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Fornecedor da Nestlé usa carne de gado criado em terra indígena disputada

Fazenda dentro do território Mỹky, em Brasnorte - Typju Myky, Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky
Fazenda dentro do território Mỹky, em Brasnorte Imagem: Typju Myky, Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky

Fábio Zuker, Elisângela Mendonça e Andrew Wasley

Do Joio e o Trigo e Bureau of Investigative Journalism

22/09/2022 08h00

Grandes empresas multinacionais como Nestlé estão envolvidas na compra de carne bovina produzida em um território disputado pelo povo indígena Myky, em Mato Grosso.

Qual o problema disso? Essa atividade aumenta as preocupações quanto ao impacto do comércio de carne bovina sobre populações indígenas e sobre a maior floresta tropical do mundo —fundamental na luta contra a crise climática. Além disso, colocam em xeque as promessas do setor de monitorar cadeias de suprimento e combater o desmatamento.

Como é a terra indígena? De um lado da cerca, em meio a uma floresta densa, o povo Myky cultiva uma diversidade de alimentos, como a mandioca, o pequi e o cabriteiro. Do outro, apenas descampados de terras que foram tomadas dos indígenas, onde os fazendeiros criam gado.

Xinuxi Myky, o ancião da aldeia, relembra que a região inteira era coberta por florestas, e que várias aldeias prosperavam. Agora, o território Myky está tomado por fazendas. "Nesse pasto, onde os brancos estão morando, também era nossa aldeia, mas agora eles estão criando gado."

A terra é indígena? Embora o povo Myky tenha vivido ali durante séculos, o território Menku —como é chamado onde eles vivem, na fronteira entre a Floresta Amazônica e o Cerrado, em Mato Grosso— só foi reconhecido pelo governo brasileiro nos anos 1970. Entretanto, o processo de demarcação do território ancestral Myky não incluiu os estudos técnicos necessários. Por isso a demarcação final da terra indígena Menku permanece sob disputa; o povo Myky clama pelo reconhecimento e demarcação da integridade de seu território e cabe ao governo federal a desintrusão dos fazendeiros.

Existem estudos que reconhecem a totalidade do território Myky. No entanto, o processo de demarcação está sendo contestado na Justiça e atualmente está congelado.

Xinuxi  - Typju Myky, Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky - Typju Myky, Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky
'Nesse pasto, onde os brancos estão morando, também era nossa aldeia, mas agora eles estão criando gado', Xinuxi Myky
Imagem: Typju Myky, Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky

Esta reportagem traz resultados de uma investigação minuciosa conduzida por O Joio e O Trigo em parceria com o Bureau of Investigative Journalism, a NBC News e o The Guardian. Aqui revelamos que o gado criado ilegalmente na região disputada da terra indígena Menku foi parar em um abatedouro conectado a uma complexa cadeia de suprimentos voltada ao mercado global, que inclui a gigante de alimentos e bebidas Nestlé. A empresa usa carne bovina em suas papinhas para bebê, rações para animais de estimação e temperos.

Há outras empresas envolvidas? Outras grandes companhias nesta nebulosa cadeia são McDonald's e Burger King.

O McDonald's afirmou à reportagem que entre 2021 e 2022 não teve entre seus fornecedores de carne fazendas sobrepostas ao território Menku. O Burger King afirmou que não discute seus fornecedores estratégicos.

O abatedouro em questão é de propriedade da Marfrig, a segunda maior companhia de carne bovina do Brasil, que alega não comprar gado de fazendas que ocupam ilegalmente terras indígenas ou que estejam envolvidas em desmatamento ilegal.

Atuação na área indígena disputada: Porém, esta reportagem mostra que centenas de cabeças de gado criadas dentro do território indígena Menku foram levadas ao abatedouro da Marfrig em Tangará da Serra (MT), que figura na lista de fornecedores da Nestlé. A investigação aponta também que vários dos mais de 700 fornecedores de gado da Marfrig analisados estão vinculados a mais de 150 quilômetros quadrados de desmatamento nos últimos anos. Por e-mail, a Marfrig afirmou que não poderia responder a essa alegação sem informações mais detalhadas.

