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'Cortei plano de saúde e escola dos filhos': 2 anos depois, ex-metalúrgicos da Ford seguem desempregados e endividados

Leandro Machado - Da BBC News Brasil em São Paulo

19/01/2021 18h12

Em 17 de fevereiro de 2019, a Ford anunciou que fecharia uma de suas históricas fábricas no Brasil, a planta de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

A notícia foi um prenúncio do que aconteceria depois, com a saída definitiva da montadora americana do país. Um dia depois, a reportagem da BBC News Brasil foi à cidade e conversou com funcionários, pegos de surpresa com o desemprego que se avizinhava.

Naquele dia, Clayton Diógenes da Silva, hoje com 45 anos, lembrou a história de sua família, toda ela ligada à multinacional. "Foi na Ford que meu pai criou cinco filhos e que eu criei meus dois", afirmou o inspetor de processo, que por 24 anos atuou na fábrica do ABC paulista. "Entrei com 19 anos, e ainda trabalhei um ano com meu pai aqui."

Dois anos depois daquele anúncio, o metalúrgico ainda luta para conseguir se recolocar no mercado de trabalho. Está desempregado desde então.

"Já fiz entrevistas, mandei currículos, participei de seleções, mas até agora nada. Está difícil, muitos dos meus colegas estão na mesma situação", diz.

O caso de Clayton não é único entre os 2.800 funcionários diretos que foram demitidos da empresa. O número de demitidos pode ter sido bem maior, pois o corte também afetou empresas que prestavam serviços para montadoras, como terceirizadas e fornecedoras de materiais para a montagem dos veículos.

Esse cenário de desemprego deve se repetir nos próximos meses em outras três regiões do país, pois na semana passada a Ford anunciou que suas três plantas restantes no Brasil também serão fechadas: em Camaçari (BA), Horizonte (CE) e Taubaté (SP).

Apenas na primeira, cerca de 12 mil pessoas devem perder seus empregos, segundo Elinaldo Araújo (DEM), prefeito do município baiano.

A empresa americana atribuiu a decisão à pandemia de covid-19, afirmando que ela intensificou um quadro de vendas já ruim e "prejuízos significativos" no país e na América do Sul.

"Com mais de um século na América do Sul e no Brasil, sabemos que estas são ações muito difíceis, mas necessárias, para criar um negócio saudável e sustentável", declarou o diretor executivo da Ford, Jim Farley, na semana passada.

A decisão faz parte de uma reestruturação global da Ford com vistas a melhorar seu desempenho financeiro. Com o fim da produção no Brasil, iniciada em 1920, a empresa calcula gastos de US$ 4,1 bilhões para encerrar as operações de manufatura no país, e está trabalhando para encontrar compradores.

Dos quatro ex-funcionários de São Bernardo ouvidos pela reportagem nesta semana, apenas um conseguiu recuperar o emprego de metalúrgico ? recebeu a notícia da contratação na segunda-feira, exatos dois anos depois do anúncio do fechamento da Ford na cidade. Outros dois estão desempregados, e um deles conseguiu se aposentar.

Clayton acredita que sua idade ? 45 anos ? influencia na hora da contratação. "Participei de várias entrevistas. Alguns colegas mais jovens, com menos experiência e menos formação que eu, conseguiram passar. Não é culpa deles, claro. Nem minha. Mas não conheço ninguém com mais de 40 anos que tenha conseguido passar. Minha idade é considerada avançada nessa área", diz.

No período de desemprego, ele não ficou parado: fez um curso técnico no Senai e outros de especialização ? anos atrás, foi a Ford quem pagou sua faculdade de tecnologia em processo de produção. "Foi até engraçado entrar no Senai de novo, com 45 anos, e os colegas de turma com 18, 20... O pessoal já me chama de tiozão", brinca.

O metalúrgico também tentou adiantar a aposentadoria, mas teve seu processo negado pelo INSS. Nesses dois anos, diz que precisou se adaptar à nova renda, bastante menor que a de seus tempos na Ford.

"Nossa sorte foi que eu tinha dinheiro guardado, casa própria, carro pago. Minha esposa também trabalha, então conseguimos manter pelo menos nossos filhos na escola deles. Nossa prioridade era manter os estudos. Se teve um lado bom foi que hoje fico mais com meus filhos, levo eles na escola, cozinho, ajudo na lição de casa", explica.

