Logo Pagbenk Seu dinheiro rende mais
Topo

'Desinteresse sem precedentes' define a relação dos EUA com a América Latina no primeiro ano de Trump

Gerardo Lissardy - BBC Mundo em Nova York

23/01/2018 15h50

Em seu primeiro ano como presidente dos Estados Unidos, Donald Trump demonstrou uma "apatia" e um "desinteresse" pela América Latina inéditos nos tempos modernos, segundo especialistas.

A questão vai além do relato de que Trump teria se referido a nações da América Central e do Caribe de forma preconceituosa, das decisões do presidente de interromper programas que evitam a deportação de milhares de imigrantes latinos ou do fato de o presidente querer construir um muro na fronteira com o México, país que classificou como o "mais perigoso do mundo".

Também não se resume à política comercial de Trump, que retirou os EUA do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP), firmado com países latinoamericanos e asiáticos, e que colocou o Nafta - acordo de livre comércio entre EUA, México e Canadá - em cheque.

O que caracteriza esse estremecimento sem precedentes das relações é uma combinação desses fatores com o fato de o republicano sequer ter designado, em um ano de governo, a equipe do Departamento de Estado responsável pelos assuntos relacionados à América Latina.

"Já se comentou em outras administrações que Washington não se importa com a América Latina, e isso é um fato, mas agora é dramaticamente pior", avalia Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano, um centro de análise sobre a América Latina, baseado em Washington.

"O desinteresse pela região como região não tem precedente", afirmou Shifter.

E as consequências disso já se vislumbram: uma deterioração da imagem dos Estados Unidos na América Latina e a crescente influência da China na região.

"Não existe um projeto"

O principal gesto de aproximação de Trump com a América Latina no seu primeiro ano de governo foi provavelmente um jantar que ofereceu aos presidentes de Brasil, Colômbia e Panamá e à vice-presidente da Argentina, em setembro, na semana da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York.

Mas nem mesmo esse breve encontro decorreu sem contratempos. Durante a conversa com os outros governantes, Trump expressou seu "assombro" com a rejeição, pelos países da América do Sul, de uma "alternativa militar" na Venezuela, e chegou a perguntar se eles estavam certos dessa decisão. O presidente dos EUA também teria surpreendido os convidados presentes com sua desinformação sobre temas regionais.

Da Casa Branca, Trump incrementou sanções econômicas contra altos funcionários da Venezuela e impôs sanções financeiras ao governo de Nicolas Maduro, que classifica como uma "ditadura".

Mas Trump evitou, até o momento, o que seria um golpe bem mais duro para Maduro - aplicar um embargo petroleiro à Venezuela, como já foi sugerido pelo presidente argentino, Mauricio Macri, e o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro.

Defensores dos direitos humanos, como José Miguel Vivanco, da ONG Human Rights Watch, têm criticado Trump por silenciar diante de abusos cometidos por outros governos e de irregularidades denunciadas na recente reeleição do presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández, um aliado de Washington.

O presidente interrompeu ainda as conversas entre Estados Unidos e Cuba iniciadas por seu antecessor Barack Obama após meio século de hostilidades entre os dois países.

Especialistas encaram todas essas medidas como respostas pontuais da Casa Branca à máxima de Trump de colocar "os Estados Unidos sempre em primeiro lugar", não como parte de uma política internacional clara e estratégica.

"O governo norte-americano não é visto como um sócio confiável pela América Latina", diz Oliver Stuenkel, professor de relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

"Os Estados Unidos não têm um projeto para a América Latina. Um diplomata brasileiro me disse que não sabem nem com quem falar."

Presença da China

A América é a região do mundo onde mais decaiu a imagem de liderança dos Estados Unidos, conforme levantamento divulgado na semana passada pela Gallup, empresa americana de pesquisas de opinião. O percentual de aprovação do continente em relação ao governo dos EUA passou de 49% no último ano de Obama para 24% na gestão de Trump.

A autoridade com cargo mais alto na hierarquia do governo norte-americano a visitar a América Latina no ano passado foi o vice-presidente, Mike Pence, mas Trump ainda não pisou em qualquer país latinoamericano desde que assumiu a Casa Branca e poderá dar outro sinal de indiferença se faltar à Cúpula das Américas, marcada para abril, no Peru.

O secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, chamou a atenção por sua ausência na Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em junho de 2017, em Cancun, no México. O tema do encontro foi a crise na Venezuela.

Por outro lado, a China tem demonstrado crescente interesse pela América Latina, com três visitas do presidente Xi Jinping à região desde 2013 e reuniões como a realizada na segunda, no Chile, entre o chanceler chinês e ministros de relações exteriores latino-americanos.

A China é o primeiro parceiro comercial do Brasil e segundo parceiro comercial da maioria das nações da América Latina. O peso relativo das importações de produtos da região cresceu a partir do ano 2000, enquanto o dos Estados Unidos se reduziu. Investimentos e empréstimos chineses são vitais para países como a Venezuela.

Para alguns especialistas, a tendência de aumento da influência da China na região se acelerou com o governo Trump.

Luis Rubio, presidente do Conselho Mexicano de Assuntos Internacionais, destaca que o distanciamento dos EUA também gera incentivos para que seja explorada uma aproximação comercial entre Brasil e México, o que antes era considerado "inconcebível".

"Todo mundo está vendo que (as negociações) com Washington estão mais complicadas, então estão surgindo outros tipos de vínculos", diz Rubio.

As relações entre EUA e América Latina devem continuar esfriando nos três anos que faltam de governo Trump?

Provavelmente sim, avaliam especialistas, sobretudo por causa de duas questões sensíveis.

A primeira é a renegociação do Nafta. Esta semana se inicia em Montreal uma nova rodada de discussões entre os EUA, o México e o Canadá que pode ser crucial para salvar o tratado comercial ou causar um estremecimento do comércio entre países da América do Norte.

"O mais grave que já ocorreu na América Latina foi a mudança de posicionamento de Trump em relação ao Nafta", aponta Rubens Barbosa, ex-embaixador brasileiro em Washington.

A segunda questão sensível é a possibilidade de o governo dos EUA começar a deportar centenas de milhares de imigrantes latinos que perderam amparo legal nos últimos meses com decisões de Trump e de cujo futuro depende um pacto político em Washington.

"Pode piorar", adverte Shifter sobre a deterioração da relação entre EUA e América Latina. "É possível que ainda não tenhamos visto o ponto mais baixo da curva."