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Como a Escola de Chicago transformou o Chile em laboratório do neoliberalismo

22.mar.2019 - O presidente Jair Bolsonaro e o presidente do Chile, Sebastian Pinera, durante celebração no palácio La Moneda - Rodrigo Garrido/Reuters
22.mar.2019 - O presidente Jair Bolsonaro e o presidente do Chile, Sebastian Pinera, durante celebração no palácio La Moneda Imagem: Rodrigo Garrido/Reuters

Redação - BBC News Brasil

23/03/2019 06h32Atualizada em 08/05/2019 16h24

O golpe de Estado que depôs o presidente socialista Salvador Allende em 1973 e iniciou o governo do general Augusto Pinochet marcou um ponto de inflexão na economia chilena.

No lugar do Estado de bem-estar social e regulador, foi ganhando força um projeto macroeconômico de viés desestatizante, liderado por grupo de jovens economistas apelidados jocosamente de "Chicago Boys". Nesta guinada neoliberal sob Pinochet, conviviam relativas liberdades econômicas e repressão violenta a direitos civis.

Privatizações, abertura ao mercado externo, reforma trabalhista e redução do gasto público e do papel do Estado em áreas-chave, como saúde e educação. As sementes da implementação dos itens dessa cartilha desestatizante foram plantadas pelos Estados Unidos duas décadas antes no Chile.

Em 1955, professores da Escola de Chicago visitaram o país a fim de firmar convênios. Nos anos seguintes, passaram a influenciar a formulação de políticas econômicas por meio principalmente de alunos que foram bolsistas em Chicago, escola que atribuía a crise econômica ao excessivo intervencionismo estatal na atividade produtiva privada.

O contexto geopolítico da Guerra Fria favoreceu a transformação do Chile em uma espécie de laboratório neoliberal por quase uma década, com influência até hoje na economia chilena, a exemplo da obsessão com equilíbrio fiscal e controle inflacionário.

A experiência se tornou exemplar - para o bem e para o mal - na América Latina. O presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PSL), que visita o Chile neste fim de semana, fez elogios ao governo Pinochet, que inspira a proposta de reforma da Previdência formulada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, este também um dos Chicago Boys.

Mas quem eram esses jovens economistas chilenos e qual foi o impacto da política neoliberal inspirada em Milton Friedman, principal nome da Escola de Chicago e prêmio Nobel de Economia?

Escola de Chicago x Keynes

No pós-guerra, a escola econômica dominante era ligada ao britânico John Maynard Keynes (1883-1946). Em oposição à ortodoxia liberal que dominara o pensamento econômico europeu e o americano até o início dos anos 1930, os keynesianos representavam o principal paradigma heterodoxo.

Em Chicago, um grupo de economistas afirmava que a origem dos desastres econômicos daquele século não estava em limites do capitalismo, mas na mão pesada do Estado.

Milton Friedman e Frank Knight, professores de Chicago, se associaram ao economista austríaco Friedrich von Hayek, num grupo que acusava o Estado de bem-estar social de fortalecer o marxismo na União Soviética e em outros países.

Para Friedman, o desemprego, obsessão da escola dominante keynesiana, era resultado das políticas assistenciais do Estado de bem-estar, que desestimulariam os menos arrojados a procurarem trabalho.

Ascensão dos economistas e 'soft power' dos EUA

Segundo o economista Felipe Alejandro Guerrero Rojas, em dissertação de mestrado em Ciência Política na Universidade Federal do Paraná, os profissionais formados em Economia avançaram em posições centrais no aparelho do Estado chileno, em vagas antes ocupadas por advogados e engenheiros.

Na esteira da tecnocracia que teve início nos anos 1960, esses profissionais se consolidaram a partir da década de 1970 também como uma elite política no país.

Parte importante dos economistas chilenos desse período foi influenciada pela Escola de Chicago, que levou sua agenda ao país em 1955. Naquele ano, uma missão de professores americanos visitou Santiago a fim de firmar convênio com Universidade Católica do Chile.

A partir dali, haveria bolsas de estudos para alunos chilenos nos Estados Unidos, subsidiadas pelo governo americano, e estágios no Chile para professores de Chicago.

As universidades passaram a estudar também os problemas econômicos chilenos, como inflação, desenvolvimento agrícola, investimento público e balança comercial. E a elaborar propostas.

Quando retornaram do período de estudos em Chicago, os jovens economistas chilenos formaram um grupo organizado e alguns deles se tornariam professores da Universidade Católica do Chile. A atuação se aproximou também da política, com um flerte com o candidato de direita à Presidência Jorge Alessandri, que seria derrotado pelo socialista Salvador Allende, desenvolvimentista que ampliou o papel do Estado.

Esse processo é interrompido em 11 de setembro de 1973 com o golpe de Estado, apoiado também pelos neoliberais, que inicialmente se tornaram assessores técnicos dos homens de confiança dos militares colocados nos postos-chave no governo Pinochet - cargos que os Chicago Boys ocupariam mais à frente.

