MP de Bolsonaro amplia jornada e reduz descanso de médicos e enfermeiros
Ao permitir aumento da jornada dos profissionais da saúde e redução do tempo de descanso, a medida provisória 927, editada pelo presidente Jair Bolsonaro no domingo (22), tende a deixar enfermeiros sobrecarregados e ainda mais expostos ao novo coronavírus. A MP permite que esses trabalhadores façam jornadas sem limites de horas, com descanso que pode ser reduzido a 12 horas, enquanto durar o estado de calamidade pública.
A reportagem procurou o Ministério da Economia para questionar os pontos da MP, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. A resposta será incluída assim que for enviada.
Apesar de se referir a profissionais da saúde, o que inclui médicos, a mudança feita pela MP afeta sobretudo os enfermeiros, que costumam trabalhar em um esquema de 12 horas de trabalho por 36 horas de folga. No caso dos médicos, o impacto seria menor, já que a maioria trabalha como autônomo, mesmo quando presta serviço a hospitais, e fazem plantões de 24 horas seguidas —ou mais. A MP valida esses longos plantões, que deveriam ser exceção, e pode provocar um efeito cascata em outros tipos de contratos.
Essa mudança vai gerar um cansaço físico e mental que pode provocar queda de qualidade, erros cometidos pelos profissionais da saúde e até uma baixa na imunidade, agravando o risco de contaminação pelo novo vírus."
Ângelo Fabiano Farias da Costa, presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT)
Preocupado com a falta de equipamentos de proteção individual, como máscaras e luvas, para enfrentar a pandemia, um enfermeiro que atua em um pronto-socorro no interior de Minas Gerais afirmou que se preocupa com a possibilidade de aumento da jornada. "Um plantão de 12 horas já é muito longo", disse.
Outra enfermeira que atua em São Paulo disse que os profissionais não têm condições físicas e psicológicas para suportar um plantão, por exemplo, de 24 horas, principalmente durante a pandemia da Covid-19. "O nosso maior medo é levar a doença para casa."
"O enfermeiro e o técnico ficam o tempo todo na beira do leito. Qualquer alteração, temos que estar atentos. O paciente vai ficar em risco, e o profissional também [com essa mudança promovida pelo governo]", afirmou o presidente do Sindicato dos Enfermeiros de Minas Gerais, Anderson Rodrigues. Segundo ele, a categoria está se articulando para pressionar os deputados a barrar a MP no Congresso.
O presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Gutemberg Fialho, concorda. "Esse aumento de jornada e essa redução de folga levam à sobrecarga e ao estresse. O profissional não consegue ter o descanso reparador e fica mais suscetível a adoecer", afirma. A medida é perigosa, continua ele, principalmente em um momento de pandemia, quando todos estão mais suscetíveis à infecção.
A contaminação por coronavírus de profissionais de saúde tem sido um dos problemas enfrentados por países onde a pandemia está um pouco mais avançada. Na Itália, 23 profissionais da saúde morreram por conta do novo vírus. Na Espanha, cerca de 4.000 médicos e enfermeiros estão infectados pela Covid-19.
'MP da Fome'
A publicação da medida provisória no domingo gerou críticas de procuradores, juristas, organizações sindicais e parlamentares e foi apelidada, nas redes sociais, de "MP da Morte" e "MP da Fome". Após essa repercussão, Bolsonaro revogou, na segunda-feira (23), um artigo da MP que permitia a suspensão dos contratos de trabalhos e dos salários por até quatro meses.
Os demais pontos da medida provisória, no entanto, estão em vigor, e alguns deles retiram direitos dos trabalhadores em tempos de pandemia, mesmo diante da perspectiva de uma grave crise econômica no Brasil.
A Repórter Brasil mostrou que trabalhadores infectados pelo vírus no ambiente de trabalho perdem estabilidade e podem ser demitidos —em caso de morte, a MP dificulta o recebimento de indenização por danos morais.
24h de trabalho, 12h de descanso
Outra das mudanças previstas no texto permite não apenas o aumento da jornada para enfermeiros, mas também que isso seja feito por meio de um acordo individual por escrito sem a participação do sindicato da categoria.