O metalúrgico Juliano de Oliveira Duarte, de 39 anos, é outro que ainda busca emprego. "Vivo de bico. Arrumo o carro de um amigo, faço instalação elétrica, tapeçaria, tudo que me chamarem...", diz.

Nos últimos dois anos, a família precisou cortar gastos: escola particular dos três filhos, plano de saúde, TV a cabo e passeios no fim de semana foram eliminados das contas. "No mercado a gente só compra o básico, economizamos ao máximo. Vivemos negociando as nossas contas", diz Juliano, cuja esposa, operadora de telemarketing, também ficou desempregada nos últimos meses.

O metalúrgico diz que pesa contra ele um problema de saúde adquirido na fábrica da Ford em São Bernardo ? por 11 anos ele atuou na linha de montagem de carros e caminhões.

"Tenho um problema no ombro e no braço, que começou quando eu trabalhava lá. Cheguei a operar e ficar afastado um período da Ford. Agora, quando chego na seleção, a empresa vê que tenho esse problema e não me chama de jeito nenhum. Se você não tem 100% do que eles querem, eles nunca te chamam. As portas estão fechadas para mim", lamenta ele, que também teve um pedido de aposentadoria negado pelo INSS.

Embora não reclame do período em que atuou em São Bernardo, o metalúrgico critica a postura da Ford diante das dificuldades e vislumbra um futuro parecido com o seu para os funcionários das três fábricas que irão fechar em breve.

"Não tenho o que reclamar da Ford enquanto eu estive lá. Sempre foi uma empresa muito boa para os funcionários. Mas ela recebeu muitos benefícios e redução de impostos para ficar no Brasil. Quando o negócio não ficou mais viável, ela simplesmente jogou tudo para o alto e deixou todos os funcionários na mão. São pessoas que há décadas estavam na empresa", diz.

'Tive sorte'

Já Sergio Soares, de 51 anos, teve um pouco mais de sorte: assim que saiu da Ford em 2019, conseguiu se aposentar. Para ele, contou o período de insalubridade, reconhecido pelo INSS. "Muitos colegas não tiveram a insalubridade reconhecida, e ainda estão tentando se aposentar. Estão parados, sem oportunidade. Eu tive sorte", explica.

Se a fábrica não fechasse, ele pretendia continuar trabalhando por mais cinco anos ? mesmo aposentado, viu sua renda cair consideravelmente. "Eu queria continuar para juntar dinheiro, fazer um pé de meia e terminar de pagar o financiamento da minha casa. Tive que adiantar tudo isso. O dinheiro da indenização serviu para pagar as prestações", diz ele, que por 25 anos atuou na Ford do ABC paulista.

Dos quatro ex-funcionários ouvidos pelo BBC News Brasil, apenas Paulo Francisco dos Santos, 44, conseguiu novo emprego como metalúrgico ? um contrato temporário de seis meses em outra montadora da região.

"Recebi a notícia ontem (18/01). Estou muito feliz. Foram dois anos de muita luta, de muita dificuldade, atrasei muitas contas em casa. Muitos dos meus colegas estão na mesma situação, vivendo de bicos, desesperados para conseguir algo estável, com carteira assinada", conta ele, que por 11 anos trabalhou na montadora americana.

Nesse período, Paulo trabalhou como entregador em uma empresa de comércio eletrônico ? precisou comprar um carro para a tarefa. O emprego era bem diferente da estabilidade e dos benefícios oferecidos pela Ford, que pagava participação nos lucros, plano de saúde e vale-alimentação.

"Como entregador, eu trabalhava 12 horas por dia, sem parar. Se eu não fosse no domingo, levava advertência e podia até ser dispensado. Era um ritmo maluco, no chicote mesmo", explica. Segundo ele, mesmo trabalhando arduamente, seus rendimentos como autônomo chegavam a R$ 2.800 "nos meses bons" ? na Ford, ele ganhava o dobro disso.

"Emprego de metalúrgico, registrado em carteira e com benefícios, é quase impossível de conseguir hoje em dia. Tive sorte", diz Paulo, que vai começar na nova empresa nos próximos dias.


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