Segundo Guerrero Rojas, os Chicago Boys também trouxeram mudanças na tomada de decisão do Estado chileno a partir de princípios "técnicos e científicos", e não mais por postulados políticos e ideológicos. "Esse modelo tinha a pretensão de construir uma 'sociedade tecnificada'; uma sociedade onde os mais capacitados tomam decisões técnicas para as quais foram treinados", afirma em seu estudo.

E completa: "A partir desse modelo, os Chicago Boys puderam se constituir como elite política e desenvolver políticas baseadas nos princípios neoliberais. Mesmo com a redemocratização e a vitória dos partidos de oposição ao governo de Pinochet nas eleições de 1990, o governo da Concertación não conseguiu romper com essa forma de Estado".

Que mudanças os Chicago Boys implementaram no Chile?

No início dos anos 1970, sob Allende, a economia do Chile era marcada por dependência da exportação de minérios, altas barreiras alfandegárias, aumento de gastos públicos e salários, controle de preços e expropriação de empresas.

Como consequência, a política econômica resultou em hiperinflação (em 1973, chegou aos 606% anuais), aumento do déficit público e do desemprego, redução das reservas cambiais e desindustrialização.

O golpe que derrubou Allende foi seguido de ajustes econômicos gradativos, influenciados pelos Chicago Boys.

"O Chile foi pioneiro na adoção do neoliberalismo: os princípios de interesse individual, propriedade privada e supremacia do mercado financeiro foram implementados aqui antes mesmo do Consenso de Washington, de 1989 [quando foi formulado um 'receituário' de medidas neoliberais à América Latina, como privatizações, austeridade fiscal e reformas tributárias]", afirmou o professor de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de Valparaíso Guillermo Holzmann.

O avanço da influência dos Chicago Boys viveu um ápice em 1975, quando Milton Friedman visitou o Chile, fez conferências e se reuniu com Pinochet. O economista de Chicago buscava também convencer o militar a adotar, em vez de mudanças paulatinas, um "tratamento de choque" neoliberal para recuperar a economia. A pressão deu certo.

A estratégia passava por equilíbrio fiscal, desregulamentação, abertura ao capital externo e controle de inflação, entre outras medidas. Era o oposto do antecessor Allende. Previsto por Friedman, o choque foi duro naquele ano, e o PIB caiu 13,3%. Dois anos depois, porém, o Chile voltou a um crescimento consistente no patamar de 7%.

Qual foi o resultado da experiência neoliberal?

"É complexo analisar o desempenho econômico do governo militar chileno", disse Steve Hanke, acadêmico da Universidade Johns Hopkins que assessorou diversos governos latino-americanos. "Nos primeiros anos da era Pinochet houve um 'boom', quando as medidas iniciais ajudaram a estabilizar o caos da economia socialista."

Para ele, é "evidente" que a atual prosperidade chilena se baseia em medidas adotadas durante a era Pinochet. Hanke cita como exemplo a continuidade do sistema de seguridade social baseado em fundos de previdência privada, um dos programas emblemáticos do governo militar.

Mas houve uma guinada já durante o governo militar. "Uma parte importante das medidas neoliberais implementadas no início dos anos 1970 foram revertidas nos anos 1980 pelo próprio governo militar. Um exemplo muito claro disso foi sua política de desregulamentação financeira e mudanças no tipo de câmbio. Ambas, que favoreciam o capital financeiro, levaram o Chile a uma crise na década seguinte e acabaram revertidas", afirmou Óscar Landerretche, da Universidade do Chile.

Segundo ele, após a ditadura, "não havia seguro de saúde universal, seguro-desemprego, gratuidade no ensino superior, nem pilares solidários no sistema de previdência".

No setor previdenciário, a mudança para um regime de capitalização - no qual cada indivíduo faz sua própria poupança - também causou forte impacto social anos depois. Quando o novo modelo começou a produzir os seus primeiros aposentados, o valor das aposentadorias se mostrou baixo: 90,9% recebem menos de 149.435 pesos (cerca de R$ 694,08).

O período, classificado por alguns economistas como "milagre econômico", durou até 1982, ano em que o Chile sofreu uma queda recorde do PIB (13,4%) e a duplicação da inflação. A economia chilena só se recuperaria em 1984, quando começaria a chamada "era dourada".

Apesar de todos os avanços de indicadores econômicos no governo militar, a distribuição de renda praticamente não mudou - a desigualdade se tornaria alvo das principais mudanças adotadas na redemocratização chilena, com aumento do gasto público sem desequilíbrio fiscal.

"Essas políticas neoliberais acabam resultando em concentração de renda. Apenas um grupo movimenta a economia, enquanto você precisa de estímulo às outras classes consumirem. Após a ditadura militar, os governos passam a criar uma série de políticas socioeconômicas para reduzir essa desigualdade social", afirmou Guerrero Rojas, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná.

Noah Smith, colunista da agência de notícias Bloomberg, resumiu o debate em um tuíte em novembro do ano passado.

"O crescimento anualizado do PIB real per capita no Chile sob Pinochet (1973-1990) foi de 1,6%. O crescimento anualizado do PIB real per capita no Chile nos 17 anos posteriores a Pinochet (1990-2007) chegou a 4,36%. Pinochet está bastante superdimensionado", escreveu ele.