Como legalização da maconha na África do Sul está excluindo produtores tradicionais
Por gerações, moradores de uma província da África do Sul ganharam a vida cultivando cannabis. Agora, à medida que o país avança na direção da legalização da maconha, esses pequenos produtores poderiam ter vantagens no horizonte. Mas não é bem assim que as coisas vêm acontecendo.
A viagem de Umthatha até a vila de Dikidikini, na província do Cabo Oriental, na África do Sul, é uma jornada pitoresca repleta de vistas infinitas, propriedades isoladas e estradas sinuosas que cortam colinas verdes ondulantes que podem ser facilmente confundidas com campos de milho - mas não são.
"Isso é maconha", diz meu guia local e ativista da cannabis Greek Zueni. "Todo mundo aqui cultiva. É assim que eles ganham a vida."
A cannabis, coloquialmente conhecida como "umthunzi wez'nkukhu", ou "sombra de galinha", é uma parte intrínseca de muitas comunidades rurais em Pondoland do Cabo Oriental e uma fonte vital de renda.
Em um conjunto de casas perto da margem do rio, encontramos alguns homens, mulheres e crianças cuidando de uma nova colheita. As mãos deles estão manchadas de verde por arrancarem as flores de maconha o dia todo.
O cheiro pungente de cannabis paira pesado no ar. Eles fazem piadas enquanto trabalham ? a colheita é um esforço em grupo. Uma pilha enorme de plantas verdes está ao lado deles, secando ao sol do meio-dia.
Para a integrante da comunidade Nontobeko, que pediu para omitir seu nome verdadeiro, cultivar cannabis é tudo o que ela sabe fazer. "Aprendi a cultivá-la aos 8 anos de idade", diz ela com orgulho.
"A cannabis é muito importante para nós porque é nosso meio de vida e fonte de renda. Tudo o que conseguimos é por meio da venda de cannabis. Não há empregos, nossos filhos estão sentados aqui conosco."
Embora a cannabis possa ser um modo de vida para essa comunidade, cultivá-la nessa escala é ilegal.
Existem mais de 900 mil pequenos agricultores nas províncias de Cabo Oriental e KwaZulu-Natal que cultivam cannabis há gerações.
Esses plantadores estavam muitas vezes contra a lei, mas a postura dura do governo em relação à cannabis parece prestes a mudar.
Tudo começou com uma decisão judicial histórica em 2018 que descriminalizou o uso privado, posse e cultivo de cannabis.
No início deste ano, durante seu discurso sobre o Estado da Nação, o presidente Cyril Ramaphosa disse que a África do Sul deveria explorar a indústria multibilionária global de cânhamo e cannabis, que ele disse ter potencial para criar 130 mil empregos muito necessários.
Embora isso possa ser uma boa notícia para as empresas comerciais, os produtores tradicionais de Cabo Oriental se sentem deixados para trás. O custo de obter uma licença para cultivar cannabis é muito caro para muitos.
"O governo precisa mudar sua abordagem e criar leis que sejam favoráveis aos produtores e aos cidadãos. Neste momento, as pessoas que têm licenças (para cultivar cannabis) são ricas", diz Zueni.
"Deveriam estar ajudando as comunidades a crescer para que possam competir com o mercado mundial. Aqui temos uma commodity crescendo tão fácil e organicamente. Não temos inveja, os ricos também devem entrar, mas, por favor, acomode os mais pobres", diz Zueni.
Fazendo vista grossa
No ano passado, o governo divulgou um plano central para a industrialização e comercialização da planta de cannabis. Ela valoriza a indústria local, que tem operado em grande parte nas sombras, em quase US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões).
O governo está buscando tornar a indústria de cannabis da África do Sul globalmente competitiva e produzir produtos de cannabis para o mercado internacional e doméstico.
A chave para o lançamento é a Lei de Cannabis para Fins Privados, que deve ser assinada durante o ano fiscal de 2022-23, que fornece diretrizes e regras para consumidores e para aqueles que desejam cultivar cannabis em suas próprias casas.
A lei prevê a legalização do cultivo de cânhamo e cannabis para fins medicinais, abrindo assim a indústria para investimentos e crescimento sérios. Espera-se também que esclareça as áreas legais ainda obscuras e, assim, forneça aos potenciais investidores clareza sobre o futuro do mercado sul-africano de cannabis.
Embora muito ainda não esteja claro, parece que o governo está comprometido em abrir o setor, porque as oportunidades econômicas são atraentes demais para serem ignoradas. Os planos têm amplo apoio público, com poucas vozes discordantes.
