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Exportação de animais vivos para abate dispara e vira alvo de batalhas na Justiça no Brasil

Maurici de Oliveira/UOL
Imagem: Maurici de Oliveira/UOL

Leandro Machado - Da BBC Brasil em São Paulo

Da BBC Brasil em São Paulo

21/02/2018 07h20

Uma guerra por um mercado de mais de R$ 800 milhões pode ter sua primeira batalha encerrada nesta quarta-feira, quando 27 mil bois vivos oriundos do Brasil desembarcam na Turquia depois de 15 dias de viagem pelo mar.

O navio saiu do Porto de Santos no dia 5 de fevereiro sob forte pressão de grupos de defesa dos animais - eles afirmam que os bovinos sofreram maus-tratos. Após protestos e processos, a Justiça chegou a proibir a exportação de carga viva em todo o país, mas suspendeu a decisão após o governo do presidente Michel Temer (PMDB) recorrer.

No entanto, a guerra deve continuar nos próximos meses: a expectativa é de que as exportações de animais vivos cresçam 30% neste ano ao mesmo tempo em que diversas ações judiciais tentam impedi-las.

O Brasil é um dos maiores exportadores de carne bovina do mundo, segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) - um mercado de R$ 5,3 bilhões ao ano apenas no Brasil. A maior parte desse montante é de carne processada e congelada, ou seja, os animais são abatidos no Brasil e depois levados aos países compradores.

Há cerca de 20 anos, porém, o Brasil passou a vender também os animais vivos. Eles são transportados de caminhão das fazendas ao porto, colocados em grandes embarcações, viajam milhares de quilômetros pelo mar e, depois, são abatidos no país comprador.

Esse tipo de exportação vem crescendo ano a ano. Segundo Associação Brasileira dos Exportadores de Animais Vivos (Abreav), o Brasil vendeu 460 mil cabeças de gado em pé - nome técnico para a modalidade - em 2017, movimento de R$ 800 milhões e crescimento de 42% em relação a 2016.

"Nós estamos crescendo todos os anos e, em 2018, vamos aumentar as vendas em 30%", diz Ricardo Pereira Barbosa, presidente da Abreav.

A maior parte dos animais vai para países mulçumanos por uma questão religiosa. A carne consumida pelos religiosos deve ser cortada pela técnica halal.

Nesse tipo de corte, os animais devem estar saudáveis ??no momento do abate, segundo explica Michel Alaby, secretário geral da Câmara de Comércio Árabe Brasileira. "O animal é morto de cabeça para baixo e todo o sangue deve ser drenado", diz.

O nicho deve ser abatido por um muçulmano que tenha atingido a puberdade. Ele deve pronunciar o nome de Alá ou recitar uma oração que contenha o nome de Alá durante o processo, com a face do animal voltada para Meca.

Segundo a Câmara Brasil Árabe, as exportações de gados vivos para cinco países árabes, como Iraque e Egito, cresceram 75% nos últimos dois anos - de R$ 273 milhões em 2015 para R$ 412 milhões no ano passado.

Alaby diz que a indústria brasileira já é a maior exportadora de carne halal no mundo - a maior parte dos animais é abatida ainda no Brasil, por mulçumanos contratados exclusivamente para a técnica. Porém, segundo ele, governo árabes querem aumentar o número de empregos na pecuária e, por isso, preferem fazer o abate nos próprios países.

Em meio a esse rápido e acentuado crescimento, grupos e ONGs de defesa dos animais têm feito denúncias de maus-tratos sofridos pelos animais transportados. Hoje, existem ao menos dois processos em São Paulo e outro na esfera federal contra as exportações.

Houve maus-tratos aos animais no navio?

O navio com 27 mil bois que desembarca hoje à Turquia chegou a ser impedido de sair do Brasil pela Justiça - a carga foi avaliada em R$ 64 milhões. A embarcação Nada, de bandeira panamenha, estava carregada de animais da Minerva Foods, uma das maiores produtoras de carne no Brasil.

O caso começou a chamar a atenção depois que moradores de Santos reclamaram do mau cheiro e de excrementos deixados pelos caminhões que passavam pela cidade. Depois, a ONG Fórum Nacional de Proteção e Defesa de Animal entrou na Justiça para impedir que o navio deixasse o país, alegando que os animais estavam sofrendo maus tratos.

