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Supermercado é co-responsável por atos de terceirizado, dizem especialistas

Abinoan Santiago

Colaboração para o UOL, em Florianópolis (SC)

20/11/2020 20h13

Casos de violência ou racismo praticados por funcionários terceirizados podem resultar em punições para a empresa que contrata e para a que presta os serviços. É o que apontam especialistas ouvidos pelo UOL, a respeito da morte de João Alberto Silveira Freitas em um supermercado Carrefour, em Porto Alegre (RS). Ele foi espancado por um segurança terceirizado e um policial militar temporário que fazia bico no estabelecimento.

Apesar de a legislação brasileira não impor um valor mínimo ou máximo para danos de reparação dessa natureza, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) com frequência determina indenização entre 200 a 400 salários mínimos, diz a advogada Aline Escarelli, especialista em direito civil.

Essa seria a única punição possível na esfera cível. Na criminal, quem responderia seriam os dois suspeitos de terem asfixiado a vítima. Não existe previsão de multa.

Indenização determinada no Código Civil

A previsão de indenização está no artigo 927 do Código Civil, apontam juristas consultados pela reportagem. O trecho diz que "aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Apesar disso, não há uma cifra fixada a ser paga.

"Não existe valor mínimo e máximo para indenização. O valor é com fundamento sempre no convencimento e conta com o prudente arbítrio do julgador", afirma Aline Escarelli.

A advogada Ahirana Serrão diz que a estimativa de valor é subjetiva.

É complicado estimar, mas existem jurisprudências para isso. Vai ser levado em conta para o cálculo a expectativa de vida desse homem, se era provedor da família, quantidade de filhos e renda familiar.
Ahirana Serrão

De quem é a responsabilidade e quem paga

Segundo especialistas em direito civil, tanto o supermercado quanto a empresa de segurança podem sofrer pedidos de indenização por terem responsabilidade subsidiária, isto é, dividida sobre algum fato dentro do estabelecimento, o que é previsto na Lei da Terceirização (13.429/17).

Em nota, o Carrefour informou que rompeu o contrato com a terceirizada, o que para especialistas, não livra o supermercado da culpa.

A responsabilidade da empresa contratante persiste, independentemente se for uma atividade meio ou fim. Neste caso de Porto Alegre, era uma atividade meio, já que a finalidade do supermercado é a venda de produtos. Há uma responsabilidade subsidiária da rede. Ela não se exime de responder na esfera civil nas ações de indenizações que deverão ser movidas. Existe jurisprudência consolidada.
Maria Carolina Monteiro, advogada presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados (OAB) do Amapá

A supervisão é do supermercado

Ao analisar as imagens do caso, a advogada Alinne Nauane Espíndola, reforça a dupla responsabilidade das empresas, pois apesar de os dois prestadores de serviços serem apontados como autores da morte, ambos deveriam ser supervisionados por um funcionário do supermercado.

Existe responsabilidade da empresa na atuação do vigilante porque foi uma ação que aconteceu dentro de suas dependências e sob a supervisão de seus funcionários, tanto que em um dos vídeos, existe a intervenção de uma funcionária do Carrefour da ação para não filmar. Os funcionários poderiam ter interferido porque assistiram até o final. Houve a permissividade da supervisão.
Alinne Nauane Espíndola

Aline Escarelli ainda aponta que os supermercados, ao celebrarem contrato com qualquer empresa terceirizada, são obrigados a fiscalizar a maneira como o serviço chega ao cliente e no caso de segurança, verificar periodicamente se os prestadores passam por reciclagem.

Formação dos seguranças

A tomadora do serviço tem a obrigatoriedade de fiscalizar o contrato, mas na prática, acaba não existindo isso. O supermercado contrata e deveria ver se tem curso de formação desses seguranças, exames periódicos dos prestadores e, no caso da vigilância, a reciclagem. A contratante deve verificar se são cumpridos esses pontos
Aline Escarelli

Outros casos com supermercados

Não é a primeira vez que funcionários de supermercados, terceirizados ou não, envolvem-se em casos de repercussão e geram revolta.

Em 2019, Pedro Gonzaga, de 19 anos, morreu ao levar uma 'gravata' de um dos seguranças em uma unidade da rede Extra, no Rio de Janeiro.

Em agosto deste ano, em outra unidade do Carrefour, em Recife, um prestador de serviços teve um mal súbito e morreu dentro do supermercado. Para manter o espaço aberto ao público, guarda-chuvas foram usados para cobrir o corpo.

Além desses casos extremos de mortes, foram registrados outros problemas em São Paulo e Curitiba (PR).

Em um deles, em julho do ano passado, um adolescente de 17 anos teria sido torturado por seguranças ao supostamente tentar furtar uma barra de chocolate em uma unidade do supermercado Ricoy na zona sul de São Paulo.

Em setembro de 2019, um vídeo flagrou um homem agredido com arma de choque. Ele chora e treme com o espancamento, ocorrido em uma unidade do Extra, no bairro Morumbi.

Em Curitiba, uma professora negra teve que mostrar a bolsa a funcionários de um supermercado que a acusavam de furto. O caso ocorreu em março deste ano. A vítima era uma professora doutora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

É o racismo estrutural, diz pesquisador

Para o professor pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR, Paulo Vinícius Baptista, o que acontece dentro dos supermercados é reflexo do que ocorre fora dos estabelecimentos, que é um racismo estrutural que ainda persiste na sociedade.

Há uma visão sobre as pessoas negras de não serem confiáveis, como alguém que vai para furtar os estabelecimentos comerciais. Os policiais fazem essa leitura, e os seguranças também a incorporam. Houve o assassinato no Rio de Janeiro e agora este de Porto Alegre. Eles são resultado de uma desconfiança de que a pessoa negra é perigosa, algo que nasce de uma estrutura social que alimenta uma mentalidade racista.
Paulo Vinícius Baptista

Sempre colocam o negro em uma posição de submissão. Sempre fomos julgados e marginalizados à mercê dessa sociedade capitalista. Nesses lugares, como supermercados e shoppings, você é aquilo que possui. Seu poder de compra faz ser visto com bons olhos, e no imaginário brasileiro o negro é que tem o menor poder aquisitivo.
Carolina Lazameth, historiadora e ativista social em causas negras

O que o Carrefour diz

Em nota, o Carrefour informou que "todo o resultado de lojas no Brasil nesta sexta-feira (20) será revertido para projetos de combate ao racismo no país".

A rede ainda afirmou que neste sábado (21) as lojas abrirão duas horas mais tarde no país para que ocorra o reforço do "cumprimento das normas de atuação exigidas pela empresa a seus funcionários e empresas terceirizadas de segurança".

O responsável pelo estabelecimento em Porto Alegre no momento do crime foi demitido, disse o Carrefour.

Também em nota, o Grupo Vector, terceirizada que prestava o serviço ao Carrefour, diz que "não tolera nenhum tipo de violência, especialmente as decorrentes de intolerância e discriminação" e que "seus colaboradores recebem treinamento adequado inerente as suas atividades,

O UOL procurou a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) e questionou sobre a interpretação da entidade quanto a responsabilidade entre os estabelecimentos e as terceirizadas, mas a associação não comentou.