Embora a estrutura legal ainda esteja tentando acompanhar um mercado em rápida evolução, muitas empresas estão avançando na expectativa de que a lei termine por abrir o setor.
Tal como está, embora o uso privado tenha sido descriminalizado, ainda é ilegal comprar e vender cannabis e vários produtos derivados da planta.
No entanto, a julgar pela proliferação de lojas que vendem produtos de cannabis em todo o país, as autoridades já estão fazendo "vista grossa" para esse tipo de comércio.
Além desse mercado interno, empresas privadas podem cultivar cannabis medicinal com destino à exportação.
'Oportunidades de distribuição na Europa são grandes'
Uma empresa que está buscando capitalizar a cannabis medicinal é a Labat Africa Group. A empresa listada na Bolsa de Valores de Joanesburgo recentemente adquiriu o produtor de cannabis Eastern Cape Sweetwater Aquaponics.
O diretor da Labat, Herschel Maasdorp, diz que a empresa está passando por um crescimento significativo tanto na Europa quanto na África.
A empresa também foi listada na bolsa em Frankfurt, porque "a Alemanha é o maior mercado da Europa para distribuição de cannabis medicinal", diz ele.
"As oportunidades de distribuição na Europa são muito grandes. Além disso, é preciso levar em conta outros mercados. Há uma proposta que consolidamos em vários países diferentes, desde Quênia, Zâmbia, Uganda, Ruanda, Tanzânia, assim como no Zimbábue."
O comércio legal de cannabis no continente deve aumentar para US$ 7 bilhões (R$ 35,7 bilhões), à medida que a regulamentação e as condições do mercado melhorarem, diz o analista da Prohibition Partners, com sede em Londres.
Ele diz que os principais produtores da África até 2023 serão a Nigéria com US$ 3,7 bilhões (R$ 18,9 bilhões), a África do Sul com US$ 1,7 bilhão (R$ 8,7 bilhões), Marrocos com US$ 900 milhões (R$ 4,6 bilhões), Lesoto com US$ 90 milhões (R$ 460 milhões) e Zimbábue com US$ 80 milhões (R$ 409 milhões).
Em seu Relatório Global de Cannabis, a Prohibition Partners prevê um crescimento exponencial da indústria em todo o mundo. "As vendas globais combinadas de CBD, cannabis medicinal e de uso adulto atingiram US$ 37,4 bilhões (R$ 190 bilhões) em 2021 e podem chegar a US$ 105 bilhões (R$ 536 bilhões) até 2026."
Considerando a economia estagnada da África do Sul e o desemprego recorde, explorar a indústria da cannabis pode trazer grandes recompensas.
Para Wayne Gallow, da Sweetwater Aquaponics, incorporar produtores tradicionais na indústria é crucial para o desenvolvimento econômico no Cabo Oriental.
"O que queríamos alcançar com nossa licença não é apenas cultivar cannabis medicinal, mas usar essa licença para beneficiar todos no Cabo Oriental", disse ele à BBC.
Ele admite que os produtores mais tradicionais foram deixados para trás, à medida em que a legislação sobre cannabis progredia.
"A área de Pondoland era sinônimo de fornecimento de cannabis em toda a África do Sul", diz ele.
No entanto, as mudanças na lei tiveram um efeito "prejudicial" sobre os agricultores de Pondoland, porque significa que qualquer pessoa agora pode cultivar e consumir sua própria cannabis, de modo que eles não têm mais mercado para uma cultura anteriormente muito lucrativa.
Mesmo o cultivo de cannabis para exportação para medicamentos não é viável para pequenos agricultores, por causa dos custos exorbitantes. Requer uma licença da Autoridade Reguladora de Produtos de Saúde da África do Sul (SAHPRA), que custa US$ 1.465 (R$ 7.480).
Além da taxa de licença, para montar uma instalação de cannabis medicinal, você precisa de cerca de US$ 182 mil (R$ 930 mil) a US$ 304 mil (R$ 1,5 milhão), o que está além do alcance de muitos produtores tradicionais.
No entanto, há algumas notícias promissoras para os agricultores do Cabo Oriental. A variedade Pondoland ou Landrace da planta, que cresce tão abundantemente na região, mostrou alguns resultados preliminares encorajadores no apoio ao tratamento do câncer de mama.
A Sweetwater Aquaponics e o Conselho de Pesquisa Científica e Industrial (CSIR) estão atualmente realizando um estudo, e os cientistas estão otimistas de que a cepa produzirá bons resultados.
Ainda é cedo, mas se a variedade Pondoland for eficaz, isso pode ser o divisor de águas que os produtores tradicionais estão buscando desesperadamente.
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