"A MP possibilita um regime de 24 horas de trabalho, por exemplo, com 12 de descanso, o que é extremamente preocupante, ainda mais considerando que é uma atividade insalubre", afirmou Farias da Costa, da associação dos procuradores do trabalho. "A gente sabe que precisa flexibilizar a jornada em momento de crise, mas chegará um momento de estafa mental do pessoal da saúde. Será que dar uma carta branca para o aumento da jornada é o caminho certo?", questiona.
A medida provisória também fala das horas extras desses profissionais e estabelece que elas podem ser pagas (ou compensadas com folgas) em um prazo de até um ano e meio, que começa a valer quando terminar o estado de calamidade pública. Hoje, o banco de horas individual é de seis meses, podendo ser ampliado para um ano, segundo o advogado trabalhista Fernando José Hirsch, sócio do escritório LBS Advogados.
Os contratos de trabalho de enfermeiras e técnicas em enfermagem são de carga horária de 40 horas semanais: ou com cinco dias trabalhados na semana em turnos de 8 horas ou com plantões de 12 horas, seguidos de descanso de 36 horas.
Pejotização de médicos
Já no caso dos médicos, é comum que sua contratação não seja feita pela CLT, mas por meio de cooperativas médicas que prestam serviço para hospitais públicos e privados. Uma resolução do Conselho Regional de Medicina de São Paulo autoriza que sejam feitos plantões de até 24 horas, mas uma médica ouvida pela reportagem diz que são comuns jornadas maiores. "Quando eu trabalhava mais de 24 horas, demorava três dias para me sentir descansada."
Pela CLT, é possível que médicos façam plantões de 24 horas, mas com descanso de 72 horas, dependendo do que foi acertado no acordo coletivo entre sindicatos patronais e de empregados. Sobre as mudanças feitas pelo governo por conta da pandemia, a plantonista diz que "vai ter um monte de profissional da saúde doente, porque 12 horas é muito pouco para descansar de um plantão de 24 horas."
Segundo um infectologista do interior de São Paulo, muitos médicos costumam aderir à "pejotização" porque têm mais flexibilidade e rendimentos. Ao fazerem essa opção, porém, ficam sem direitos trabalhistas —o que, agora, em momento de crise, pode deixá-los mais vulneráveis a jornadas exaustivas, já que não estão sujeitos a uma regulação de carga horária.
A contratação formal, por concurso ou CLT, na opinião do infectologista, costuma resultar em profissionais mais capacitados, porque essas modalidades garantem descansos e treinamento, que neste momento são "vitais para o bom desempenho na profissão".
A solução, na opinião do presidente da federação dos médicos, não passa por aumentar a jornada. "É preciso contratar mais profissionais e não esgotar fisicamente quem já está exposto". Fialho também critica o fato de a MP ter sido editada pelo governo sem diálogo com a categoria.
Novos e mais médicos
"O argumento de que não tem gente suficiente não é válido. Se não tem gente suficiente, capacita pessoal, chama gente de fora", disse Valdete Souto Severo, presidente da Associação de Juízes para a Democracia (AJD). "O que não é razoável é que o governo diga que nossos escudos contra a pandemia poderão ficar 14 horas, 15 horas em ambiente contaminado. Na perspectiva sanitária e humana, essa mudança é um absurdo."
Contratar mais profissionais permitiria aumentar o revezamento entre trabalhadores —em vez de aumentar a jornada, na avaliação de Farias da Costa, procurador do trabalho. Assim, os enfermeiros e médicos estariam mais descansados, protegidos e concentrados no atendimento aos contagiados pelo coronavírus.
Países com o sistema de saúde sobrecarregado por conta da pandemia adotam essa estratégia. Caso da Itália, que foi o primeiro país europeu a receber médicos cubanos.
No domingo (22), 53 profissionais de Cuba, com experiência prévia em outras epidemias como a do ebola, chegaram à Lombardia, região italiana mais afetada pela Covid-19. Atualmente, o governo cubano mantém médicos em mais de 60 países. Eles já atuaram no Brasil, mas com a eleição do presidente Bolsonaro —e suas críticas recorrentes ao país— Havana acabou retirando os 8.332 profissionais que atuavam em áreas remotas e pequenas cidades brasileiras.
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