Pandemia faz até 'Chicago boy' Guedes abrir cofres públicos
(Bloomberg) — Como costuma ocorrer em momentos de crise, líderes globais recorreram a medidas de aumento de gastos que fazem parte do receituário de John Maynard Keynes na hora de lidar, nos tempos atuais, com os efeitos da pandemia do novo coronavírus. Mas talvez nenhum deles tenha feito isso com mais relutância do que o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Ex-aluno da Universidade de Chicago, um dos principais ninhos de formação liberal, Guedes se tornou um queridinho dos mercados com a promessa de restaurar o equilíbrio fiscal das finanças brasileiras. No entanto, está prestes a entregar o maior déficit fiscal da história em 2020. Ele já deixou claro que quer voltar logo ao seu plano A, apesar de até mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI) vir alertando o mundo sobre os riscos da retirada prematura de incentivos fiscais concedidos durante a pandemia.
O cenário parece comprovar o que já disse um outro economista liberal, ganhador do prêmio Nobel Robert Lucas, depois da crise global de 2008: "Todo mundo é um keynesiano nas trincheiras."
Guedes, no entanto, é um defensor ferrenho de privatizações e ajustes fiscais e discípulo fervoroso de Milton Friedman, frequentemente visto como o contraponto a Keynes no mundo econômico. O ministro foi escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para executar a tarefa de reverter anos seguidos de déficits fiscais.
Se render à realidade
O rombo fiscal brasileiro disparou na última década à medida que a economia mergulhou numa recessão. O desarranjo fiscal custou ao país a perda do grau de investimento. Este ano, o déficit está estimado em 11,5% do PIB, sendo que algumas previsões são de que o valor possa ficar ainda maior.
Como no resto do mundo, o governo brasileiro teve que direcionar recursos para famílias, empresas e governos regionais para amortecer o impacto da pandemia. A maior economia da América Latina provavelmente encolherá mais de 9% este ano, segundo o FMI. "Não acho que Guedes tenha se tornado keynesiano, mas teve que se render à realidade", diz Julia Braga, professora de economia da Universidade Federal Fluminense e diretora da Associação Keynesiana Brasileira. "A economia do Brasil já estava muito fraca. Há uma enorme folga no mercado de trabalho. E nenhum gestor vai investir onde não há demanda."
O Brasil tem o segundo maior número de casos de coronavírus do mundo, depois dos EUA, e o governo Bolsonaro é responsabilizado por não levar o surto a sério o suficiente. Guedes, em março, disse que poderia aniquilar o vírus apenas direcionando R$ 5 bilhões para o Ministério da Saúde. Quatro meses e mais de R$ 500 bilhões em gastos públicos depois, ele mudou o discurso.
O ministro reage aos críticos que chamaram a atenção para sua mudança de rumo. Guedes diz que sua disposição de recorrer a tradições econômicas diferentes das de sua formação é prova de uma abordagem flexível e pragmática. Segundo ele, "um bom economista não tem dogma".
"O próprio Keynes disse que a economia é como uma caixa de ferramentas, você ataca seu problema com as ferramentas certas", disse o ministro à CNN Brasil. "Se o seu problema é o desemprego em massa, você precisa atacá-lo de frente." Em outra ocasião, Guedes disse a parlamentares que está profundamente familiarizado com o trabalho da escola keynesiana: "Eu tenho uma história inteira de leitura desses economistas em seus idiomas originais. Foi muito fácil fazer uma inversão de marcha."
Guedes, contudo, foi levado a fazer mais flexibilização fiscal do que esperava originalmente. A principal ação do governo contra a crise foi o pagamento de um auxílio emergencial para trabalhadores informais. O valor foi inicialmente fixado em R$ 200, com um custo total de R$ 15 bilhões. Mas o Congresso aumentou o valor para R$ 500 e, então, para evitar uma derrota política e receber crédito pelo o que acabou sendo um programa popular, Bolsonaro ordenou que Guedes subisse o montante para R$ 600.
O ministro também relutou em dar ajuda financeira a estados e municípios sem algumas medidas de ajuste fiscal como contraponto. Mas depois de perder uma série de batalhas com o Congresso e os governadores, a transferência de fundos chegou a quase R$ 170 bilhões.
Virar abóbora
Uma preocupação dos investidores com gastos associados à política keynesiana, especialmente em economias emergentes como o Brasil, é que isso faça com que os preços fiquem fora de controle. Isso está longe de ser uma questão acadêmica no Brasil, que teve hiperinflação de cerca de 2.500% nos anos 90. Por enquanto, contudo, os mercados não parecem assustados.
O real sofreu um baque nos primeiros meses da pandemia, forçando o Banco Central a intervir, mas se estabilizou em uma faixa de variação nas últimas semanas. Uma razão pode ser que grande parte do mundo está seguindo um manual semelhante. Isso ocorre em governos de várias correntes ideológicas - com o apoio do FMI, historicamente um defensor de políticas fiscais rígidas. No mês passado, a diretora-gerente do Fundo, Kristalina Georgieva, pediu aos países que gastem o que puderem e tenham cuidado ao retirar o apoio muito rapidamente.
Guedes, no entanto, deixou claro que ele mal pode esperar para colocar Keynes de volta na prateleira. Embora exista um grande déficit em 2020, "tudo isso será revertido no próximo ano", disse ele à CNN Brasil. "Em 31 de dezembro, a carruagem se transforma em abóbora."
Depois de entregar uma ampla reforma da Previdência em 2019, seu primeiro ano no cargo, Guedes prometeu avançar no plano de privatizações. Ele também planeja substituir o Bolsa Família, programa de assistência social criado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e transferir empregos para a economia formal, reduzindo os custos para os empregadores.
Não está claro se o vírus ou o próprio Bolsonaro vão permitir o retorno a essa agenda tão brevemente assim. Bolsonaro, cercado por ministros que defendem o aumento do investimento público como forma de impulsionar o crescimento, tem prazer em estender medidas de estímulo e já demonstrou pouco entusiasmo por ações de austeridade. Julia Braga diz que houve uma mudança de humor. Depois de anos no deserto, os keynesianos que apoiam os gastos públicos estão de volta à conversa nacional. Antes da pandemia, "estávamos conversando entre nós", disse ela. "Agora o debate pode acontecer."
Procurado, o Ministério da Economia não comentou o assunto.
©2020 Bloomberg L.P.
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