O processo chegou ao juiz federal Djalma Moreira Gomes, da 25ª Vara Civil de São Paulo, que nomeou a veterinária Magda Regina, funcionária da Prefeitura de Santos, para realizar um laudo técnico sobre a situação dos animais dentro do navio.

O magistrado perguntou: "De que maneira são acondicionados em caminhões ou embarcações os animais transportados para o exterior?". No documento, a veterinária respondeu que havia entre 27 e 38 bois em cada veículo e que fitas adesivas foram coladas nos orifícios laterais, "visando dificultar inspeção externa de terceiros".

Ela escreveu: "Os animais, uma vez aprisionados dentro dos caminhões enfrentaram viagens entre 8 a 14 horas de trajeto. Muitos caminhões e suas caçambas dispunham de varetas com pontas metálicas conectadas ao sistema elétrico do veículo, cujo objetivo é impedir mediante descargas elétricas que os animais se deitem no assoalho do veículo".

Regina apontou que, durante o embarque que durou uma semana, as baias do navio não foram lavadas. "A imensa quantidade de urina e excrementos produzida e acumulada nesse período propiciou impressionante deposição no assoalho de uma camada de dejetos lamacenta."

Ela afirmou ainda que funcionários do navio lhe disseram que, após a lavagem, os dejetos são jogados no mar - cada boi produz cerca de 30 quilos de fezes por dia.

"Os dejetos acumulados pelo processo de limpeza têm então seu conteúdo descartado, sem qualquer tratamento, ao mar. Esse descarte ocorre periodicamente, dependendo da velocidade do navio em curso."

Segundo o laudo, o navio tinha três veterinários para cuidar dos 27 mil animais - um para cada 9 mil cabeças. Também apontou: "Em setor específico do navio, vulgarmente denominado Graxaria, foi constatada a presença de um equipamento destinado a triturar os animais mortos, cujo resultado do trituramento é também lançado ao mar", escreveu a veterinária.

Outra vistoria foi feita no navio ao mesmo tempo que Magda Regina realizava a sua. Os resultados, no entanto, são totalmente divergentes.

Os auditores fiscais do Ministério da Agricultura, Paulo Roberto de Carvalho Filho e Felipe Ávila Alcover, afirmaram que não houve maus-tratos e que o navio seguia todas as regras da Organização Mundial da Saúde Animal.

"Os animais apresentavam expressão de tranquilidade, ausência de dor, ansiedade ou estresse térmico. Se aproximavam com curiosidade do toque humano, sinal de que não são tratados com rudeza e acostumados ao arraçoamento por tratador", escreveram.

Disseram também que os bovinos estavam bem alimentados e que os decks da embarcação tinham piso adequado - a lavagem era feita normalmente, a cada cinco dias.

'Inferno na terra'

Enquanto o navio recebia os bois, manifestantes protestavam em frente ao Porto de Santos - reuniram até 500 pessoas.

O biológo Frank Alarcón, ativista da defesa dos animais, também conseguiu entrar na embarcação.

"Posso resumir o que vi em uma frase: um inferno na terra", diz. "Cada animal tinha 1 m² de espaço, e você sabe que um boi tem mais do que isso. Eles estavam mergulhados nas fezes, no vômito, na urina. Alguns se deitavam em cima de outros", afirma.

Para Ricardo Pereira Barbosa, presidente da associação das empresas exportadoras, não houve maus-tratos no navio. "Todos os barcos estrangeiros seguem a norma da Organização Mundial da Saúde Animal. Da nossa perspectiva, não houve maus-tratos", disse.

A Minerva Foods, dona da carga, afirmou que o manejo dos animais segue todos os procedimentos adequados para preservar o bem-estar dos animais durante o transporte, embarque e no decorrer da viagem.

Não é a primeira vez que a empresa se envolve em uma polêmica sobre essa modalidade de comércio. Em outubro de 2015, um navio com 5 mil animais dela naufragou em Barcarena, no Pará. Milhares deles morreram afogados - a companhia foi processada.