Fazendeiros contestam território indígena: Fazendeiros que invadiram terras dos Myky contestam na Justiça a demarcação do território, com apoio de alguns políticos locais. A prefeitura de Brasnorte, onde está localizada a Terra Indígena Menku, ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a demarcação do território reivindicado pelos Myky.

Há conflitos na região? A disputa coloca em perigo os cerca de 130 indígenas que ali vivem. André Lopes, antropólogo que trabalha com o povo Myky, diz que a comunidade é ameaçada frequentemente. "As relações com os fazendeiros da região são instáveis, imprevisíveis, e podem ser de perseguição e hostilidade aberta em alguns casos", afirma.

Ele acrescenta que o agronegócio também prejudica a capacidade dos Myky de se alimentarem, restringindo áreas de pesca e caça e contaminando a terra com agrotóxicos perigosos.

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Moradores da comunidade Myky brincam no rio Papagaio (MT)
Imagem: Typju Myky, Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky

Imagens de satélite mostram atividades: A Marfrig é um dos maiores frigoríficos do Brasil, com 32 mil funcionários e receita de cerca de US$ 15 bilhões em 2021. Em suas operações na América do Sul, a empresa abate 5 milhões de cabeças de gado por ano.

Detalhes sobre seus fornecedores são mantidos sob sigilo, mas nossa investigação obteve informações sobre algumas das centenas de propriedades na Amazônia e no Cerrado das quais a Marfrig compra gado para sua unidade em Tangará da Serra.

Uma análise de imagens de satélite para dados de desmatamento revelou perda de floresta dentro dos perímetros de muitas dessas fazendas ao longo de um período de seis anos. Ao cruzar essas imagens com registros públicos identificamos duas propriedades sobrepostas ao território indígena Menku.

Uma destas, a fazenda Cascavel, transportou gado diretamente para a Marfrig em 2019, de acordo com documentos obtidos pelo Joio. Procurada diversas vezes, a fazenda não respondeu às solicitações de comentários da reportagem.

Para onde vai a carne? Registros alfandegários revelam que o abatedouro de Tangará da Serra exportou quase R$ 6 bilhões em produtos de carne bovina desde 2014 a vários compradores. Os destinos incluem China, Alemanha, Espanha, Itália, Países Baixos e Reino Unido.

Área ainda não homologada: A Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema) confirmou que as fazendas identificadas pela reportagem estão localizadas dentro do território Myky, mas disse que as propriedades não são consideradas irregulares, já que a terra indígena ainda não foi homologada.

Constituição protege terras: Cristina Leme, analista jurídica sênior do think tank Climate Policy Initiative, não vê fundamento para o argumento: "A Constituição protege todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, independentemente da etapa de regularização", afirma

O que diz a Marfrig? A Marfrig afirmou à reportagem que apenas considera terras indígenas aquelas que receberam a aprovação da Presidência da República.

O que diz a Nestlé? A Nestlé afirmou à reportagem que vem excluindo a Marfrig de sua lista de fornecedores de carne desde 2021, e que isso estará refletido na atualização dessa lista.

A corporação suíça informou também que 99% da carne usada em seus produtos é "avaliada como livre de desmatamento", e que está tomando mais medidas para garantir que carne da Marfrig não venha a compor sua cadeia de fornecedores.

O que diz a Funai? Procurada, a Funai não respondeu às questões enviadas pela reportagem.

Definição sobre terra indígena está no STF: O processo da disputa pela terra dos Myky agora está no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma decisão preliminar recente foi favorável à comunidade com relação aos fazendeiros. Mas, conforme a assessoria de comunicação do STF informou ao Joio, o caso ainda não está encerrado.

No Brasil, o registro de terras em áreas rurais é autodeclaratório. Como Ricardo Pael, procurador do MPF em Mato Grosso, diz, "qualquer um pode declarar ser proprietário. O que deve ser feito é uma análise célere pelos órgãos competentes para averiguar a legalidade daquela autodeclaração."

Para Ricardo Carvalho, da Operação Amazônia Nativa (Opan), a autodeclaração de propriedades rurais está tendo seu uso deturpado. "Deveria ser para uso e ocupação do solo, mas está sendo utilizada para burlar dano ambiental."

Esta reportagem foi realizada com apoio da Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center