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Economia

Suspeitas de fraude, Uber e 99 deixam de pagar por uso de vias de São Paulo

No final de setembro, Uber e 99 conseguiram uma liminar para deixar de pagar a Prefeitura de São Paulo pelo uso das vias da cidade. A cobrança, em vigor desde 2016, foi um ponto central para a regularização deste tipo de transporte na maior cidade do país. Antes disso, os aplicativos viviam em guerra aberta contra os táxis.

A decisão de suspender os pagamentos foi tomada por desembargador do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, cúpula do Judiciário no estado. A ação foi movida por uma entidade chamada Confederação Nacional de Serviços. Uber e 99 negam qualquer relação com o processo, mas são diretamente beneficiadas pela decisão. A prefeitura diz que está estudando os recursos cabíveis.

Em 2022, a cobrança rendeu R$ 241 milhões a São Paulo. Para os aplicativos, a economia é significativa, já que 80% das suas atividades no país estão na cidade.

Em dezembro do ano passado, Uber e 99 foram acusadas na CPI dos Aplicativos, da Câmara Municipal de São Paulo, de fraudar dados para pagar menos do que deveriam. A partir deste ano, a prefeitura passou a exigir auditoria independente nos dados de quilômetros rodados, o que também foi suspenso pela liminar.

Em nota enviada ao UOL, a Uber disse que "não há nenhum pagamento em aberto com o município paulistano, reitera que segue a legislação brasileira e que efetua todos os pagamentos devidos em conformidade com a regulação local". Também disse que "a CPI foi encerrada com conclusões vazias".

Já a 99 disse que "sempre atendeu a regulação municipal existente em São Paulo acerca do preço público, efetuando todos os recolhimentos devidos e prestando todas as informações à Secretaria da Fazenda".

O que aconteceu

A decisão é liminar (isto é, urgente e provisória) e pode ser modificada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) ou pelo próprio Órgão Especial do TJ-SP, colegiado de cúpula que reúne os desembargadores mais antigos da corte.

Apps de transporte pagavam pelo uso das vias de São Paulo desde 2016, quando foram regulamentados na cidade. Na época, havia uma forte oposição de taxistas, que pagam alvarás para poder circular. Já para os apps, foi estipulado um valor por quilômetro rodado. Na época, a Uber celebrou.

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O valor em vigor era de R$ 0,12 por quilômetro. No ano passado, a arrecadação da cidade com a cobrança foi de R$ 241 milhões.

O pagamento era autodeclarado, ou seja, os apps diziam quantos quilômetros rodaram em São Paulo e faziam o pagamento.

Em dezembro de 2022, a CPI dos Apps acusou Uber e 99 de fraudar os dados para pagar menos. Segundo o relatório final da comissão, as empresas deixavam de cadastrar motoristas, excluindo os quilômetros rodados por eles das contas. Pelo menos 2.600 veículos foram identificados e apreendidos nessas condições. Com base nesse número, os vereadores estimaram que os apps deixaram de pagar R$ 17 milhões por ano à prefeitura.

Em razão das descobertas da CPI, a prefeitura passou a exigir uma auditoria anual nos dados repassados pelos apps. A primeira delas, relativa a 2022, deveria ter sido enviada em julho deste ano. Segundo a prefeitura, a Uber "entregou parcialmente os relatórios" e a 99 "não encaminhou a documentação".

Neste ano, a prefeitura expandiu a exigência das auditorias para os anos de 2018 a 2021. Para o Executivo, a regra era "uma oportunidade" para os apps "demonstrarem a correção dos pagamentos realizados". O primeiro prazo venceria em julho de 2023.

Nesse contexto, em junho deste ano, a Confederação Nacional de Serviços entrou com uma ação para suspender a cobrança pelo uso das vias públicas. Também pediu o fim das auditorias nos dados.

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A entidade é autora da ação por uma razão processual. Como se tratava de questionar o regulamento municipal sob alegação de incompatibilidade com a Constituição Estadual de São Paulo, só uma entidade poderia propor a ação, não uma empresa privada, embora Uber e 99 sejam os beneficiários.

O caso foi a julgamento e, em 22 de setembro, a cobrança foi suspensa por liminar. Os apps pararam de fazer os pagamentos em seguida.

Para o desembargador Fábio Gouvêa, que concedeu a liminar, a cobrança representa uma taxa, já que a prefeitura estipulou condições para que os carros das empresas de app possam rodar em São Paulo. E taxas só podem ser criadas por lei, o que não ocorreu — a regra foi instituída por decreto.

Já a prefeitura alega que não cobra uma "taxa", mas um "preço público", outra categoria prevista no ordenamento jurídico. No processo, o Executivo municipal diz que o "preço público leva em consideração o impacto urbano e financeiro do uso do viário pela atividade privada".