O que a Justiça decidiu

Depois do laudo técnico da veterinária, o juiz federal Djalma Moreira Gomes decidiu, em liminar, suspender a exportação de animais vivos em todo território nacional, até que os países de destino "se comprometam, mediante acordo inter partes, a adotar práticas de abate compatíveis com o preconizado pelo ordenamento jurídico brasileiro".

Na decisão do dia 2 de fevereiro, o magistrado afirmou que as condições de higiene no navio Nada "eram muito precárias". Para ele, o transporte deveria assegurar o bem-estar dos animais.

Gomes escreveu ainda: "É dizer, alguém sendo dono de uma cadeira e de um cão, poderia, sem qualquer recriminação de ordem jurídica, despedaçar a cadeira e atirar seus cacos na caçamba de lixo. Porém, seria inconcebível que mesmo sendo dono do cão, pretendesse fazer com o animal o mesmo o mesmo que fizera com a cadeira".

A proibição do transporte dos animais foi comemorada por ativistas e ambientalistas, mas acendeu um sinal amarelo no setor agropecuário e também no governo federal.

O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, encontrou-se com o presidente Michel Temer para falar do caso. "Este assunto é bastante complicado. Os bois já estão embarcados, sendo alimentados por ração vinda de outros países. Descarregar estes animais conforme a Justiça determinou traz um problema sanitário. Além de já ser um problema diplomático", afirmou à Agência Brasil no dia 4 de fevereiro.

Maggi é ligado ao setor agropecuário brasileiro - a empresa de sua família, a Amaggi, é uma das maiores exportadoras de soja do país. Boa parte de sua campanha para o Senado pelo PR em 2010 foi financiada por frigoríficos e por empresas de alimentos.

No mesmo dia, a AGU (Advocacia-Geral da União) pediu à Justiça a suspensão da liminar. Argumentou que a proibição "implicaria em grave lesão à ordem administrativa, à saúde pública e à economia pública, podendo submeter o setor agropecuário brasileiro a risco".

A AGU também afirmou que o navio tinha condições adequadas e que cabe apenas ao Ministério da Agricultura calcular o risco sanitário do transporte internacional de animais.

Às 19h50 do domingo, O Tribunal Federal Regional da 3ª Região acatou o pedido do governo Temer e liberou as exportações. O navio Nada saiu do país horas depois.

Na semana passada, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) multou em R$ 450 mil o Ecoporto Santos, onde o navio atracou. Segundo a Cetesb, o local não tinha licença ambiental para fazer embarque de carga viva.

O Ecoporto Santos afirma que vai recorrer e que foi surpreendido pela multa, "pois entende que a operação foi realizada em estrita observância às legislações que regulamentam está modalidade de operação".

A guerra continua

Outros três processos devem continuar nos próximos meses, colocando as exportações de animais vivos sob o crivo da Justiça.

"Nosso objetivo é barrar essas grandes exportações de animais. Elas se tornaram vultuosas. Não queremos destruir a economia, nós queremos só um pouco de respeito com os animais", explica a advogada Letícia Filpim, vice-presidente da Abra (Associação Brasileira dos Advogadas Animalistas).

Para o biólogo Frank Alarcón, as exportações em grande quantidade ferem os direitos dos animais. "Sem contar as questões ambientais, pois dejetos são jogados no mar, há pontos éticos: você submete animais de cognição complexa a enclausuramentos em locais minúsculos, sujos, e faz viagens marítimas por semanas", diz ele, que faz parte do Partido Animais. "Os animais são expostos a tempestades e calor intenso. Não há nada que amenize esse sofrimento."

Michel Alaby, da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, afirma que dados dos países compradores apontam que 3% dos animais chegam mortos ao destino.

A guerra jurídica não assusta Ricardo Pereira Barbosa, da associação dos exportadores. "Fazemos isso há 20 anos. Por que agora, que o mercado cresceu 42%, houve todos esses protestos? Estamos em ano de eleição e existem pessoas querendo se aproveitar da repercussão", afirmou, citando deputados estaduais que compareceram às manifestações.

Ele completa: "Nós vamos conversar com o governo para aprimorar a legislação. Mas mesmo com protesto, com reclamação, as vendas vão continuar".