mudou completamente depois que a promessa da Uber virou pesadelo.

Mohammed Zaheer trabalhou como taxista. Quando a Uber chegou à Índia, ele ficou entusiasmado com a ideia. Logo pegou um empréstimo de US$ 11 mil para comprar um carro, mas pouco tempo depois, seu lucro foi apenas caindo, como aconteceu com muitos outros motoristas da empresa.

Em 2015, Mohammed participou de uma greve de motoristas por conta da queda nos lucros. Pouco tempo depois, acabou se suicidando. Seu corpo foi levado à sede da Uber no país. A empresa nem sequer respondeu. Outros motoristas da companhia já se suicidaram em Hyderabad.

Um ex-executivo da Uber - que falou com a BBC na condição de anonimato - afirmou que "os motoristas foram enganados", porque não explicaram a eles que os salários e incentivos oferecidos inicialmente poderiam mudar.

"Isso é o que realmente revoltou muita gente."

O mantra do Vale do Silício é que a ruptura "é sempre boa". Que com os smartphones e a tecnologia digital, é possível criar serviços mais eficientes, mais cômodos e mais rápidos. E que todo mundo ganha com isso.

Mas por trás desse "aplicativo maravilhoso" ou dessa plataforma impecável, está se desenvolvendo uma forma brutal do capitalismo que está deixando de fora alguns dos setores mais pobres da sociedade.

Em uma declaração, a Uber disse que apoiou a investigação das autoridades após o suicídio do motorista e assegurou que eles são a essência da empresa - e que está comprometida a melhorar a experiência deles. Ainda afirmou que está atuando na Índia de acordo com as "lições já aprendidas".

De volta ao Vale do Silício

Os titãs da tecnologia conseguiram nos convencer de que não são como outras empresas, como as petroleiras, os bancos ou as grandes farmacêuticas, a quem só importa o benefício econômico. As do Vale do Silício, ao contrário, seriam movidas pelo propósito social de melhorar o mundo.

Os fundadores do Airbnb, por exemplo, dizem que estão conectando o mundo, não simplesmente permitindo que as pessoas alugem suas casas para turistas.

O Airbnb é um gigante mundial, avaliado em US$ 31 milhões, mas não se vê como um grande negócio.

Na sede mundial da empresa, em San Francisco, Chris Lehane, que era conhecido como "maestro do desastre" por sua forma de "administrar escândalos" - como o do ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, com a estagiária Monica Lewinsky - explicou à BBC sua visão.

"A gente gosta de pensar que somos um tipo diferente de empresa. A ideia inicial dos fundadores foi que era possível fazer dinheiro com aquilo que costumava ser seu maior gasto: sua casa. E isso acontece hoje em dia."

"Mais da metade das pessoas que estão na plataforma são pessoas de renda baixa e moderada que a utilizam para cobrir gastos."

"A visão dos nossos fundadores é poder usar a plataforma para conectar as pessoas."

"No mundo atual, quando tem gente falando em construir muros, fechar portas e colocar barreiras, este é um lugar que está focado em usar a tecnologia para criar uma sociedade aberta", disse.

O Airbnb afirma que os únicos perdedores em sua proposta de ruptura é a tradicional indústria hoteleira. Mas isso não é o que se sente em Barcelona.

Os moradores de lá reclamam que os aluguéis na cidade estão subindo para todos, já que os proprietários só pensam nos turistas.

O governo local está tentando controlar o crescimento do sistema de Airbnb na cidade exigindo uma licença para os proprietários que desejam colocar suas casas para um aluguel de curto prazo.

Mas não é só Barcelona que tem recebido reclamações desse tipo. Em outras cidades do mundo, os moradores também expressaram seu medo pelo aumento do custo de vida que o Airbnb traz, prejudicando os próprios moradores locais.

O argumento clássico das empresas que provocam essas ruputas é que os órgãos reguladores, os governos, os políticos eleitos, têm que se atualizar e mudar suas políticas levando em consideração a nova realidade.

Por causa disso, o Vale do Silício parece não ter uma opinião muito boa sobre os governos em geral. Isso fica muito evidente quando o assunto é pagar impostos.

Números

Para se ter uma ideia disso, é preciso analisar como as empresas do Vale do Silício se comportam com relação aos impostos em seu lugar de origem.

Google, Apple, Facebook, essas empresas pagam impostos locais sobre a propriedade a uma taxa de 1% do valor de todos os seus edifícios e equipes.

Larry Stone é o assessor do Condado de Santa Clara e seu trabalho é calcular o o valor de suas propriedades.

Ele diz que as gigantes tecnológicas tendem a não estar de acordo com o que devem pagar de contribuição. Uma das maiores batalhas por impostos nos Estados Unidos, aliás, está acontecendo com a Apple.

Quando ficar pronta, sua nova sede será a mais imponente do Vale do Silício. Com um círculo de 1,6 km de diâmetro, o Apple Park será um coliseu moderno. "Nós dissemos que o valor da sede é US$ 6,8 bilhões. A Apple diz que vale US$ 57 milhões", explica Stone.

"Eles estão contestando 99% do valor."

Se a apelação da Apple tiver êxito em sua totalidade, os US$ 68 milhões de impostos que as autoridades pensam que a empresa deve pagar se tornarão um pouco mais que US$ 500 mil.

E a Apple não é o único gigante da tecnologia que faz apelações judiciais sobre impostos por propriedades locais. Que repercussão isso pode ter na sociedade? Afinal é com impostos locais que se pagam as escolas e outros serviços.

"Nos anos 1950, 1960 e 1970, Detroit despertou inveja no mundo todo. Hoje em dia, Detroit faliu. Podemos seguir o mesmo caminho se não resolvermos nossa educação pública e nosso compromisso com a comunidade como pessoas, como cidadãos e como empresas."

Em todo o mundo, os gigantes da tecnologia foram acusados de reduzir agressivamente suas contas fiscais.

Mas a forma como tratam localmente esses temas diz algo sobre a cultura dessas empresas: o enfoque geral sempre é tratar de minimizar o imposto que pagam ou tentar passar por cima dos governos.

Risco da onda de ruptura

A tal "ruptura" proposta pelo mercado da tecnologia no Vale do Silício não é nada novo.

A energia a vapor, a eletricidade, e as linhas de produção destruíram indústrias que existiam antes e obrigaram os governos a mudar.

O mundo sobreviveu, a vida melhorou.

No entanto, essa onda de ruptura não é como a última, porque tem o potencial de mudar a forma como funciona o capitalismo - e isso pode transformar nossas vidas completamente.

A política, ao final, tem que ser capaz de assumir o controle desta tecnologia, garantir que seja feita em benefício da sociedade, que não satisfaça unicamente os interesses de poucas pessoas incrivelmente ricas da costa Oeste dos Estados Unidos.