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Por que os 'vistos gold', muito visados por brasileiros, viraram centro de polêmica em Portugal

Pedro C Garcia - Da BBC News

22/09/2018 06h43

Em Lisboa, capital de Portugal, o incorporador imobiliário Pedro Vicente teme que o volume de negócios de sua empresa esteja prestes a sofrer um baque. "Perderíamos 30% do nosso negócio se os vistos gold fossem abolidos", calcula ele, referindo-se ao visto que tem atraído cada vez mais dinheiro ao país, principalmente de chineses e brasileiros, e ao risco que vê no horizonte de essa via - que tem o setor imobiliário como o maior beneficiado - estar com os dias contados.

Na prática, um projeto de lei pede a extinção desse tipo de visto, apontando supostos riscos associados ao sistema de concessão e pondo em dúvida os reais benefícios que os investimentos decorrentes dele têm gerado para a economia.

Mas o que motiva a polêmica e quais são os argumentos contra e a favor?

A BBC News mostra a seguir.

Os vistos gold

O chamado regime de Autorização de Residência para Atividade de Investimento, por meio do qual os vistos gold são concedidos, foi criado em 2012 para atrair investidores estrangeiros a Portugal e movimentar o mercado interno do país, então mergulhado em uma crise.

O mecanismo exige que os investidores aportem milhares de euros - o equivalente a milhões de reais - em áreas como imóveis, fundos de investimento, pesquisa científica ou no apoio, por exemplo, à produção artística. Em contrapartida, eles podem obter residência permanente no território português e, depois de seis anos, a cidadania.

No total, esse regime já atraiu ao país mais de 3,9 bilhões de euros (R$ 18,76 bilhões) em investimento estrangeiro, segundo o governo. E isso levou a um boom imobiliário em Lisboa e na cidade do Porto.

Os investimentos

Um total de 6.416 pessoas já solicitaram com sucesso um dos chamados vistos gold.

Apenas em 2017 os investimentos superaram 840 milhões de euros (o equivalente a mais de R$ 4 bilhões) e neste ano, entre janeiro e agosto, eles somaram 555,84 milhões de euros (R$ 2,67 bilhões).

Os brasileiros estão em segundo lugar no ranking dos estrangeiros que mais investem no país por meio desse regime - atrás dos chineses -, com desembolsos que representaram 21% do bolo total dos investimentos no ano passado e 15% neste ano.

África do Sul, Turquia e Vietnã completam as nacionalidades principais em 2018.

Cerca de 95% dos pedidos de residência feitos por meio do regime envolvem investimentos voltados ao setor de imóveis.

Entre as vias que os interessados podem escolher estão, por exemplo, a compra de casas ou apartamentos com valor igual ou superior a 500 mil euros (o equivalente a R$ 2,4 milhões); o desembolso de 1 milhão de euros (R$ 4,81 milhões) ou mais em outras áreas da economia, ou criar um negócio que empregue 10 ou mais pessoas.

Outra possibilidade é a aquisição de bens imóveis, cuja construção tenha sido concluída há, pelo menos, 30 anos ou localizados em área de reabilitação urbana, e realização de obras de reabilitação dos imóveis adquiridos no montante global igual ou superior a 350 mil euros (R$ 1,68 milhão).

O investidor também tem outros caminhos, como aplicar cifra semelhante - 350 mil euros ou mais - em pesquisa científica, em fundos de investimento ou fundos de capitais de risco; criar empresas sediadas em Portugal com cinco postos de trabalho permanentes; ou reforçar o capital social de uma empresa nacional já existente, com a criação ou manutenção de pelo menos cinco empregos por um período mínimo de três anos.

A transferência de 250 mil euros (R$ 1,20 milhão) ou mais, para investimento ou apoio à produção artística, recuperação ou manutenção do patrimônio cultural nacional é também uma possibilidade.

O que se questiona e os argumentos contra o sistema

A crítica ao sistema está sendo liderada pelo Bloco de Esquerda, partido político português de extrema-esquerda socialista, que faz parte da coalizão não oficial de apoio ao governo minoritário.

O partido argumenta que os candidatos aos vistos gold não são suficientemente investigados no processo de avaliação, o que acaba abrindo caminho para que criminosos estrangeiros também obtenham o documento.

O partido também argumenta que esses investimentos não criaram empregos o bastante, apontando que, dos 6.416 estrangeiros que receberam o visto gold, apenas 11 (0,2%) escolheram a opção de criar um negócio que empregue mais de 10 pessoas. A lista não inclui brasileiros.

O Bloco elaborou um projeto de lei que propõe abolir esse regime de concessão de vistos.

No documento, argumenta que eles são uma porta de entrada para "práticas de corrupção, tráfico de influência, peculato e lavagem de dinheiro, entre outras ilegalidades fiscais e criminais".

"Precisamos de investimento estrangeiro, mas não a qualquer custo", diz o deputado José Manuel Pureza, do Bloco de Esquerda.

"Precisamos de investimento que crie empregos, que não esteja associado à corrupção, e investimento que não faça distinção entre os imigrantes ricos e os demais", acrescenta.

O que se diz a favor

De volta ao escritório de Pedro Vicente, em Lisboa, ele está preocupado com a proposta do partido.

