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Justiça criminal do Japão precisa de reforma: Bloomberg Opinion

Noah Smith

13/12/2018 14h58

(Bloomberg) -- A polícia do Japão recentemente colocou o presidente da Nissan Motor, uma das maiores fabricantes de automóveis do país, atrás das grades. Carlos Ghosn, um executivo nascido no Brasil que tem cidadania francesa e libanesa, foi acusado de falsificar declarações financeiras e de sonegar US$ 44 milhões de renda pessoal.

Como explica meu colega da Bloomberg Opinion Joe Nocera, é improvável que algo parecido com a justiça seja feito no caso de Ghosn. Oficialmente, de acordo com a lei japonesa, um suspeito pode ser detido e interrogado durante 23 dias sem uma acusação. Durante esse período, ele pode ser interrogado por até oito horas por dia sem nenhum advogado presente. Não oficialmente, o período de detenção é muito maior, porque após os 23 dias, a polícia pode simplesmente prendê-lo novamente por um crime adicional e reiniciar a contagem - Ghosn já foi preso novamente. No fim das contas, como acontece com quase todos os suspeitos no Japão, ele provavelmente será forçado a assinar uma confissão, independentemente de ser culpado.

Muitos vão interpretar isso como um sinal da xenofobia japonesa, como se as corporações do Japão estivessem derrubando um estrangeiro que se tornou poderoso demais. Mas o Japão costuma fazer coisas parecidas com executivos nativos. Uma década atrás, o empreendedor da internet Takafumi Horie foi preso por uso abusivo de informações privilegiadas (embora tenha continuado afirmando sua inocência). Mais ou menos na mesma época, Yoshiaki Tsutsumi, um magnata dos setores ferroviário e hoteleiro, se declarou culpado e foi preso por fraude.

Para alguns, isso pode parecer justiça - responsabilizar os executivos corporativos por crimes de colarinho branco é algo bom. O problema é que o sistema de justiça do Japão está focado em forçar confissões, não em esclarecer se um suspeito está envolvido em irregularidades. Isso inevitavelmente leva a erros. Em 2008, um tribunal japonês reverteu a decisão de um tribunal inferior e declarou que três executivos de bancos japoneses não tinham infringido a lei. Mas a condenação equivocada havia chegado quase uma década antes - na época em que foram exonerados, os três já eram homens idosos, com a vida e a carreira arruinadas. Dois outros executivos já haviam se suicidado quando o banco foi investigado. Tais suicídios não são incomuns.

E a maioria das pessoas injustamente presas pelo injusto e arbitrário sistema de justiça do Japão não é rica nem poderosa. Em sua maioria, as pessoas que são intimidadas (ou espancadas) pela polícia japonesa para assinar confissões falsas são cidadãos comuns que foram presos e acusados porque a polícia e os promotores precisavam culpar alguém por um crime. A famosa taxa de condenação de 99 por cento no país não é um motivo de orgulho - é um sinal de que o estado de direito é sacrificado pelo desejo de manter a aparência de ordem.

Este sistema bárbaro e antiquado quase certamente tem consequências negativas para a economia do Japão. O estado de direito - não apenas manter a ordem, mas determinar a culpa ou a inocência de modo sistemático e justo - é extremamente importante para qualquer sistema econômico.

Em primeiro lugar, a ausência de um verdadeiro estado de direito no Japão muito provavelmente torna as empresas menos eficientes. Como a polícia e os promotores estão tão determinados a condenar qualquer um que seja acusado de um crime- e são tão facilmente capazes de fazer isso -, os executivos tendem a evitar tomar decisões econômicas difíceis, mas necessárias. Por exemplo, Nocera observa que Ghosn foi preso justo quando planejava fundir a Nissan com a antiga empresa dele, a Renault. A fusão não contava com o apoio do CEO da Nissan, Hiroto Saikawa, que Ghosn supostamente pretendia demitir. Saikawa denunciou Ghosn imediatamente depois que ele foi preso, o que levantou suspeitas de que a coisa toda seja apenas um golpe corporativo.

Em segundo lugar, o fraco estado de direito do Japão desanima o empreendedorismo. Um jovem empresário tem a opção de tentar montar uma nova empresa por conta própria ou tomar um caminho seguro e subir na hierarquia como assalariado. Mas se o sucesso simplesmente pintar um alvo nas costas de um empreendedor, o risco será tão alto que poucos abrirão empresas - ninguém quer acabar como Horie.

Em terceiro lugar, o fraco estado de direito impede que estrangeiros altamente qualificados queiram trabalhar no Japão. Durante anos, sob a liderança do primeiro-ministro Shinzo Abe, o Japão vem liberalizando suas leis de imigração. Mas até agora, a grande maioria de seus imigrantes tem sido trabalhadores pouco qualificados, em vez dos profissionais altamente produtivos, empresários e empreendedores que a liderança gostaria de receber. Parte disso se deve aos salários relativamente baixos do Japão e ao rígido sistema de contratação. Mas parte pode se dever a que os estrangeiros de elite não se sintam à vontade para viver sob a ameaça de um sistema de justiça injusto e arbitrário que poderia transformá-los de profissionais em prisioneiros a qualquer momento.

O Japão precisa, portanto, abraçar o estado de direito para fortalecer sua economia. Alguns de seus líderes entendem isso e têm avançado nesse sentido. O ex-primeiro-ministro Junichiro Koizumi, mentor de Abe, deu um passo importante nessa direção quando introduziu um sistema de júri na década de 2000. Mais recentemente, sob o comando de Abe, a legislatura japonesa aprovou uma lei que exige a gravação de interrogatórios policiais por crimes graves e a introdução de um sistema de delação premiada.

Mas é preciso fazer mais para se afastar do sistema de confissão coercitiva. O primeiro passo é mudar a lei que rege o período de detenção de 23 dias. Os suspeitos deveriam ter o direito de contar com a presença de um advogado o tempo todo e de poder recusar o interrogatório. Os juízes deveriam ser orientados a negar a maioria dos pedidos policiais por longos períodos de detenção, e os suspeitos deveriam poder pagar fiança. Todos os interrogatórios policiais deveriam ser gravados, não apenas os que envolvem crimes graves. Além disso, os suspeitos que forem exonerados deveriam ter o direito de processar por prisão ilegal na justiça civil e receber indenizações substanciais. Essas mudanças jurídicas levariam inevitavelmente a mudanças culturais - os promotores aprenderiam a elaborar casos em vez de confiar em confissões, e a polícia aprenderia a coletar provas em vez de simplesmente reunir os suspeitos de costume.

No governo Abe, o Japão vem avançando na reforma de seu sistema corporativo. Mas para que esses esforços de modernização sejam bem-sucedidos, o sistema jurídico e de justiça criminal também deve ser reformado. Nenhuma economia moderna pode se dar ao luxo de economizar no estado de direito.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial nem da Bloomberg LP e de seus proprietários.