Diante de tal natureza tributária, parece que era imprescindível que a instituição [da cobrança] tivesse se dado por lei, e não por decreto, e que houvesse algum serviço sendo prestado ou, ao menos, posto à disposição, o que, a princípio, não se verifica.
Desembargador Fábio Gouvêa, do Órgão Especial do TJ-SP

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Prefeitura vê 'má-fé' da Uber

A Prefeitura de São Paulo, em sua defesa, disse que a Uber age de má-fé com as ações judiciais — além do caso capitaneado pela Confederação Nacional de Serviços, o app também está processando a cidade para impedir as auditorias dos anos anteriores.

No processo sobre as auditorias, os advogados da cidade informaram que a Uber e a capital paulista assinaram um acordo em outubro de 2022 para "aprimorar" a cobrança por quilômetro rodado.

Antes do acordo, a cobrança era progressiva — quem rodava mais, pagava mais. Os preços iam de R$ 0,10 a R$ 0,36 por quilômetro. A Uber, que opera o maior app de transporte, se sentiu prejudicada e questionou a regra na Justiça.

Com o acordo, a prefeitura se comprometeu a cobrar um preço fixo, de R$ 0,12, enquanto a Uber se comprometeu a desistir dos processos.

Já na ação que pede o fim da cobrança, a prefeitura diz que a "alteração de comportamento" da Uber quer "proporcionar um novo olhar judicial" sobre o caso — ou seja, quer novo julgamento sobre um assunto já encerrado.

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Esta ação revela-se, palpavelmente, avessa à boa-fé objetiva e processual, considerando que a Uber, ora representada, apresenta postura diametralmente oposta à anterior.
Prefeitura de São Paulo, em petição de agosto de 2023

Além disso, em 2016, quando São Paulo regulamentou os aplicativos de transportes, a Uber celebrou a adoção da cobrança por quilômetro.

A Uber abraça essa regulação e acredita que ela será positiva para a cidade. (...) A cada quilômetro rodado na cidade, um adicional de R$ 0,10 será cobrado no fim da viagem.
Uber, em mensagem institucional de julho de 2016, ainda disponível em seu site

Entidade diz que cobrança encarece serviço

A CNS, em nome dos apps de transporte, defende que a cobrança pelo uso das vias representa um "embaraço ao livre exercício da atividade", além de encarecer as corridas.

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Alega ainda que a cobrança é uma "taxa disfarçada".

A exigência encarece e desestimula a contratação desse tipo de serviço pelos consumidores (o que não ocorre com outras modalidades de transporte urbano)
Confederação Nacional de Serviços, nos autos do processo, em agosto

Ministério Público a favor dos apps

No processo contra a cobrança por quilômetro rodado, o Ministério Público de São Paulo, por meio da Procuradoria-Geral de Justiça, ficou a favor dos aplicativos, e ainda pediu que o TJ-SP derrubasse mais trechos da regulamentação.

Em parecer, a procuradoria afirma que só a União poderia editar regras sobre o transporte individual privado de passageiros. E que os municípios não podem criar obrigações, como a exigência de cadastro, não previstas em lei.

Já em primeira instância, a Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, também do Ministério Público de São Paulo, investiga os aplicativos num inquérito civil. Um dos motivos é justamente a possível fraude no pagamento pelos quilômetros rodados.

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Outro lado

Ao UOL, as empresas disseram não ter relação com a ação movida pela Confederação Nacional de Serviços.

A Uber disse que, "desde que chegou a São Paulo, já contribuiu com mais de R$ 1 bilhão em tributos e taxas municipais na cidade".

Sobre as acusações feitas pela CPI, a Uber disse que a comissão chegou a conclusões erradas: "A respeito das afirmações inconclusivas do relatório final da CPI dos Aplicativos, não é verdade que a Uber devia valores adicionais de tributos e taxas em São Paulo. O arquivamento do caso já foi, inclusive, solicitado pelo Ministério Público de São Paulo".

Segundo a empresa, as conclusões da CPI foram "baseadas numa aparente vontade política duvidosa de denunciar sem fundamentos empresas que contribuem com São Paulo e que facilitam a vida de pessoas que se deslocam e que geram renda na cidade".

A Uber negou ainda dever "valores adicionais de tributos e taxas em São Paulo". Afirmou também que "compartilha diariamente com o Município de São Paulo os dados de todos os veículos e dos motoristas parceiros cadastrados na plataforma que estão aptos para dirigir na cidade. Ou seja, apenas esses carros conseguem realizar viagens pela plataforma em São Paulo".

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A respeito da auditoria de 2022, que a Uber teria enviado incompleta segundo a prefeitura, o app disse que "entregou os relatórios em conformidade com as regras, e que todos apontaram regularidade, ou seja, que a operação da empresa foi feita em conformidade com a regulamentação.

Ao negar envolvimento com o processo movido pela Confederação Nacional de Serviços, a Uber diz que seu questionamento judicial "se refere exclusivamente à necessidade de produzir relatórios retroativos, o que é inconstitucional e economicamente inviável".

Já a 99 disse que "sempre atendeu a regulação municipal" e que "nunca ajuizou ação contra a regulamentação do preço público".

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