Sua empresa se prepara para inaugurar um novo projeto residencial de luxo com 55 apartamentos no centro de Lisboa, onde "cerca de 40% das aquisições foram feitas por compradores com visto gold".

Luis Lima, secretário-geral da maior associação de agências imobiliárias de Portugal, a APEMIP, diz que "a tão necessária renovação de Lisboa e do Porto (realizada nos últimos anos) foi feita devido ao investimento via vistos gold".

Ele acrescenta que, ante a falta de disponibilidade de capital local, o regime de vistos gold gerou milhares de empregos, abrangendo de trabalhadores da construção civil aos que fazem serviços de limpeza.

"Sem vistos gold, o setor de construção teria entrado em colapso", diz Lima.

'Sucesso econômico'

O economista João Duque também vê o regime de vistos gold em Portugal como um sucesso econômico.

Ele diz que, embora um número pequeno de novos negócios tenha sido criado, os investidores estrangeiros pagaram aos donos de imóveis portugueses "milhões de euros" que provavelmente foram reinvestidos internamente, criando milhares de empregos ou salvando empresas existentes da beira do abismo.

Enquanto isso, outra economista, Ana Santos, da Universidade de Coimbra, alerta que o regime de vistos gold fez dispararem os preços no mercado imobiliário residencial português. E que esses preços exorbitantes acabarão tornando os vistos gold portugueses menos atraentes.

O governo português foi procurado pela reportagem da BBC, mas não quis comentar o assunto. Se apoia ou não o projeto de lei do Bloco de Esquerda é uma incógnita.

Brian Morgan, professor de empreendedorismo da Cardiff Metropolitan University, do País de Gales, e especialista em investimento interno, diz que outra preocupação em relação aos vistos gold emitidos por Portugal e outros países da União Europeia (UE) é que os detentores desses vistos não necessariamente permanecerão no país que concedeu o documento.

Eles podem migrar para outros países da região.

No caso de vistos gold portugueses, uma vez que o obtenham, os titulares podem viajar imediatamente em torno do Espaço Schengen - acordo que permite a livre circulação de pessoas dentro dos países signatários, sem a necessidade de apresentação de passaporte nas fronteiras -, o qual inclui 22 Estados-membros da União Europeia, além da Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. E se o portador do visto conquistar a cidadania portuguesa após seis anos, poderá se mudar permanentemente para outro país da UE.

"No caso de Portugal, seu sistema de vistos gold tinha aspectos positivos como uma solução de curto prazo", diz o professor Morgan. "O mercado imobiliário do país estava estagnado em 2012, e isso deu a ele um enorme impulso. No entanto, agora há sinais de que o mercado está superaquecido, e teme-se que não tenha havido a devida auditoria sobre quem obteve vistos."

A versão britânica do regime de vistos gold de Portugal é oficialmente chamada de visto Nível 1 (Investidor). Ele difere de forma significativa do português, na medida em que os requerentes não podem investir no mercado imobiliário do Reino Unido. Além disso, o investimento mínimo é de 2 milhões de libras (R$ 10,82 milhões), mais de quatro vezes superior.

No ano passado, o governo do Reino Unido emitiu 355 desses vistos, um aumento de 56% em relação ao ano anterior. O Ministério do Interior diz que não tem planos de conceder mais vistos gold pós-Brexit (processo de saída do Reino Unido da UE), ou de reduzir o valor mínimo de investimento exigido.

Uma porta-voz explicou que em 2015 esse valor foi elevado de 1 milhão de libras (R$ 5,41 milhões) para 2 milhões (R$ 10,82 milhões), para garantir que os vistos não estivessem sendo vendidos por menos do que realmente valem.

Vistos gold no mundo

De acordo com a organização anticorrupção Transparência Internacional, mais de 20 países ou territórios em todo o mundo oferecem vistos gold, com regras variadas. Veja abaixo alguns exemplos de investimentos mínimos exigidos aos candidatos de vistos:

- Reino Unido: US$ 2,6 milhões (R$ 10,8 milhões) em títulos ou ações através de bancos britânicos;

- Espanha: US$ 580 mil (R$ 2,4 milhões) em propriedades imobiliárias, US$ 1,1 milhões (R$ 4,77 milhões) em depósitos ou US$ 2,3 milhões (R$ 9,55 milhões) em títulos do governo;

- Antígua e Barbuda: US$ 100 mil (R$ 415,3 mil) para o Fundo Nacional de Doações. Ou US$ 400 mil (R$ 1,66 milhão) no setor imobiliário ou, ainda, US$ 1,5 milhão (R$ 6,22 milhões) em investimentos aprovados;

- Chipre: 2 milhões de euros (R$ 9,63 milhões) em empresas, propriedades imobiliárias ou títulos do governo;

- Estados Unidos: US$ 1 milhão (R$ 4,15 milhões) em empresas que criam ao menos 10 postos de trabalho ou US$ 500 mil (R$ 2,07 milhões) se o investimento for em uma área rural ou em uma área com alta taxa de desemprego;

- Lituânia: Gerenciar e manter pelo menos um terço das ações de uma empresa com pelo menos três trabalhadores em tempo integral e um valor de capital de US$ 32,5 mil (R$ 134,9 mil).

Colaborou Renata Moura, da BBC News Brasil em Londres